O Supremo Tribunal Federal (STF) adiou mais uma vez, para a próxima quarta-feira (20), o julgamento das ações que pedem o reconhecimento de omissão do Congresso em criminalizar supostos atos de homofobia e transfobia, termos que são controversos. O relator da primeira das ações em julgamento (Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão 26), ministro Celso de Mello, leu apenas 11 dos 18 pontos de seu voto, em que despontaram noções importadas das teorias de gênero, que têm raízes no feminismo radical.
Mello recusou o pedido para que o Supremo crie crime específico, o que só o Congresso poderia fazer. Reconheceu, contudo, a omissão do Congresso, mas só no próximo dia 20 vai decidir que solução o tribunal poderá dar para suprir essa omissão. O decano do tribunal destacou, ainda, que o fato de haver projetos no Congresso discutindo o tema não seria justificativa para a inércia do Legislativo. Antes de os outros ministros votarem, Edson Fachin dará seu voto como relator do Mandado de Injunção (MI) 4733, que pede a equiparação da homofobia e da transfobia ao racismo.
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No final da sessão, porém, um ministro sinalizou, em off, que ainda pode haver discussão sobre a equiparação, por meio de interpretação, da homofobia ao racismo.
Antes da sessão desta quinta-feira (14), o ministro Marco Aurélio Mello criticou o julgamento das ações estar em pauta. “Se a plataforma do presidente [Toffoli] é justamente uma aproximação, evitar atrito [com os outros Poderes] eu não entendo como colocar esses processos em pauta”. Na saída da reunião que teve com Toffoli, na terça-feira (12), membros da bancada evangélica afirmaram que o presidente da Corte garantiu que o processo foi pautado por pedido explícito do decano (membro mais antigo) do tribunal, justamente Celso de Mello.
Marco Aurélio também indicou que deve votar contra a criminalização da homofobia, tema do Mandado de Injunção que tem Fachin como relator.
“Direito Penal é algo muito sério, nossos representantes é que devem atuar. Que eles o façam ou não façam. Eles podem cruzar os braços numa opção político-normativa. É discricionário do Congresso”, declarou.
Se o Supremo aceitar o argumento da omissão, ainda não há clareza sobre o caminho a seguir. O artigo 103, parágrafo 2º, da Constituição Federal diz que “declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
Como Celso de Mello votou até agora
Relator da ADO 26, Celso de Mello começou seu extenso voto - o ministro declarou que tem cerca de 130 páginas - com uma provocação:
“Sei que em razão do voto que vou proferir serei inevitavelmente incluído no index dos cultores da ignorância, cujas mentes sombrias – que rejeitam o pensamento crítico, que repudiam o direito ao dissenso, que ignoram o sentido democrático da alteridade e do pluralismo de ideias, que se apresentam como corifeus e epígonos de sectárias doutrinas fundamentalistas – desconhecem a importância do convívio harmonioso e respeitoso entre visões de mundo antagônicas”.
Antes de ingressar nas questões jurídicas, Celso de Mello fez uma longa explicação sobre termos e premissas, aceitando a cartilha da ideologia de gênero. Para o ministro, a sigla LGBT denomina, por tradição, uma coletividade “diversa”, unida por um ponto comum: “sua absoluta vulnerabilidade, agravada por práticas discriminatórias e atentatórias a seus direitos essenciais e liberdades fundamentais”.
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O relator da ADO 26 também delimitou o que entende por identidade de gênero: “a noção gênero refere-se à forma como é culturalmente identificada no âmbito social a expressão da masculinidade e da feminilidade, adotando-se como parâmetro o modo de ser do homem e da mulher nas suas relações pessoais”.
Mello fez menções aos princípios de Yogyakarta para diferenciar orientação sexual e identidade de gênero. O documento, apesar de não criar obrigações para os países, é o principal instrumento internacional de promoção da ideologia de gênero no ordenamento jurídico dos Estados Nacionais, muitas vezes por meio do ativismo judicial de juízes dos próprios países, que passam a reinterpretar o direito com base nas noções do documento.
