Talvez a grande vantagem em se fazer previsões resida na mais absoluta irresponsabilidade do profeta. Prever significa antecipar o que ainda não aconteceu. Traz consigo o exercício da adivinhação; a arte de predizer o futuro, naturalmente incerto. Logo, ninguém pode ser culpado por erros decorrentes de algo que não se tem como saber (a não ser que prometa estar certo – o que não é o caso deste escriba).
Depois de transpor 30 anos no mundo do direito, escrever sobre o futuro da advocacia é algo bastante lúdico: um brinquedo que só a experiência permite ser divertido. Igualmente, é passatempo necessário, pois autoriza que imaginemos o que será da nossa profissão nos próximos 10, 20 ou 30 anos. Cogitar é importante, ao menos para refletir sobre a advocacia das próximas décadas, que será bastante diferente da que hoje estudamos e praticamos.
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Afinal, quando comecei a advogar, existia pouco (ou quase nada) daquilo que hoje é o cotidiano banal da profissão dos juristas. Não havia internet ou processos eletrônicos. Nada de arbitragem nem de mediação. Não se cogitava sobre o direito do consumidor ou da concorrência. O direito ambiental era coisa de excêntricos e, as agências reguladoras, de estrangeiros. Os processos coletivos eram compreendidos como se bipolares fossem. Praticamente não existia o processo administrativo. Ausentes estavam as leis de licitações e de concessões; bem como os estatutos do Idoso, da Igualdade Racial, da Criança e do Adolescente, etc. etc. A Constituição era uma Emenda (a EC 1/69); o Código Civil, de 1916, e o de Processo Civil, de 1973. O passar do tempo era muito lento e a legislação, arrogante: pretendia-se universal, eterna e imutável. Muita coisa mudou desde então, para o bem e para o mal.
Ocorre que tais modificações experimentaram impressionante aceleração de seu ritmo nos últimos cinco anos. A máquina do tempo teve seu funcionamento apurado, instalando inadvertidamente muitas surpresas para os advogados (e demais profissões jurídicas). As engrenagens foram aceleradas por fatos vindos de dentro e de fora do direito. Mas o que se sabe é que surgirão mais e mais desafios, em progressão geométrica. A festa está só começando.
Assim, como cartomante amador, vou tentar descrever cinco pontos de inflexão, alguns bastante disruptivos, para o futuro da profissão do advogado – e respectivas cogitações irresponsáveis.
O primeiro trata das formas de composição de conflitos de interesse. A racionalidade antiga vinculava-se à heterocomposição monocêntrica: só o Poder Judiciário poderia resolver os conflitos, desde que provocado por alguém com capacidade postulatória (só o advogado!). Contudo, hoje não é mais assim: seja por meio dos juizados especiais (que abrem mão de advogados), seja através de câmaras arbitrais e de mediação (que abdicam do Judiciário), seja através de plataformas como a semprocesso (que dispensam o Poder Judiciário e demais terceiros imparciais, ao fazer com que advogados conversem entre si em acordos não-presenciais, numa grande mesa de negociações virtuais). Pense-se também nas colaborações premiadas do processo penal e no dever de cooperação das partes no processo civil, com a conciliação a anteceder a contestação.
Logo, num futuro próximo os advogados não mais precisarão recorrer ao Judiciário – e nem mesmo sair de casa – para tentar resolver os problemas apresentados por seus clientes. Só os excêntricos farão essa futura coisa extravagante de ajuizar ações judiciais. Se o fizerem, precisarão saber fazer composições – e não colisões – de interesses. Incrementa-se a capacidade de negociação, atenua-se a litigiosidade. Advogado bom não será o brigão, mas o negociador. Porém, é igualmente provável que os clientes descubram que podem resolver sozinhos os seus problemas (presencialmente ou por meios virtuais), a derrocar o império da capacidade postulatória.
A segunda cogitação resulta do primeiro ponto de inflexão e tenta adivinhar o que será dos cursos de direito. Outrora estruturados tendo como espinha dorsal a disponibilidade (o direito privado, que ocupa os cinco anos do curso) e a inevitável solução de conflitos via Poder Judiciário (com a reserva de mercado aos advogados), eles precisam se repensar – e urgente! Afinal, o declínio da litigiosidade somente será fato se e quando os cursos de direito conscientizarem-se de que precisam abandonar a lógica oitocentista e devem se preocupar com outras coisas: negociação; mundo digital (moedas, inclusive); desfazimento de contratos; mediadores e conciliadores; colaborações premiadas, etc. etc.
