Perto das 4 horas da manhã do dia 17 de setembro de 2016, Virginia e seu advogado de defesa caminham em direção ao estacionamento do Fórum de Justiça de Curitiba, no Centro Cívico. Bem diferente de outros atos do processo, ninguém a aguarda do lado de fora da Casa. Não há fotógrafos, não há curiosos, não há imprensa. Nas cinco horas anteriores, a médica havia passado por uma metralhadora de questionamentos sobre suas atitudes à frente de uma das unidades de terapia intensiva do Hospital Evangélico de Curitiba. A “Doutora Morte” abriu a caixa preta de alguns dos sete casos em que foi acusada de antecipar a morte de pacientes, em um das passagens mais mórbidas da Justiça brasileira. Preocupado com a percepção de sua cliente, o advogado lhe pergunta se está satisfeita. “A Justiça tem todas as informações técnicas para acertar em sua decisão final. Confio nela”, respondeu. Sete meses depois, a médica era inocentada ou impronunciada em todos os termos da denúncia. A decisão foi em primeira instância e o Ministério Público recorreu da decisão Mas era o aparente fim de um martírio que começara mais de quatro anos antes.
Nesta semana, os bastidores do julgamento de Virginia Helena Soares de Souza chegaram às livrarias brasileiras em um livro com pecha de best-seller. “Doutora Morte? A Medicina no banco dos réus – O resgate da verdade”, pela editora Divulgação Cultural, foi lançado nesta quinta-feira com uma tiragem inicial de 10 mil exemplares. A obra é assinada justamente por seu advogado, Elias Mattar Assad em parceria com a filha Louise Mattar Assad, que também atuou no caso. Assad, um criminalista de renome no Brasil, responsável por vários casos de projeção, como a acusação do ex-deputado estadual Fernando Ribas Carli Filho, juntou durante quatro meses toda a documentação e apontamentos sobre o caso para elaborar a obra. Nas mais de 600 páginas, pai e filha discorrem, em uma linguagem que flerta com os dois mundos, o jurídico e o leigo, sobre como erros técnicos na denúncia levaram a um linchamento público de uma profissional polêmica, mas responsável, e colocaram em xeque a atividade médica.
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O caso
No início de 2013, um caso macabro estampava todos os jornais brasileiros. A coordenadora da UTI do Hospital Evangélico era suspeita de matar pacientes. A denúncia anônima, feita meses antes, havia partido de uma fisioterapeuta que dividia a UTI com Virginia. À Ouvidoria Geral do Estado, a profissional afirmou que a médica, junto com sua equipe, acelerava a morte de pacientes com um coquetel de remédios – apelidado de “kit morte” – e manipulando os equipamentos de respiração. Logo o caso foi parar na mão do Núcleo de Repressão aos Crimes contra a Saúde (Nucrisa), da Polícia Civil, que investigou por meses a conduta naquela UTI. Em janeiro daquele ano, após intercepção telefônica do ramal de Virginia, a polícia acreditava ter indícios suficientes para pedir a prisão da intensivista. Era a medida necessária, segundo o órgão, para frear o que acontecia nas paredes instransponíveis daquela UTI.
Em 19 de fevereiro, Virginia era presa enquanto analisava prontuários em sua sala, dando início ao seu inferno pessoal e a um dos casos mais escandalosos da década. Logo, a médica era notícia exaustiva em qualquer roda e na mídia nacional e internacional, ganhando alcunhas pouco polidas de “monstra” e “Doutora Morte”. Uma exposição inflada pela atuação incisiva do Ministério Público e por vazamentos de gravações telefônicas grampeadas. Nelas, um conjunto de frases um tanto perturbadoras. A seus colegas, a intensivista dizia que precisava “desentulhar a UTI”, “ir com o paciente” e “desligar o paciente”. Na mais flagrante delas, um erro de transcrição indicava que a doutora comemorava o fato de “ter tranquilidade para assassinar” – mais tarde o MP corrigiu o trecho, trocando a palavra “assassinar” por “raciocinar”. Mas o estrago com a opinião pública já estava feito.
É a partir da prisão que Elias Mattar Assad remonta os passos que levaram à absolvição de Virginia e dos outros médicos acusados, em um caso de muita complexidade técnica. O ponto central da defesa do advogado – e o foco de seu livro – é como a falta de conhecimento técnico dos investigadores e promotores levaram a uma interpretação errada do que acontecia no leito da UTI do Evangélico. Para a defesa – em uma tese que contou com apoio do Conselho Regional de Medicina --, todos os protocolos usados pela chefe da UTI estavam corretos e o kit de medicamentos administrado nos pacientes era uma tentativa de salvá-los ou amenizar o sofrimento nos casos em que não havia chances de cura. Os laudos oficiais do Instituto Médico Legal (IML), que analisou todos os prontuários citados, também indicavam caminho semelhante, descreve Assad.
