Sem pressa e sem alarde, a República Popular da China se prepara para dar o passo que pode ser determinante no caminho para se consolidar como a principal economia do mundo: a criação de um Código Civil. O processo de codificação foi iniciado em 15 de março de 2017, quando o Congresso Nacional do Povo, órgão legislativo máximo do país, aprovou uma espécie de “Parte Geral” do futuro Código Civil chinês.
“Essa Parte Geral, que tem o nome de Disposições ou Regras Gerais do Código Civil, é um documento jurídico de importância sem precedentes na China, porque servirá de alicerce para o complexo processo de elaboração de um novo Código Civil, cujo término é previsto para 2020”, diz Otavio Luiz Rodrigues Junior, professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Rodrigues Junior explica que “a China assumiu paulatinamente um papel de relevo no mercado internacional e, como tal, foi instada a adotar padrões comuns para o comércio internacional, a circulação de pessoas e de bens, além de se vincular a alguns standards normativos no campo dos direitos da personalidade, do direito de família e do direito das sucessões”.
Para o coordenador do Centro de Estudos Legais Asiáticos (CELA) da mesma universidade, Carlos Portugal Gouvêa, o novo Código Civil chinês reunirá elementos, principalmente no âmbito do direito societário, que trarão segurança e confiança não apenas para os chineses, mas também para investidores internacionais, ampliando ainda mais o potencial econômico do país.
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“Há um comprometimento do Congresso Popular Nacional, que acaba representando em grande medida a opinião do Partido Comunista, no sentido de realmente aprofundar as reformas que estão sendo implementadas na China”, diz o professor Gouvêa.
Ele analisa que uma das partes mais importantes da lei se refere justamente ao direito societário, ainda que ser muito detalhamento até o momento. Por enquanto, a Parte Geral do Código contextualiza regras gerais que seriam aplicadas a pessoas jurídicas, protegendo sua propriedade e limitando a responsabilidade dessas pessoas jurídicas ao seu capital. “Ou seja, incorpora vários elementos tradicionais do direito societário”.
Desde a instauração do regime comunista na China, em 1949, quando foram revogadas todas as leis relativas ao direito privado, o desenvolvimento econômico do país está baseado no reconhecimento somente a companhias controladas pelo Estado, os chamados “negócios coletivos”, permitindo também a existência de joint ventures formadas por empresas estrangeiras, desde que associadas a empresas chinesas, para garantir a transferência de tecnologia.
Aos poucos, principalmente a partir de maior integração com o sistema financeiro de Hong Kong, antiga colônia britânica que foi incorporada pela China, em 1997, como região administrativa especial, observa-se uma tendência de aproximação com os padrões internacionais.
De acordo com Gouvêa, a partir de uma maior familiaridade com os sistemas internacionais de financiamento, de mercado de capitais e com o sofisticado direito societário de Hong Kong, o governo chinês parece ter identificado novas possibilidades de financiamento da atividade empresarial, sem, no entanto, que isso represente uma diminuição do protagonismo estatal na economia.
“Há a expectativa que o novo Código Civil crie tipos societários que possam ser controlados diretamente por estrangeiros, o que representaria um passo substancial no sentido da abertura da economia chinesa e de uma maior proximidade com os sistemas de organização econômica e jurídica ocidental”, explica Carlos Portugal Gouvêa, da Usp.
“De certa forma talvez isso também represente um passo grande da China no sentido de assumir uma liderança global mais substancial”, diz.
Com base na compreensão de que o interesse coletivo deve se sobrepor aos interesses individuais, parte substantiva do crescimento econômico chinês se deu a partir de grandes projetos de infraestrutura e de reforma urbana, frequentemente causando considerável impacto ambiental e implicando por vezes o deslocamento de populações inteiras. A perspectiva do novo Código Civil é de trazer regras mais claras em relação aos processos de desapropriação e de expropriação da propriedade privada.
