Nenhuma instituição do governo norte-americano é mais envolta em mitologias do que a Suprema Corte. Talvez a maior delas seja a de que a Corte é uma instituição objetiva, que toma decisões aplicando aos fatos as leis pertinentes, a Constituição, a intenção de quem a escreveu e precedentes.
Mas a realidade é que, como escrevem estudiosos como Eric Segall, o papel que a política exerce em tal instituição é tão substancial que “a Suprema Corte não é um tribunal, e seus juízes não são juízes”. Aqui estão cinco dos mitos mais persistentes:
Mito n. 1: Indicados não são aprovados em anos eleitorais
Líder do Partido Republicano no Senado, Mitch McConnell tocou nesse ponto ao declarar, nas horas que sucederam a morte do juiz Antonin Scalia, em fevereiro de 2016, que uma substituição em ano de eleições presidenciais não deveria ser considerada.
“O povo americano deveria ter voz na seleção de seu próximo ministro da Suprema Corte”, afirmou. George Will, colunista do Washington Post, escreveu que McConnell estaria seguindo uma regra concebida pelos senadores democratas Joe Biden e Chuck Schumer, de que “juízes da Suprema Corte não devem ser confirmados nos anos de eleições presidenciais”. Merrick Garland, indicado por Obama já no fim do mandato do democrata, para substituir Scalia, foi rejeitado pelo Senado.
Confira: 8 pontos para saber sobre Brett Kavanaugh, indicado à Suprema Corte
Por mais que o Senado tenha rejeitado candidatos à Suprema Corte durante anos eleitorais (seis de 15, no total) com muito mais frequência do que durante os três primeiros anos de mandato presidencial (17% dos cerca de 160 candidatos), a Casa confirmou a maioria: William Johnson (1804), Melville Fuller (1888), George Shiras Jr. (1892), Louis Brandeis (1916), John Clarke (1916), Frank Murphy (1940) e Anthony Kennedy (1988), que recentemente anunciou sua aposentadoria.
Outros seis juízes foram aprovados em períodos de “pato manco”, como se diz na política norte-americana – isto é, ao fim do mandato de um presidente que não pode ser ou não foi reeleito. Isso inclui a nomeação de John Marshall por John Adams em 1801, após a derrota de Adams para Thomas Jefferson.
Mito n. 2: A Suprema Corte escolhe apenas casos importantíssimos
Os EUA registram cerca de 8 mil casos por ano de litigantes que perdem nas primeiras instâncias e recorrem à Suprema Corte – e os ministros julgam apenas 1% desses casos.
Seria natural supor que um tribunal desse nível escolheria apenas os casos mais importantes. Vários estudos, como dos professores H.W. Perry (Universidade do Texas), Doris Marie Provine (Universidade Estadual do Arizona), Lee Epstein (Universidade de Washington em St. Louis), Andrew D. Martin (Universidade de Michigan) e até meus próprios demonstram que, realmente, o tribunal se concentra em assuntos mais importantes. A mídia também enfatiza casos assim.
No entanto, o trabalho da Suprema Corte, que está no topo da hierarquia judicial federal, inclui harmonizar a legislação entre os 13 circuitos federais de apelação imediatamente abaixo dela. Os benefícios da aposentadoria federal, por exemplo, devem ser os mesmos para os trabalhadores do 9° e do 1° circuito. Um resultado da necessidade dessa homogeneidade é que a Suprema Corte lida com um número substancial de casos que envolvem a Lei de Segurança de Renda de Aposentadoria do Empregado (Erisa, na sigla em inglês).
Leia também: Que tipo de Suprema Corte teremos agora?
A cláusula de comércio da Constituição, que dá ao congresso autoridade para regular o comércio com as tribos indígenas, também resulta em casos que não chamam tanto a atenção da mídia, mas que são julgados pela Suprema Corte anualmente. Em Patchak v. Zinke, por exemplo, o tribunal confirmou que o Congresso tinha poder para exigir que um processo dos índios da tribo Pottawatomi contra o Secretário do Interior fosse indeferido.
Mito n. 3: As decisões da Corte sobre questões constitucionais são “a última palavra”
O princípio da revisão judicial dá à Suprema Corte o poder de atacar tanto leis aprovadas pelo Congresso quanto medidas tomadas pelo Poder Executivo, incluindo as do presidente. Em Marbury vs. Madison, de 1803, os juízes reivindicaram a autoridade para dizer o que é a lei. A Corte reafirmou esse ponto ao longo dos anos – em 1958, no caso Cooper v. Aaron, envolvendo a 14ª Emenda; em 1997, no caso de Primeira Emenda Cidade de Boerne v. Flores, quando foi derrubada uma lei que envolvia questões de liberdade religiosa.
