Falar sobre mutações contratuais nas telecomunicações é tarefa que me deixa, ao mesmo tempo, confortável e desconfortável. Afinal, é algo que venho estudando há mais de 15 anos - daí minha comodidade em tratar do tema. Porém, é um assunto que não para de ter desafios. Hoje, as transformações são velozes, desafiadoras e bastante mais intensas do que eram há 15 anos...
Daí meu absoluto desconforto em tratar do assunto, o que é muito bom. Isso exige teorizar sobre soluções regulatórias inovadoras, que tentem corresponder a dois escopos: por um lado, às demandas sociais, avanços tecnológicos e incremento de investimentos em infraestrutura e, por outro, a entender a legislação setorial na condição de facilitadora, acolhedora e implementadora de soluções prospectivas.
Ocorre que o estudo das mutações contratuais revela muito mais do que a primeira impressão conseguiria causar. A bem da verdade, se refletirmos um pouco, é fácil chegar à conclusão de que, quando falamos de mutações contratuais e regulatórias, o que está em jogo é a compatibilização entre várias medidas de tempo.
Ora, fato é que essa invenção humana – o tempo – funciona em dimensões distintas. Existe aquele tempo, muito veloz, dos avanços tecnológicos. Mas, há outro tempo, bem diferente e ainda assim rápido, das demandas socioeconômicas e de mercado. Já o dos investimentos de longa maturação, próprio de setores de capital intensivo como o das telecomunicações, é mais lento, demora mais a passar. Uma quarta medida de tempo, o legislativo, pauta a burocracia das votações pelo calendário eleitoral – este com periodicidades distintas de todas as outras. Isso sem se falar no tempo do judiciário, que também é todo próprio – outrora custoso, ultimamente ininterrupto, pois não respeita os feriados, nem fins de semana ou madrugadas.
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Cada um desses tempos conta com sua própria racionalidade; é dono de métricas que desafiam a antiga ideia do tempo do direito (que persiste um pouco medieval demais...). Por isso que tanto aprecio conversas sobre as mutações contratuais. É por meio delas que o direito da regulação se presta a harmonizar os diversos tempos, naturalmente perdidos no espaço.
O que o direito faz é um cerzido entre os tempos da tecnologia, dos consumidores, do mercado, do investidor, do regulador público, do legislador e do judiciário. Por meio dessa integração, as coisas mudam e, ao mesmo tempo, permanecem estáveis. Contratos perenes, mas não imutáveis. Isso porque o direito da regulação integra tais cronologias e torna possível que convivam entre si, sem rupturas. À essa costura que tenta harmonizar tempos incompatíveis, nós chamamos de segurança jurídica.
Afinal de contas, é para isso que o direito da regulação serve: para, de modo imparcial, tornar estável a prestação dos serviços de telecomunicação, apesar de tantos desafios em setor tão importante para as nossas vidas. Assim, quando menos desde 2010, eu tenho escrito e venho insistindo em que, no setor de contratos públicos de longo prazo – como é o das concessões e autorizações de telecomunicações, a segurança jurídica advém da certeza da mudança.
Isto é, esses laços que chamamos de segurança jurídica prestam-se a tornar certas as mutações; a assegurar que podemos ter a confiança legítima de que elas serão implementadas, se e quando necessárias. Prestemos bem atenção: a segurança jurídica em contratos de longo prazo é fruto da certeza da mudança. Pois esse aparente paradoxo é o deve se passar no setor de telecomunicações, em que a segurança jurídica, contratual e regulatória, deve se prestar a garantir a mutabilidade do negócio jurídico originalmente firmado – a fim de que ele sobreviva e evolua.
A segurança jurídica torna-se a garantia da efetividade das mutações contratuais. Desta forma e se é bem verdade que o conceito clássico da pacta sunt servanda destina-se a dar estabilidade à relação contratual, sufocando arroubos unilaterais (como se deu, por exemplo, nos reajustes tarifários no setor de telecomunicações em 2003), por outro lado, o respeito aos contratos não pode ser visto como óbice à adaptação contratual, em vista das circunstâncias objetivas que circundam o negócio jurídico.
Melhor: é justamente porque reverenciamos os contratos que devemos também respeitar as suas mutações, sobretudo aquelas objetivas, que decorrem dos fatos, da evolução tecnológica, das novas demandas de mercado – e não apenas das vontades unilaterais dos contratantes. Isso com lastro na constatação óbvia de que não se pode prever o futuro – isso é atividade de cartomantes, não de reguladores nem de contratos administrativos.
