Se um dia houve incertezas, hoje é inequívoco que a Administração Pública brasileira pode valer-se de métodos autônomos e não-adversariais para a solução de controvérsias (conciliação e mediação), bem como recorrer a soluções heterônomas e não-jurisdicionais (arbitragem). Melhor dizendo: a Administração Pública tem o dever de se esforçar ao máximo para prestigiar aquela solução que, simultaneamente, não resulte na multiplicação de ações perante o Poder Judiciário e concretize a boa-fé e a eficiência. A antiga regra do ajuizamento irrestrito de demandas atualmente precisa ser compreendida como exceção. Assim, o prestígio ao interesse público exige que se evitem os conflitos; mas, caso surjam os impasses, a solução precisa evitar o acesso ao Judiciário – que só pode ser acionado em último caso.
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Isto é, na justa medida em que técnicas extrajudiciais para a resolução de conflitos são expressamente previstas em vários diplomas normativos (por exemplo, Lei n. 9.037/1996; Resolução CNJ n. 125/2010; Lei n. 13.105/2015; Lei n. 13.140/2015), todas essas opções são prestigiadas pelo princípio da legalidade como equivalentes à jurisdição. Está positivado no Ordenamento Jurídico brasileiro o sistema do tribunal multiportas – no qual não existe uma só alternativa cogente para a solução de qualquer controvérsia, mas várias (algumas sucessivas), todas à disposição da Administração Pública. Quem regerá a escolha administrativa será a combinação do caso concreto com a norma jurídica que o rege (legal, regulamentar e contratual), em vista dos direitos e interesses postos em jogo.
O que importa a positivação automática de competências administrativas equivalentes, advindas das novas leis. Com efeito, não se imagina que a legalidade possa ser deixada de lado pela Administração Pública. Isso desde o momento prévio (a definição da modalidade que será aplicada para a solução do conflito, quando couber) até aquele posterior (a aplicação/incidência da decisão de modo erga omnes, inclusive com o necessário respeito pelos órgãos de controle externo). Todas essas competências merecem ser exercitadas de modo eficiente, de molde a não frustrar o desiderato normativo. Não se pode supor como inexistentes ou ineficazes as leis definidoras de conciliação, mediação e arbitragem. Não há administradores públicos imunes a elas. Afinal, institucionalizam deveres imputados aos respectivos agentes, tanto ex ante (a escolha, discricionária ou vinculada, do método de solução e respectivo tribunal) quanto ex post (a deferência ao resultado e sua eficácia).
Em outras palavras, o que o princípio da legalidade dá com uma mão, ele não tira com a outra. A mesma Ordem Jurídica que exige obediência a específicas condições para a celebração de contratos (licitações, procedimentos, critérios, impedimentos, etc.), preceitua que a solução para os eventuais conflitos que surgirem nesses mesmos pactos deverão ser solucionadas por meio de determinadas técnicas (conciliação, mediação, arbitragem, etc.). Quem positiva esses deveres-poderes é a lei, a ser executada por meio da função administrativa do Estado.
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Isso implica a reconfiguração objetiva da competência outrora detida pelos respectivos agentes públicos. Com a nova legalidade substancial relativa à conciliação, mediação e arbitragem, as competências administrativas foram modificadas, ope legis, ao seu interno. Houve a mutação material do título jurídico que habilita este ou aquele agente público a praticar determinados atos administrativos. Nenhum deles detém competência para revogar administrativamente nem a Lei de Arbitragem, nem a de Mediação, nem, muito menos, o Código de Processo Civil (dentre outros diplomas). Ao contrário: devem-lhes plena aplicação, sob pena de concretizarem condutas contra legem. Por isso que precisam cumprir os deveres públicos de conciliar, servir-se de mediadores e, quando disso não advier resultado positivo, procurar a arbitragem.
Todavia, como se dá a aplicação dessas normas em face dos órgãos de controle externo? A resposta é simples: exatamente da mesma forma, em obediência ao princípio da legalidade. Afinal de contas, também o Ministério Público e os Tribunais de Contas submetem-se à lei e ao Direito (Constituição Federal, artigo 37; Lei n. 9.784/1999, artigo 2º, parágrado único, inciso I). Exercitam condutas secundum legis. Assim, ao redefinir competências administrativas, as leis reconfiguraram, de modo equivalente e simétrico, as competências dos órgãos de controle. Todos eles integram o Estado e exercem função administrativa (não-jurisdicional; não-legislativa). Em decorrência, devem respeito à conciliação, mediação e arbitragem promovidas pela Administração Pública.
Os órgãos de controle precisam tratar com deferência institucional o cumprimento da lei – e de cláusulas contratuais – por parte do gestor público. Não podem se imiscuir no mérito da decisão adotada em sede de conciliação, mediação e arbitragem – como se pudessem se substituir ao administrador público e/ou à corte arbitral e produzir soluções “ melhores” ou “ mais adequadas”. Essa ordem de invasão institucional implica subversão ao princípio da legalidade. Para nos valermos de expressão clássica, importa invadir o “mérito” das decisões e substituir-se ao órgão que a lei definiu como competente (a própria Administração, na conciliação e mediação; a corte arbitral, na arbitragem).
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Inclusive, tal obstáculo significa a impossibilidade de tais órgãos de controle externo pretenderem se substituir aos tribunais arbitrais – seja para impedir a sua instalação, seja para declarar a invalidade de cláusulas (inclusive a compromissória, direta ou indiretamente), seja para usurpar a competência quanto ao mérito da decisão final. Por exemplo, caso o contrato administrativo possua uma cláusula compromissória fechada, o Tribunal de Contas está impedido de pretender substituir-se à câmara arbitral e julgar o contrato (inclusive quanto à sua validade). Isso, quando menos, em razão do princípio da Kompetenz-Kompetenz (Lei n. 9.307/1996, artigo 8º, § 1º), que torna privativa a competência do próprio tribunal arbitral para apreciar a controvérsia e definir se é (ou não) competente para julgá-la. Ou seja, o Tribunal de Contas, o Ministério Público e o próprio Poder Judiciário não detêm competência para dizer se a corte arbitral pode (ou não) conhecer do caso concreto. Só quem pode fazer isso – inclusive para decidir pela própria incompetência – é o órgão arbitral definido no contrato administrativo.
Pode-se cogitar, inclusive, de casos em que órgãos de controle determinem que a Administração Pública instale a arbitragem – ou cumpra as determinações da sentença arbitral. Isto é, diante de um caso em que exista potencial conflito de interesses ou práticas deletérias ao interesse público, no qual o agente público e a pessoa privada se omitam quanto ao cumprimento da cláusula compromissória, nada impede que o Tribunal de Contas ou o Ministério Público façam com que o tribunal arbitral seja instalado, ordenando ao agente responsável que isso se dê (sob pena de punição individual). O que representará a exigência institucional ao cumprimento da lei e do contrato. Afinal de contas, não se pode supor que a cláusula compromissória possa significar omissão indevida do dever de boa administração.
Em conclusão e como se mencionou na abertura deste texto, fato é que a conciliação, mediação e arbitragem fazem parte do Ordenamento Jurídico brasileiro, inclusive em sede de Direito Administrativo. O que hoje se demanda é a aplicação das leis que as instituíram, especialmente pelo próprio Estado.
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