Ontem, depois de conversar com meu amigo Rodrigo Kanayama, deparei-me com algumas inquietações sobre a escrita, o ensino e a vida. Fiquei me remoendo, incontrolavelmente demais. Existem tantas coisas a fazer que, quando pensamos na escrita e nas novas formas de comunicação não-escrita (podcasts e Youtube, por exemplo), as ideias fluem sem maior responsabilidade.
O meu primeiro compromisso com a escrita foi a dissertação de mestrado. Antes, só gostava de ler e escrevia de vez em quando (cartas e advocacia não contam...). Eu havia concluído as disciplinas da pós por volta de 1992, mas a escrita se arrastou com os anos, em decorrência de alguns dos desafios que a vida caprichou em trazer. À época, não havia prazo para a defesa, que dependia da responsabilidade do aluno. O que, no meu caso, autorizou muita coisa nova e bastante auto-sabotagem: os livros nunca acabavam de surgir; as fichas de leitura se sucediam; a sistematização formal a impedir a criação de fundo – e, mais do que tudo isso, a mistura de preguiça com medo. A moleza a gerar desânimo, mantendo-me na boa vida do estudante que, mesmo adulto, não consegue dar o próximo passo.
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Em 1997, houve um fato que alterou essa lógica. Não foi prazeroso, mas, visto 20 anos depois, gerou bons resultados. À época, eu já tinha quase 10 anos de epilepsia. As crises começaram na idade adulta, sem maior aviso. Os tratamentos e exames não conseguiam detectar a causa, mas só os efeitos, e lá fui eu pela vida, a tomar remédios que me deixavam prostrado e não conseguiam impedir as crises – que eram bastante democráticas, por assim dizer. Não tinham qualquer preconceito, não discriminavam o que quer que fosse, não distinguiam os ambientes nem as pessoas ao redor. Tive-as na cama, na rua, no carro, na sala de aula, no escritório, nos corredores – e até no metrô de Madri. Mais mares houvesse. Mas há algo de bom nessa experiência, reveladora da impotência diante dos fatos da vida e da falibilidade deste ser humano (ainda estou aprendendo essa parte...).
Contudo, o que aconteceu em 1997? Eu experimentei a maior crise epilética que até então havia sentido. Das minhas, a maior. Despertei sem saber se era dia ou noite, nem conseguir caminhar – e, o que me deixou mais atormentado, sem saber telefonar para a própria casa, pois não conseguia lembrar do número. Os colegas de escritório me acudiram. Era de manhã, mas só consegui me levantar no dia seguinte, decidido a resolver o assunto. Falei com meu médico, que disse existir exames mais sofisticados. Lá fui eu, para dentro daquele túnel, escuro e estreito, que faz tanto barulho e revela o que não gostaríamos de saber. Eu tinha um tumor no cérebro, na região da hipófise. Enfim, havia uma causa (deve ser por isso que, até hoje e cada vez mais, rejeito teorias dependentes do nexo de causalidade: nem sempre o resultado é agradável, além de algumas coisas acontecerem aleatoriamente...).
Recém-casado, sem ainda ser pai, tomei a decisão que precisava. Resolvi me submeter a uma cirurgia eletiva, para retirada do tumor. Foi instintiva: aquele desconhecido, o Sr. Inconsciente Bockmann Moreira, mandou. Não era precisa, em todos os sentidos: além de desnecessária, não garantia o resultado, eis que a intervenção poderia causar danos ainda maiores. Mas, como viver não é preciso, fui em frente. Não conseguia conviver com crises, nem com a sensação de impotência e a falibilidade que todas as semanas delas surgiam. Foi duro. Hoje, aqui estou eu, mais de 20 anos depois, a ser lido por você. Mas, qual o motivo para contar isso tudo? O que tem a ver com a escrita? Por que disso me lembrei depois de conversar sobre as angústias do ensino, comunicação, livros, podcasts e Youtube?
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Eu conto essa história por que foi naquele instante, há 20 anos, que me vi diante da necessidade de escrever. Quando soube que eu poderia morrer em breve, sem concluir minha dissertação. Sem deixar nem um livrinho. A cirurgia, com data e riscos marcados, revelou-me o óbvio, ao menos no meu caso: a finitude exige que se escreva. Quanto mais impossível a escrita, mais urgente ela se torna. Então, escrevi desesperadamente, começando o livro pelo capítulo do meio, que mais me agradava. O resto é história, muita história que hoje conto só um pouco. Mas não me dei por satisfeito, daí a constante renovação da angústia.
O que mais me aflige é só conseguir redigir textos jurídicos. Dia desses, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, li e ouvi textos sobre ruas, prédios, arames, pedras e placas de trânsito. Lindos. Vi fotos sobre isso, a revelar a vida. Aquela que nem sempre vemos, mas que consegui enxergar pelas palavras dos outros. Então, comentei com meu amigo João Amaral e Almeida: “Sou um bruto. Escrevo, com dificuldade e sempre limitado, sobre outras palavras, justo as mais pobres: aquelas das leis e dos textos acadêmicos. São coisas fáceis. Enquanto isso, esses sujeitos veem pedras e escrevem poesia!”. Já pensou? Mas, pronto, a vida é assim. Mesmo bruto, sou feliz. Afinal, sei que você, agora, está lendo estas palavras.
Logo, o título deste artigo não se reporta a duas das qualidades da escrita (a finitude e o prazer), mas à nossa precária condição humana, que é atenuada pela emoção desse ato de juntar riscos no papel. Por que me sei finito, hoje escrevo com prazer. Ao escrever, fazemos com que o ontem que abre o primeiro parágrafo deste texto permaneça amanhã e depois. A escrita dissipa as estranhezas entre presente, passado e futuro, entre tempo e espaço, entre ausência e permanência. Já é alguma coisa.