Para o professor Gouvêa, essa mudança representaria um ganho de legitimidade dos chineses perante o resto do mundo. “De certa forma, eles têm a percepção de que há uma crítica muito grande na forma como lidam com questões ambientais e de deslocamento de populações”, explica.
“Adotar essas regras de fato aumentaria legitimidade e permitira que a China passasse a ter mais influência em fóruns internacionais e conquistasse uma liderança não somente com base no poderio econômico e militar, mas também com base em ideias ou, como se diz, conquistando mentes e corações”, avalia o coordenador do Centro de Estudos Legais Asiáticos da USP.
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Wang Yi, professor de Direito Civil da Universidade Renmin da China, destaca que um dos elementos mais importantes do novo Código Civil do país é a ênfase no cuidado humanístico, a partir da prescrição de regras para pessoas naturais desde antes de nascerem, por exemplo, com a extensão do direito de herança aos nascituros.
“As provisões são simbólicas dos tempos. Nós aprovamos as disposições na segunda década do século XXI, durante as quais mostramos nossa preocupação com a proteção ambiental e também com a proteção de informações pessoais e ativos virtuais. Todos eles representam valores compartilhados pelo povo chinês hoje”, disse o professor Wang ao jornal China Daily.
De fato, o novo Código incorpora discussões contemporâneas mais avançadas que muitas legislações ocidentais. Por exemplo, o artigo 111 da Parte Geral prevê a proteção legal de dados pessoais, explicitando que entidades e indivíduos são proibidos de coletar, utilizar, processar ou transmitir dados pessoais, bem como de fornecer, divulgar ou vender dados pessoais ilegalmente – uma atualização bastante avançada em termos globais.
Repetição histórica
Com uma diferença de 200 anos, a China parece repetir o caminho de desenvolvimento traçado pela Europa: uma revolução industrial, a migração de trabalhadores do campo para as áreas urbanas e o aumento de produtividade, culminando em um enriquecimento que permitiu o avanço progressivo de direitos sociais e individuais, positivados na forma de leis escritas de direito privado.
No país, o processo de industrialização ganhou força a partir de 1978, atraindo trabalhadores para as cidades. De acordo com o censo democrático chinês de 2010, cerca de 261 milhões de chineses deixaram seu local de origem e migraram para outras localidades. O expressivo crescimento econômico chinês das últimas décadas, tal qual ocorreu na Europa na virada do século XVIII para o XIX, permitiu um contexto de florescimento dos direitos civis individuais.
“Abstraindo-se das particularidades, é reconhecível, sim, um paralelo entre o avanço do ‘capitalismo de Estado’ na China e a adoção de um Código Civil”, considera o professor Otavio Luiz Rodrigues Junior. De acordo com ele, os códigos civis europeus possuíram duas épocas de florações.
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“A primeira é pré-revolucionária, pré-1789. São exemplos os códigos civis da Áustria e de alguns Estados alemães. Nessa fase, diz-se que os códigos eram verdadeiras ‘consolidações’ de normas [uma nomenclatura que até hoje se encontra no caso da Consolidação das Leis do Trabalho, nossa CLT], mas não se lhes pode negar o fundamento racionalista e iluminista”, explica Rodrigues Junior.
A codificação era um símbolo civilizatório para os ‘déspotas esclarecidos’. “A segunda floração ocorrerá, efetivamente, após 1789. Em toda a Europa, a começar pela França (1804), são instituídos códigos civis. Menos por efeito do capitalismo e mais por influência das tropas napoleônicas, que levavam consigo o programa do recém-instituído Império francês, que era o da libertação dos povos do jugo das dinastias tradicionais europeias. O ‘término’ desse processo ocorrerá em 1900, com a vigência do Código Civil alemão”, explica o professor de Direito.
