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Se no começo era a dúvida e a resistência, hoje é pacífica a incidência da Lei de Arbitragem a controvérsias que envolvam a administração pública brasileira. Muito embora a versão original da Lei 9.037/1996 já autorizasse a instalação de procedimentos arbitrais sobre assuntos de Direito Administrativo (tanto mediante cláusulas compromissórias quanto por meio de compromissos arbitrais), fato é que o conservadorismo e o trato ortodoxo do princípio da legalidade exigiram a positivação da Lei 13.219/2015, que acrescentou dispositivos expressos sobre o tema (em especial o § 1º do art. 1º: “A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”). 

Note-se que a letra da lei valeu-se da expressão “administração pública” em caixa baixa, sem maiúsculas, muito provavelmente para não restringir sua aplicação ao Poder Executivo, eis que parte da doutrina – igualmente tradicionalista – reserva caráter subjetivo à expressão “Administração Pública”, oriundos das maiúsculas (!), com incidência apenas a um dos poderes do Estado em sua função típica.

Contudo, certo é que a Lei de Arbitragem não faz essa restrição: também a ela se submetem os litígios que tenham como parte o Legislativo e o Judiciário, quando do exercício da função administrativa atípica (como se dá nos contratos celebrados pelas respectivas entidades). Tampouco há qualquer restrição de ordem federativa, eis que a arbitragem é processo que encerra jurisdição específica (assunto cuja competência legislativa é de titularidade da União). 

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Por isso, hoje se pode dizer que é o próprio princípio da juridicidade quem positiva a arbitragem como alternativa a ser obrigatoriamente levada em consideração nos litígios que envolvam a administração pública, direta e indireta, de todos os poderes e entidades federativas. A todos os órgãos e entidades administrativas foi acrescida essa nota distintiva, sem qualquer exceção. Trata-se de competência administrativa universal, portanto. As restrições são objetivas e equivalentes àquelas existentes para as demais pessoas: que os conflitos de interesse sejam circunscritos “a direitos patrimoniais disponíveis” (Lei 9.037/1996, art. 1º, caput). 

Ora, como nos contratos e ajustes administrativos o que a administração faz é exatamente dispor a respeito de seus interesses, modulando-os à hipótese factual, é por demais evidente que se trata de campo fértil a soluções por meio da arbitragem.

Na medida em que a administração disponibiliza os editais e minutas de contratos, constituindo novas relações jurídicas com particulares (com densidade e características próprias, caso a caso), nada de espantoso em se constatar o óbvio: se houve a disponibilidade prévia por parte da autoridade competente, essa característica persiste firme nos conflitos de interesse que porventura dela resultarem. Uma vez dentro dos negócios jurídicos administrativos, o ato de disposição de tais interesses convola-se em direitos e obrigações disponíveis, cuja fonte imediata não é a lei, mas sim o pacto.

Quem pode o mais (elaborar o edital e o contrato, especificando direitos e obrigações), pode o menos (submeter os conflitos oriundos do exercício de tais direitos e obrigações ao juízo arbitral). As restrições resultarão apenas se a cláusula contratual fizer remissão à aplicabilidade imediata da lei, trazendo para dentro do contrato deveres normativos com fonte primária legal (mas, a bem da verdade, aqui não se estará discutindo o contrato, mas a aplicação indeclinável de deveres legais – cujo controle escapa à arbitragem). 

De qualquer modo, fato é que a sentença arbitral a propósito de tais conflitos de interesse poderá implicar a alteração de situações jurídicas pré-constituídas, com decisões executórias que julguem rescindido determinado contrato (em desfavor de qualquer uma das partes), ou mesmo decretem a nulidade de alguma de suas cláusulas e/ou indenizações e reequilíbrios.

O julgamento do tribunal arbitral haverá de ser obediente à legalidade (rectius: “será sempre de direito”, como preceitua o artigo 1º, § 3º, da Lei de Arbitragem, orientado pela mandamento de “atuação conforme a lei e o Direito”, positivado pela Lei 9.784/1999 em seu art. 2º, parágrafo único, inc. I). À toda evidência, as sentenças arbitrais não serão apenas decisões executórias da letra fria da lei (meramente declaratórias). Haverão de ser muito mais do que isso, tal como aquelas do Poder Judiciário. 

Constatação que traz consigo a incidência da Nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei 4.657/1942, com dispositivos acrescentados pela Lei 13.655/2018), cujos preceitos dirigem-se especificamente a litígios que versem sobre atos, contratos e ajustes de Direito Administrativo. Em vigor desde o dia 25 de abril do corrente, os 10 novos artigos da LINDB são verdadeiros condicionantes de validade das sentenças que digam respeito a decisões afetas à esfera administrativa do Estado brasileiro. Alguns dos artigos merecem especial atenção frente à Lei de Arbitragem, como demonstrado pelo par de exemplos abaixo. 

Em primeiro lugar e da mesma forma que os tribunais arbitrais não podem proferir decisões violadoras do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada (LINDB, art. 6º e §§ 1º a 3º), tampouco elas podem ser proferidas “com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão” (LINDB, art. 20, caput). Se o fizer, haverá de demonstrar “a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”(LINDB, art. 20, par. ún.). 

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Por outro lado, o art. 21 da LINDB preceitua que as sentenças que decretarem “a invalidação de ato, contrato, ajuste” certamente necessitarão também “indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas”. Isso muito embora a redação do artigo mencione “decisão” proferida “nas esferas administrativa, controladora ou judicial”. Afinal e a toda evidência, trata-se de rol exemplificativo, que, seja por interpretação extensiva, seja por analogia, deverá ser aplicada às arbitragens (sob pena, inclusive, de potencial controle de nulidade da sentença pelo Poder Judiciário – fragilidade que precisa ser evitada ao máximo). 

O mesmo se diga quanto ao parâmetro interpretativo preceituado pelo art. 22 da LINDB, ao estabelecer o seguinte critério de equidade: “Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”. Isto é, o princípio da juridicidade determina que os julgadores – sejam eles da administração, do judiciário ou da arbitragem – não desprezem o mundo dos fatos, as efetivas circunstâncias e a exigibilidade da vida real que levaram o gestor a adotar esta ou aquela decisão administrativa. 

Mas isso é só o começo. Como se nota com clareza nestes poucos exemplos da Nova Lei de Introdução, os tribunais arbitrais precisam estar atentos não só aos contratos e normas (legais e regulamentares) que os regem, mas também e especialmente a tais condições de validade normativa para toda e qualquer decisão que pretenda arbitrar atos, procedimentos e contratos administrativos.

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