Para o ministro, porém, “a controvérsia gerada pela denominada ideologia de gênero” ajuda a fomentar “ações de caráter segregacionista, impregnadas de inequívoca coloração homofóbica ou transfóbicas que visam a limitar, quando não a suprimir, prerrogativas essenciais [da população LGBT] (...). Ser homem ou ser mulher não é um dado biológico, é um dado performático”, disse o ministro, reverberando as ideias de Judith Butler. “A autoafirmação de gênero é um poder jurídico de natureza constitucional”, disse ainda.
Mello lembrou que o tribunal reconheceu esses conceitos no julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, em que o tribunal deu aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. Na ação, o STF anotou que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la”.
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Celso de Mello negou o pedido para que o STF supra suposta lacuna legal e crie um tipo penal (crime) que puna a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, por conta da separação dos poderes e do princípio da reserva legal, previsto no inciso XXXIX ao artigo 5º da Constituição Federal, que diz que “não há crime nem pena sem lei anterior que os defina”. Nesse caso, tradicionalmente, a palavra “lei” é lida em sentido estrito, ou seja, o ato normativo criado apenas pelo Poder Legislativo. “Mesmo no equivalente constitucional da lei, que é a Medida Provisória, há uma cláusula de exclusão em relação às medidas penais”, afirmou ainda, referindo-se ao artigo 62 da Constituição Federal.
O ministro prosseguiu lembrando o tratamento que a legislação, desde o século XV em Portugal, dava aos atos homossexuais, para demonstrar o que chamou de “confusão das ordens temporal e espiritual”, ou seja, entre Estado e Igreja. Em seguida, passou a discorrer sobre os dados de violência contra homossexuais e transsexuais no Brasil. O ministro citou dados do Grupo Gay da Bahia, que são controversos.
Mello passou então a enumerar precedentes que reconhecem a inconstitucionalidade por omissão, quando o Estado não toma nenhuma medida, ou age apenas parcialmente, para cumprir algum dever previsto pela Constituição, o que “estimula a erosão da consciência constitucional”, segundo o ministro. Mello destacou também que o fato de haver projetos de lei no Congresso discutindo o tema não é desculpa para a inércia legislativa.
No caso da criminalização da homofobia, o ministro enxerga “nexo de causalidade entre a imposição constitucional de legislar de um lado e a configuração objetiva da ausência de provimento legislativo, de outro, cuja edição se revela necessária à punição de atos e comportamentos resultantes de discriminação ou de violência contra a pessoa em razão de sua orientação sexual ou em decorrência de sua identidade de gênero”.
Primeiro dia
Na sessão de ontem (13), foram lidos apenas os relatórios dos ministros Celso de Mello e Edson Fachin. Houve ainda manifestação das partes do processo e dos amici curiae (amigos da Corte, interessados na ação). Nove advogados falaram na sessão. A ADO 26 e o MI 4733, assinadas pelo mesmo escritório de advocacia, pedem que o STF reconheça omissão do Legislativo por não ter elaborado legislação criminal que puna todas as formas de homofobia e de transfobia. Não há consenso sobre o que esses termos designam.
Além deles, falaram o advogado da causa, Paulo Vecchiatti, o sub-procurador-geral da República, Luciano Mariz Mari, o advogado-geral da União, André Mendonça, e mais sete instituições, na qualidade de amici curiae: o Grupo Gay da Bahia, o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual (GADvS), o Grupo Dignidade - Pela Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), todos a favor das ações. Contra os pedidos, falaram a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) e a Frente Parlamentar Mista da Família e Apoio à Vida.
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Como a Constituição prevê a criminalização do racismo (artigo 5º, inciso XLII) – o que de fato foi feito pela Lei 7.716/1989 – as ações pedem que o tribunal declare o Congresso omisso e fixe um prazo para que os parlamentares editem uma lei com esse teor e, na falta dela, pedem “a inclusão da criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente), das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões, ameaças e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima” na lei de 1989.
Se o Supremo não aceitar esse argumento, as ações pedem que o tribunal pelo menos a considerem a homofobia “discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, pois o artigo XLI ao artigo 5º da Constituição prevê que a lei deverá punir essas condutas. Nesse caso, o Supremo poderia declarar o Congresso em mora, mas não determinar que os crimes previstos na Lei 7.716/1989 abrangem também condutas homofóbicas.