Em oposição ao Direito Consuetudinário inglês, baseado em costumes e na jurisprudência, o Direito alemão, inspirado no antigo Direito romano, consolidou-se como a principal referência do Direito Positivo, que busca prever, em leis escritas, o maior número de possibilidades existentes de relações sociais entre indivíduos, em particular, e na sociedade de forma geral.
A influência do Direito romano no Direito alemão foi sistematizada por juristas que formaram a chamada Escola Pandectista, que realizou uma elaboração sistemática do material jurídico romano em um nível teórico jamais antes atingido, apto a gerar conceitos abstratos e genéricos que vieram a inspirar, posteriormente, a edição do Código Civil alemão.
O estilo românico-germânico do Direito se espalhou pelo mundo, inclusive no Brasil, que passou por um longo processo de discussão do Código Civil, a partir da encomenda que D. Pedro II fez ao jurista Augusto Teixeira de Freitas, em 1858. O texto recebeu muitas críticas e nunca foi publicado. Somente em 1916 o Brasil viria a ter um Código Civil, a partir do trabalho conduzido por Clóvis Beviláqua. Esse Código vigorou até 2003, quando foi substituído pelo texto atual, elaborado por um grupo de juristas coordenado por Miguel Reale.
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Seja na China contemporânea, ou na Europa do início do século XIX, a consolidação dos direitos civis, ocorrida pari passu com o desenvolvimento do capitalismo, tem ainda um elemento de caráter religioso, como descreveu em sua obra mais famosa, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o jurista e economista alemão Max Weber, considerado um dos fundadores da Sociologia.
Weber argumentou que a religião foi uma das razões do porquê as culturas do Ocidente e do Oriente terem se desenvolvido de forma diversa e salientou a importância de algumas características específicas do protestantismo ascético, que levou ao nascimento do capitalismo, da burocracia e do estado racional e legal nos países ocidentais.
Para Weber, a Reforma Protestante trouxe racionalidade à religião, permitindo que se desenvolvesse a ética do trabalho livre, da livre negociação e do próprio lucro como algo positivo, desvencilhando-se da culpa católica pelo sucesso material.
Essa influência da religião no desenvolvimento do capitalismo também vem sendo estudada no caso da China. O professor de Sociologia Fenggang Yang, diretor do Centro de Religião e Sociedade Chinesa da Universidade Purdue, em Indiana, nos EUA, defende, em artigo, que a luta travada pelos cristãos chineses em busca de direitos civis, pela liberdade de culto e por direitos humanos de forma geral tem contribuído para ampliar e consolidar as liberdades civis no país comunista.
Segundo o professor Yang, o número de protestantes na China cresce a uma taxa de 7% desde 1950. Se essa tendência se mantiver, em 2030, serão mais de 224 milhões de protestantes chineses – mais do que o número total de cristãos nos Estados Unidos.
Carlos Portugal Gouvêa não compartilha com a hipótese da influência religiosa no processo de construção dos direitos civis na China. De acordo com o acadêmico da USP, ao contrário do que se pode ser levado a pensar pelo senso comum, por conta da Revolução Comunista de 1949, na história chinesa não há tantas quebras e rupturas.
“Da mesma forma que o Direito no Período Imperial emanava do imperador, o Direito Contemporâneo emana do Estado. O que se percebe é uma quase sacralização do Direito”, analisa. “De uma perspectiva mais interna da China, trata-se de um processo mais evolucionário do que revolucionário”, completa Gouvêa.
O professor considera que o Código Civil consolida um longo processo que se iniciou em 1986, com as primeiras discussões sobre a positivação dos direitos fundamentais, demonstrando que a China prefere construir as mudanças de forma lenta e consistente.
“A edição do Código Civil talvez seja o passo mais importante que a China deu até hoje para implementar aquilo que no âmbito internacional se chama o rule of law, o império do Direito, ao adotar alguns elementos das sociedades ocidentais e liberais, como o reconhecimento de direitos individuais como uma proteção frente ao estado”, finaliza.
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