Justice (justiça, em inglês) é um cavalo americano de oito anos que costumava ser chamado de Shadow (sombra, em inglês). E, enquanto era chamado de Shadow, sofria nas mãos da antiga dona. No exame feito por um veterinário no ano passado, o animal estava com 300 quilos abaixo do peso, com o pelo preto coberto de piolhos, a pele machucada e os órgãos genitais tão prejudicados que talvez ainda precisem de amputação.
O cavalo havia sido deixado ao ar livre durante o inverno, e subnutrido. E agora Justice, que hoje reside com outros equinos resgatados em uma fazenda tranquila e arborizada na região das montanhas Cascade, no estado norte-americano de Oregon, está processando sua antiga dona por negligência. Em uma ação movida com o seu novo nome em um tribunal estadual, o cavalo pede uma indenização de US$ 100 mil para pagar cuidados veterinários e também por ter sofrido “dor” – e para garantir bons cuidados no futuro, independentemente de quem for o seu cuidador.
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A queixa é a mais recente tentativa de uma busca quixotesca para que os tribunais reconheçam os animais como demandantes, algo que defensores e críticos dizem ser revolucionário. As poucas tentativas anteriores – incluindo o recente caso polêmico de um macaco pedir direitos autorais por uma selfie – falharam, com os juízes decidindo contra os não humanos. Mas o caso de Justice, argumentam os advogados de defesa dos direitos dos animais, baseia-se em decisões judiciais e estatutos que lhe dão uma chance mais forte, particularmente em um estado com algumas das leis de proteção animal mais progressistas do país.
“São muitos os esforços para tentar fazer com que os animais não apenas sejam protegidos, mas tenham o direito de ir a tribunal quando seus direitos são violados”, disse Matthew Liebman, diretor jurídico da organização Animal Legal Defense Fund, que apresentou a ação em nome de Justice. Os últimos casos “não encontraram a chave certa para abrir a porta do tribunal. E estamos esperançosos de que este caso seja a chave”.
Esses esforços foram feitos em meio a um amplo crescimento em proteções legais em defesa dos animais. Três décadas atrás, poucas faculdades de Direito ofereciam cursos de Direito Animal nos Estados Unidos; agora, há mais de 150, e alguns estados criaram unidades de promotoria de proteção animal. Todos os 50 estados decretaram penalidades por abuso de animais. Connecticut, no ano passado, tornou-se o primeiro estado a permitir que os tribunais indicassem advogados ou estudantes de Direito como defensores de casos de crueldade contra animais, em parte porque os promotores, sobrecarregados, estavam dispensando a maioria desses casos.
Esses desdobramentos são um progresso, na opinião dos advogados dos direitos dos animais, no objetivo de persuadir legisladores e tribunais a expandir a visão legal tradicional dos animais – como propriedade – para refletir seu papel em uma sociedade em que hotéis para cães são um grande negócio e divórcios podem envolver batalhas sobre a guarda de um gato.
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“Nossa legislatura reconheceu que as pessoas se importam muito com os animais, e isso é algo que está evoluindo e aumentando”, disse Jessica Rubin, professora de Direito da Universidade de Connecticut que atua como defensora dos casos de crueldade do estado. “A lei, esperançosamente, está finalmente a caminho de entrar em sintonia com esse comportamento”.
Mas expandir as proteções para os animais é bem diferente de garantir a eles uma posição legal, que os tribunais não estão dispostos a fazer. Em 2004, um tribunal federal de apelações derrubou uma ação em nome dos cetáceos do mundo, na qual o presidente Bush e o secretário da Defesa, Donald H. Rumsfeld, foram processados pelo uso do sonar pela Marinha dos EUA. Em 2012, um Tribunal Distrital dos EUA indeferiu uma ação movida em nome de cinco orcas do SeaWorld, que alegaram que seu cativeiro era uma violação da proibição da escravidão da 13ª Emenda. Nesta primavera, um tribunal federal de apelações determinou que um macaco que tirou sua própria foto não poderia processar por proteção de direitos autorais, dizendo que “este macaco – e todos os animais, já que não são humanos – não tem legitimidade legal”.
Nos tribunais de Nova York, um grupo chamado “Projeto de Direitos para Não Humanos” procurou por vários anos recursos de habeas corpus para chimpanzés cativos, argumentando que eles são “pessoas jurídicas” - um termo que pode ser aplicado a corporações e navios – e têm direito à liberdade. Embora os juízes ocasionalmente tenham elogiado o esforço, eles finalmente o rejeitaram, dizendo que os chimpanzés não podem suportar os deveres e responsabilidades exigidos das pessoas jurídicas.
Contra esse pano de fundo, Liebman diz que o caso de Justice é “mais razoável” do que os outros. Não envolve a Constituição ou conceitos historicamente ponderados, como a escravidão ou o habeas corpus. Não soa tão tolo quanto tentar defender direitos autorais para um macaco.
Em vez disso, ele e seus colegas dizem que é um passo mais lógico e aceitável. O argumento deles é o seguinte: enquanto algumas leis estaduais contra a crueldade foram escritas para proteger os proprietários de animais ou a moral pública, a lei contra a crueldade do Oregon deixa claro que a intenção é proteger os animais, que chama de “seres sencientes”. Além disso, os tribunais estaduais determinaram que os animais podem ser considerados vítimas individuais. E como as vítimas têm o direito de processar seus agressores, a ação judicial argumenta que Justice tem o poder de processar seu antigo dono.