Na tarde de ontem (12), a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) reuniu-se com o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, para pedir o adiamento do julgamento, mas teve o pedido negado. A principal preocupação dos parlamentares é com um dos pontos da ação, que pede não só a declaração de omissão do Congresso Nacional, mas a equiparação de supostos atos de homofobia ao racismo, criminalizando, em decorrência disso, a discriminação por “orientação sexual” e “identidade de gênero”.
Atritos com o Congresso
A criminalização da homofobia é vista como mais uma bola dividida, sensível à FPE e a parlamentares conservadores. Antes da sessão de ontem, o ministro Ricardo Lewandowski declarou, quando perguntado sobre a posição da bancada evangélica, que "o Supremo não se submete a pressões".
Na saída da reunião de terça-feira, o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) afirmou que a bancada evangélica errou ao perceber tarde demais que a ação estava na pauta do tribunal, e que a principal preocupação dos deputados é com o ativismo judicial e com a liberdade de expressão e religiosa daqueles que consideram as “condutas homossexuais” erradas.
Paulo Vecchiatti, advogado das ações, afirmou em sua sustentação que o fato de o tema tramitar no Congresso não o exime da omissão. Para o advogado, o Congresso criminaliza “tudo”, mas se recusa a criminalizar a homofobia por oposição da bancada religiosa. O mais importante projeto tratando da criminalização da homofobia esteve em pauta no Congresso entre 2001 e 2014, até ser apensado ao projeto de Novo Código Penal.
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O pleito ganhou relevância nacional durante a tramitação Projeto de Lei (PL) 122/2006. De autoria da então deputada Iara Bernardi (PT-SP), em 2001, o projeto foi aprovado na Câmara em 2005 e tramitou no Senado – primeiro avulso, depois apensado à proposta de novo Código Penal – por mais oito anos até ser arquivado. A proposta inicial previa apenas a imposição de sanções administrativas, a exemplo do que já fazem alguns estados, a discriminação contra homossexuais e transexuais.
Em 2005, no entanto, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, acolheu o relatório do deputado Luciano Zica (PT-SP), prevendo a modificação justamente da Lei 7.716/1989, que passaria punir, além dos crimes de ódio e intolerância resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião e origem, também os resultantes de discriminação ou preconceito de “gênero, sexo, orientação sexual, identidade de gênero ou condição de pessoa idosa ou com deficiência”.
O projeto acabou enfrentando forte oposição da FPE, que temia que a redação ampla e genérica do projeto pudesse avançar sobre a liberdade de crítica a condutas homossexuais e à ideologia de gênero. A relatora do PL na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), a então senadora Marta Suplicy, que estava no PT de São Paulo, chegou a propor uma ressalva às manifestações religiosas, mas foi criticada por ativistas LGBT.
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Pela proposta da senadora, o artigo 20 da lei 7.716/1989, que “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito”, além de passar a proteger a orientação sexual e a identidade de gênero, passaria também a prever que a previsão “não se aplica à manifestação pacífica de pensamento decorrente de atos de fé, fundada na liberdade de consciência e de crença de que trata o inciso VI do art. 5º da Constituição Federal.
Os deputados da FPE avaliam que a postura do STF será crucial para determinar o ritmo da tramitação do PL 4.754/2016, que inclui entre os crimes de responsabilidade dos ministros do STF, previstos na Lei 1.079/1950 a hipótese de “usurpar competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo”. O PL tramitou em 2016 sem fazer muito barulho, mas chegou a receber um parecer favorável do deputado Marcos Rogério (DEM-GO), em setembro daquele ano, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).
Em entrevista à Gazeta do Povo na semana passada, o deputado João Campos (PRB-GO) sinalizou neste sentido. "Vamos ter a grande oportunidade de ver se todo esse discurso [de moderação do presidente do STF] caminha para um comportamento menos ativista e, se não houver harmonia entre o discurso e aquilo que vai acontecer, nós vamos ter de dar um tratamento mais célere a este projeto de lei”, declarou. Muitos deputados e da base aliada do presidente Jair Bolsonaro (PSL) consideram o projeto urgente e prioritário.
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