Passou-se a época, portanto, em que os juristas limitavam as mutações contratuais a conceitos de previsível e imprevisível. Essa ideia tradicional, que carrega na arrogância de sujeitos que imaginam prever o futuro, pretende que o contrato administrativo possa versar só a propósito de fatos que sejam previsíveis: aquilo que a vista enxerga com antecedência. Sujeitos contratantes como deuses que conhecem o futuro, desde o presente.
Isso como se de fato existisse essa clivagem – previsível é o futuro ordinário, que hoje eu conheço e escrevo no contrato; imprevisível é o extraordinário, que excepcionalmente desconheço e, por isso mesmo, permite a mutação –, a subverter a objetividade dos fatos e as reiteradas surpresas que habitam o nosso cotidiano. Esses conceitos são construídos, não são dados. Assim como o tempo, também são fruto da nossa imaginação. (Aliás, se alguém conseguir me dizer o que é previsível de acontecer amanhã – ou melhor, hoje à noite, nos contratos que foram homologados pelo Supremo Tribunal Federal, eu agradeço...).
Assim, com alguma reflexão é fácil de se constatar que o setor de telecomunicações é um dos melhores exemplos de que a segurança jurídica advém da certeza da mudança. Ele já gerou e consolidou três ordens de modificações bastante sensíveis, em diversos níveis de normatividade.
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A primeira, historicamente mais significativa, foi a transformação constitucional. A norma relativa ao setor de telecomunicações foi objeto de duas alterações substanciais na própria Constituição: uma, operada por meio de mudança formal – a EC 8/95, que subverteu a lógica puramente estatal do setor, e outra, através de mutações constitucionais propriamente ditas: a capacidade de aprendizagem da Constituição a fazer com que o texto normativo permaneça o mesmo, ao passo que as normas se transformaram. Imaginemos o conceito de autorização – na ADI 1.668, o STF consolidou sua mutação de poder de polícia em ato administrativo negocial (indo do parágrafo único do art. 170 até a nova redação do art. 21, passando pelo art. 174). De igual modo, a mutação do princípio da legalidade, agora a acolher a competência regulatória das agências independentes – conferindo autonomia ao art. 174 e restringindo a incidência do 84, inc. IV – todos da Lei Fundamental.
A segunda ordem de metamorfoses experimentada no setor foi a magnífica transformação da legislação ordinária. A Lei 9.472/1997 a instituir dois regimes jurídicos, simultâneos e em concorrência, para os serviços de telecomunicações: o de direito público, para contratos de concessão, e o de direito privado, para atos administrativos negociais de autorização. Mutação que, conforme mencionado, foi prestigiada ao nível constitucional (também na ADI 1.668).
Já a terceira espécie de mutações foi endocontratual – do lado de dentro dos negócios jurídicos administrativos. Os contratos de concessão e as autorizações foram celebrados em vista da realidade objetiva que os circundava: comunicação analógica de voz; rede física de transmissão; universalização por meio de orelhões de uso comunitário, etc.. Porém, houveram de se adaptaram a muitos dos desafios objetivos que a vida nos trouxe: telefonia digital; transmissão de dados; universalização por meio da telefonia celular, etc. E, hoje, experimentam concorrências disruptivas – como o WhatsApp, que faz a alegria de muitos e a tristeza de alguns poucos.
O setor de telecomunicações já demonstrou, portanto, que cumpre a máxima da evolução das espécies. Persiste vivo porque tem ampla e dinâmica capacidade de adaptação. Nada obstante as novas espécies que reiteradamente invadem o seu habitat natural, sejam tecnológicas, legislativas ou jurisdicionais, o setor sobrevive porque se adapta. Ou, em outras palavras, devido às mutações contratuais que efetivam a segurança jurídica dos negócios jurídicos e permitem sua prestação segundo a demanda dos usuários.