Justice, claro, não tem ideia de que está processando alguém. Em defesa da causa, Sarah Hanneken, uma advogada do Animal Legal Defense Fund em Portland, diz que a ignorância da Justice sobre o processo é irrelevante.
“Toda essa ideia de que alguém que foi ferido pelos atos de outro, e não é capaz de falar por si no tribunal, pode ter um adulto humano fazendo isso por, isso não é novidade”, disse Hanneken. “As crianças podem entrar com ações judiciais porque reconhecemos que as crianças têm interesses que as leis protegem”.
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Petição radical
De acordo com os documentos judiciais, a ex-proprietária de Justice, Gwendolyn Vercher, entregou o cavalo a uma organização de resgate em março de 2017, a pedido de um vizinho. Em uma carta à polícia, um veterinário que examinou o cavalo na época disse que ele estava “emagrecido”, letárgico e fraco. Essa condição precária provavelmente contribuiu para um problema duradouro – o pênis do animal havia prolapsado e sua incapacidade de retraí-lo levava a congelamento, trauma e infecção.
“Quando o recolhi, ele estava muito pior do que eu esperava”, disse Kim Mosiman, diretor executivo da Sound Equine Options, que recebe e encontra lares para cerca de 100 cavalos a cada ano.
Justice, a quem Mosiman descreve com carinho como “um velho rabugento”, ganhou peso e se tornou mais social. Em uma tarde ensolarada na fazenda empoeirada de Estacada, ele mordiscou a grama ao lado de um cavalo de corrida aposentado chamado Flick e usou o nariz para cutucar o notebook do repórter visitante. Mas o processo diz que seu pênis pode exigir uma amputação parcial e que suas condições médicas exigirão cuidados de longo prazo.
“Estou tentando encontrar alguém que queira adotá-lo”, disse Mosiman. “Mas se eles descobrirem que terão que ser financeiramente responsáveis por ele, ele nunca mais vai a lugar algum”.
Alguns especialistas em Direito Animal alertam que a ação judicial da Justiça é extrema, até mesmo perigosa. Richard L. Cupp, um professor de direito da Universidade Pepperdine que tem sido crítico aos pedidos de reconhecimento de personalidade jurídica para os chimpanzés, disse que acha que o caso do cavalo tem implicações ainda mais radicais.
Permitir que Justice processe poderia significar que qualquer animal protegido pelo estatuto contra a crueldade do Oregon – um conjunto que inclui milhares de animais de estimação, animais de zoológicos e até animais selvagens – poderia fazer o mesmo, disse ele. (Criação de gado, animais de laboratório, alvos de caça, animais de rodeio e invertebrados não são contemplados pela lei). Se essa abordagem fosse adotada em outros lugares, disse Cupp, uma enxurrada de litígios envolvendo animais poderia invadir os tribunais.
“Qualquer caso que possa permitir bilhões de animais a abrir processos judiciais representa um problema de dimensões insuspeitadas”, disse Cupp.
“Quando você diz que um cavalo, um cachorro ou um gato pode processar pessoalmente por abuso, isso é um salto muito grande que equivale a dizer: ‘estamos estabelecendo que eles são pessoas legais com isso. E as pessoas legais não podem ser comidas’”.
Cupp enfatizou que apoia as leis e decisões progressistas do estado de Oregon que tentam evitar a crueldade contra animais. Mas a legislação é uma maneira mais razoável de expandir a proteção animal, disse ele. O caso de Justice, por exemplo, poderia ser tratado por meio de uma lei que exija que um abusador cubra os cuidados futuros de um animal. “Isso não seria ruim para a sociedade”, disse Cupp. “Precisamos evoluir. Nós não estamos fazendo o suficiente para proteger os animais”.
Cupp aponta para uma lei de Connecticut que mantém uma importante distinção entre animais e pessoas. Concentra-se nos “interesses da justiça”, não nos interesses dos animais.
Geordie Duckler, um advogado de Direito Animal de Portland que representa Vercher, disse que vê a ação do cavalo como um golpe publicitário, que ele não espera que os tribunais do Oregon levem muito a sério.
“Há um abismo enorme entre dizer que uma coisa é uma vítima e dizer agora que ela deve ter direitos, e os direitos são aparentemente a grande armadura de direitos e deve incluir o direito de processar”, disse Duckler.
“Não existe um direito no vácuo... Assim que você tiver direitos para os animais, é melhor ter prisões e processos contra animais”.
Esses argumentos são familiares para Mosiman, que chama seu grupo de uma organização de bem-estar animal, não de direitos animais. Quando ela considerou as necessidades de longo prazo de Justice, no entanto, ela não teve escrúpulos em entrar com a ação considerando o cavalo como autor da mesma, disse ela.
“A situação é clara: se ele não estivesse faminto, isso não teria acontecido”, disse Mosiman enquanto Justice languidamente coçava o pescoço e a cabeça contra um pinheiro imponente. “É sobre ele”.
Mas, como reconhecem os advogados de ambos os lados desta questão, não é apenas isso que está em jogo, é muito mais do que isso.
©2018 The Washington Post. Publicado com permissão. Original em inglês.
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