O juiz responsável pelo caso, Daniel Surdi de Avelar, da 2ª Vara do Júri de Curitiba, se convenceu e apontou não haver provas de crime em nenhum dos casos analisados.
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Temperamento difícil
Para o advogado, o caso é maior do que simplesmente a prova de inocência de Virginia, mas um exercício de defesa da Medicina. “Os médicos me dizem: não foi a Justiça que inocentou a Medicina. Foi a Medicina que deu alta para a Justiça”, diz o advogado.
Para o advogado, o despreparo dos órgãos de acusação, que não têm o conhecimento técnico para elaborar ume denúncia como a deste caso, tem levado os médicos a atuarem sobre pressão constante. “Analisamos todos os processos. Se todos os protocolos estavam corretos, você não estava julgando uma pessoa por algo, estava julgando pelo que ela é. Estava julgando a Medicina Intensiva”, diz. “Os médicos trabalham com medo. O médico, que tem paciente na UTI, hoje tem que chamar os familiares e falar: ‘olha, estou dando esse medicamento aqui por causa disso ou daquilo outro’. Eles ficam loucos. O cidadão comum não entende. Não era assim antes da Virginia”, diz.
“Para o Direito, fica a mensagem subliminar de que se deve ter certa cautela, prudência, quando vai processar criminalmente uma pessoa. A sentença veio e disse: ‘não há um crime’. Isso poderia ter sido levantado durante a investigação. A polícia deveria ter órgãos especializados para investigar médicos”, diz. Segundo Assad, o livro é um manifesto para que se melhorem os instrumentos de investigação e denúncia. “Eles [polícia e MP] continuem com suas virtudes de investigar e denunciar. Mas aprimorar os métodos é a mensagem”.
Além dos erros técnicos (segundo o autor), não se sabe quais foram as motivações para a denúncia inicial – e as subsequentes --, mas o gênio difícil de Virginia também pode ter contribuído para inflar a onda. Criticada por tratar colegas de trabalho de forma rude, a médica era tido como “bruxa” nos corredores. Algo que às vezes extrapolava o rigor técnico. A chefe da UTI chegou a ser suspensa pela diretoria do hospital pela forma como tratava enfermeiros e assistentes. “Ela ultrapassava todos os limites. Era grossa, cometia insultos racistas. De certa forma, ela foi parar lá acredito que mais pelo comportamento do que por algo de fato”, diz um médico que dividiu a UTI com Virginia.
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Carreira perdida
“Doutora Morte? A Medicina no banco dos réus – O resgate da verdade” já está nas livrarias de várias cidades brasileiras, com uma tiragem inicial de 10 mil exemplares, o que por si só já o coloca como um dos principais títulos lançados neste ano. Segundo a Câmara Brasileira do Livro, a tiragem média de livros no Brasil é de 2,5 mil cópias e uma obra pode ser considerada um sucesso se comercializar 15 mil exemplares. “Vai ser um best-seller por conta da projeção história. O assunto foi notícia em 52 países; saiu em jornais como New York Times [EUA], Le Monde [França], Guardian [Inglaterra]. São os principais jornais do mundo falando sobre o assunto, então isso desperta a curiosidade”, diz o editor Cesar Henrique de Oliveira, sócio-gerente da Divulgação Cultural, editora da obra.
Ainda assim, talvez a exposição seja pequena para consertar uma imagem manchada pela superexposição – boa parte dela de forma tendenciosa – na mídia e pelo julgamento prévio da opinião pública. “Talvez a imagem esteja arranhada para sempre. [O livro] Vai amenizar? Eu não sei. Digamos que eu venda 50 mil livros, que ele seja um sucesso absoluto. Isso representa só uma pequena porcentagem da população que assistiu ou leu as reportagens”, pondera.
Virginia parece saber disso. Inocentada, ela não vive uma vida muito diferente dos anos de reclusão a que se “autoimpôs” durante o percurso do julgamento. A reportagem não conseguiu contato com a médica. Segundo Assad, ela continua evitando as ruas, passando a maior parte do tempo na casa do filho, Leonardo. “Há cerca de dois meses, precisava de uma documentação de cartório e levei Virginia lá. Então falei: ‘vamos almoçar ali na Augusto Stresser?’. Foi a primeira vez que ela saía de casa em muito tempo. Assim que encostei o carro, vinha um estudante, com uma mochila, e mexendo no celular. Ele olhou pra ela, apontou o celular e ‘flash’, tirou uma foto. O primeiro transeunte tirou uma foto”, conta o advogado. “Eu brinquei: ‘está famosa, Virginia’. Ela olhou pra mim e respondeu: ‘eu não saio de casa por causa disso’. Isso é irreparável”.