Ocorre que, felizmente, o setor está diante de novos e robustos desafios. O meio ambiente das telecomunicações experimenta modificações – as quais, necessariamente, se refletem nos contratos administrativos e na regulação setorial. Demandam o exercício de sua capacidade de aprendizagem. Transformações essas que não decorrem de singelas escolhas, mas, sim, da alteração da base objetiva do negócio jurídico: a inovação tecnológica, que determina outras formas de interação econômica entre os homens, está a exigir novas formas de interação jurídica. Isso em termos contratuais e regulatórios (concedente – concessionárias), mas também concorrenciais (concessionárias entre si e destas com as autorizadas) e prestacionais (concessionárias e consumidores).
Assim, não podemos fechar os olhos para o fato de que essas circunstâncias determinam a correspondente alteração dos negócios jurídico-administrativos, a fim de os adaptar às transformações objetivas do mundo real.
Já estamos a falar, portanto, da extinção dos contratos de concessão e de sua adaptação por meio de atos negociais de autorização. Negócios jurídicos típicos do Direito Privado Administrativo, em que coabitam o Direito Privado e o Direito Público, em simbiose dinâmica, a fim de cumprir a finalidade constitucional de bem prestar o serviço de telecomunicações, na medida das necessidades dos usuários.
O que exige o exame do PL 79/2016, que prevê a possibilidade da migração contratual, a pedido do concessionário, do regime público da concessão para o regime privado da autorização. Um contrato a se transformar, mediante permissão legislativa e regulatória, num ato administrativo negocial.
Isso ao lado da incorporação de determinados bens à pessoa prestadora, compensando-se essa transferência por meio de investimentos em rede de comunicação de dados (banda larga). Ou seja, a agregação patrimonial dos denominados bens reversíveis: boa parte da infraestrutura para a prestação do serviços, desde os imóveis até os elementos componentes das redes de telecomunicações (por exemplo, cabos de fibras ótica). O que, convenhamos, implicará alteração substancial no próprio conceito de bens reversíveis, por meio de sua restrição. Originalmente, seria reversível toda a infraestrutura de telecomunicações; com o projeto, serão os bens utilizados na telefonia fixa, na proporção dessa utilização.
Como não poderia deixar de ser, essa nova mutação traz alguns desafios, próprios de serviços como o das telecomunicações, constitucionalmente cometidos à União. O primeiro é o atendimento de áreas distantes, com baixa demanda e escassa competitividade. Tais zonas não trazem, por si sós, estímulos suficientes para o investimento por parte dos operadores – exigem a mão forte do regulador, para ampliar a capilaridade da rede. Isso vai exigir modelagens que permitam, por exemplo, a instalação de subsídios (o que é complicado, pois são ilegíveis) ou de fomento (o que envolve desembolso ou renúncia de verbas públicas). Não será fácil, mas não é impossível.
O segundo desafio é próprio o cálculo dos bens reversíveis. Ou, melhor, não o cálculo, mas um acordo a respeito dele. Afinal, todos nós sabemos fazer contas e existem pessoas que as fazem de modo sofisticado. O problema está em fazer com que cálculos diferentes cheguem a resultados equivalentes. Número esse que poderá trazer consigo a solução do primeiro desafio, compatibilizando o valor dos bens com os investimentos em áreas carentes. O que demandará alta capacidade de negociação, com extrema transparência e participação de amplo rol de autoridades públicas: quando menos, o Ministério das Comunicações, agência reguladora e Tribunal de Contas da União.
Em termos jurídicos – e nada obstante haja quem sustente o contrário – parece-me que o PL 79/2016 traz normas que não só tem acolhida constitucional, mas resolvem, de modo prospectivo, questões presentes. Os seus maiores desafios não são jurídicos em sentido estrito, mas na sua implementação fática – em seu day after, quando se vir obrigado a gerar soluções.
Ainda assim, existe sério desafio o direito da regulação das telecomunicações: conferir segurança jurídica a essa nova mutação, harmonizando as perspectivas e permitindo que o processo tenha seguimento e culmine numa solução consensual, que atenue as divergências. Com isso, assim espero, conseguiremos nos preparar para os próximos desafios e para as mutações futuras – afinal de contas, se uma coisa é certa, está no fato de que as transformações nas telecomunicações estão só no começo...
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PS: Este texto foi a base da minha conferência no seminário “20 anos da Lei Geral de Telecomunicações: desafios regulatórios para o setor”, do Programa Mestrado em Direito da Regulação da FGV Direito Rio. Agradeço imensamente ao convite que me foi formulado pelo Professor Doutor Sérgio Guerra e pelo Dr. Thiago Barbosa Gil.
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