Mesmo assim, as coisas nem sempre saem como os ministros querem. Em artigo, o cientista político Robert Dahl descobriu que a Suprema Corte era mais eficaz em sustentar a legislação do que em bloqueá-la. Caso a legislação bloqueada represente a vontade do povo, o presidente e o Congresso podem ameaçar a autoridade institucional do tribunal – limitando sua jurisdição ou reduzindo seu orçamento – a curto prazo. A longo prazo, os presidentes podem nomear juízes que vão apoiar a lei em questão.
Por mais que Franklin Delano Roosevelt tenha falhado em aumentar a composição da Corte para que juízes extras apoiassem seu New Deal, no fim das contas ele acabou nomeando oito novos juízes para ocupar as vagas já existentes. E eles chancelaram várias políticas, como as leis do salário mínimo e da hora máxima, que tribunais de instâncias inferiores haviam rejeitado.
Mito n. 4: O originalismo limita a discricionariedade dos juízes
Como nos EUA os juízes federais não são eleitos e só podem perder o cargo após um complexo processo de impeachment, estudiosos e os próprios magistrados têm tentado desenvolver meios para limitar o poder dos juristas.
Um desses mecanismos é a filosofia judicial conhecida como “originalismo”. Embora haja diferentes interpretações para o originalismo, todas convergem para o significado público original da lei ou cláusula constitucional. Como o juiz federal Robert Bork, já falecido, escreveu, “um tribunal legítimo deve ser controlado por princípios exteriores à vontade dos juízes”, como “texto e história”.
Veja: Estado não pode obrigar centros pró-vida a promoverem o aborto, decide Suprema Corte
Infelizmente, como o ministro Samuel Alito escreveu recentemente em Janus v. Federação Americana de Estados, Municípios e Funcionários Municipais, “no momento da concepção da Primeira Emenda, ninguém pensou se os sindicatos do setor público poderiam cobrar contribuição dos trabalhadores que não são sindicalizados”. Números esmagadores de disputas legais foram além da imaginação dos redatores da época.
Os autores da Quarta Emenda não poderiam ter imaginado que a polícia poderia monitorar a localização de um suspeito, sem mandado, por meio de sinais de celular. Também não existe evidência de que qualquer um dos autores da 14ª Emenda pensasse que tal cláusula também se estenderia à proteção das mulheres, como decisões da Suprema Corte acabaram por decidir.
Até mesmo Bork percebeu que o método originalista é incapaz de responder a todos os conflitos legais modernos. Juízes originalistas, inevitavelmente, farão “escolhas de valor”.
Mito n. 5: A nomeação de Bork não foi para a frente porque ele falou demais
Por falar em Bork... Quando o swing voter (um juiz cujos votos não são fáceis de prever, mas que muitas vezes é decisivo) Lewis Powell decidiu se aposentar da Suprema Corte em 1987, o presidente republicano Ronald Reagan indicou Bork para assumir a vaga. Como juiz conservador e estudioso sobre o tema, Bork escreveu de forma extensiva a respeito de importantes questões constitucionais. Por isso mesmo recusou a tática habitual de se esquivar de diversas questões durante sua sabatina. Muitos pesquisadores declararam que foi por isso que sua indicação não avançou.
O cientista político David Yalof concluiu que “as respostas de Bork às perguntas dos senadores, na verdade, prejudicaram sua própria causa”. Em “Batalha pela Justiça”, o jornalista Ethan Bronner descreve o problema ao dizer que a forte associação de Bork com a direita conservadora teve que ser minimizada, enquanto sua atuação legal precisou ser maximizada. A fala do juiz, contudo, atuou de forma contrária a esses objetivos.
Confira: A história de uma advogada negra pioneira e a vítima de seu caso mais famoso
De acordo com uma exaustiva análise feita por Paul Collins e Lori Ringhand, no entanto, os candidatos subsequentes responderam a tantas perguntas quanto Bork. A diferença é que eles responderam aos questionamentos “corretamente” – pelo menos do ponto de vista do povo americano e seus representantes.
Anthony Kennedy, por exemplo, disse aos senadores que apoiava o direito à privacidade, que a Primeira Emenda cobria mais do que apenas o discurso explicitamente político e que a cláusula da igual proteção da 14ª Emenda exigiria diversos requisitos para que a discriminação de gênero pudesse ser configurada. Todas essas posições estavam em desacordo com a opinião de Bork.
* Jeffrey Segal é professor de Ciência Política na Universidade SUNY Stony Brook.
Deixe sua opinião