Lamentavelmente e ao que tudo indica, muitos dos cursos vão continuar, por muito tempo, ensinando um direito que não mais existe, configurado de acordo com premissas antigas, que não valem mais. A preguiça vai persistir forte, a construir seguras zonas de conforto. Serão aulas de um ultrapassado law in the books, lançando os profissionais num mundo em que a law in action distancia-se do ensinado. Logo, os cursos precisam se reinventar, tão cedo quanto possível, sob pena de formar profissionais inaptos para as demandas dos respectivos mercados.
Já o terceiro ponto de inflexão diz respeito aos escritórios de advocacia e seu funcionamento. Outrora estabelecidos em grandes imóveis, com placas de bronze na porta e presença física de todos os advogados, eles precisarão valorizar a produção feita em outros lugares (casa, sítios distantes, aviões, etc.). O que incrementará a responsabilidade de todos e de cada um dos advogados, sobretudo com metas a serem atingidas (do cliente e do escritório). A atividade exigirá comprometimento com resultados e a disponibilidade para desenvolver soluções taylor made.
Por outro lado, essa mudança do regime de tarefas automáticas para o de construção de soluções é fundamental para que se possa alterar a configuração física dos escritórios. O que demandará o aumento – qualitativo e quantitativo – da especialização dos profissionais do direito (em especial dos advogados).
Isto é, na medida em que já se consolidou a ideia da relevância dos fatos na apreciação das causas pelo julgador (seja ele o juiz, seja o árbitro, seja mesmo o negociador), os advogados necessitam, cada vez mais, conhecê-los a fundo. Precisamos saber dos negócios do cliente e ser especialistas em energia elétrica, seguros, transportes, medicamentos ou Project finance para conseguirmos entender qual é a demanda. Para isso, é indispensável o conhecimento consistente em Teoria do Direito (que permite navegar em mares desconhecidos), mas também e especialmente, em temas alheios ao direito em si mesmo: economia, engenharia, finanças, meio ambiente, medicamentos, medicina, energia, portos, ferrovias, etc. etc. Foi-se o tempo do normativismo puro.
O que importa a quarta cogitação, pertinente ao tamanho dos escritórios. É provável que sempre haja escritórios gigantes, full service, mas talvez eles venham a sentir algum abalo em sua configuração. Isso em decorrência do fluxo das demandas de massa para ambientes virtuais. Ou seja, a combinação de ambientes virtuais de negociação com a necessidade de elevada expertise implicará a queda do volume de ações judiciais. A não ser que os escritórios cresçam desmedidamente – e criem setores especializados em litígios que versem sobre as maçanetas que ficam do lado esquerdo da porta, por exemplo. Esse crescimento desproporcional pode gerar custos inadministráveis – e é preciso ficar alerta.
Assim e ao que tudo indica, o tempo de escritórios com centenas de advogados a atender repetitivas demandas de massa pode estar com os dias contados. Mesmo porque tais litígios tendem a ser objeto de negociações e soluções coletivas – seja por meio de ações civis públicas, seja por meio de súmulas vinculantes, repercussões gerais e do sistema de precedentes. A unificação das decisões de massa, com caráter vinculante, gerará impacto significativo nos ambientes jurídico-corporativos.
A quinta - e última, por ora – cogitação irresponsável resulta da fusão das quatro anteriores: império da negociação; alteração dos cursos de direito; elevada especialização técnica e configuração artesanal dos escritórios. E talvez ela seja a mais importante de todas: o significativo incremento da responsabilidade do advogado em bem entender e envidar os melhores esforços na demandas dos clientes, inclusive para dizer não. Explico-me: está em vias de ter fim o malfadado tempo em que havia advogados que não contratavam trabalho e conhecimento, mas suposto prestígio e conversa fiada. Sempre diziam sim e prometiam a solução de todos os problemas (às custas dos clientes). Vendiam imaginária influência pessoal e não a imprescindível especialização meritocrática. Isso deve ter um fim – e os ventos sopram nessa direção.
Atualmente, inclusive em decorrência da previsão no Novo Código de Processo Civil (NCPC) quanto a elevados honorários e demais custas de sucumbência (agravadas em sede recursal), os advogados precisam aprender a dizer não aos seus clientes, sob pena de piorarem sensivelmente a situação deles. Afinal, o foco da advocacia é o cliente – e não o próprio advogado. O mandato é um privilégio concedido normativamente aos que possuem inscrição na Ordem dos Advogados. Por isso, deve ser exercido em regime de função: atende-se com excelência técnica ao interesse do cliente – e só isso. Assim e ao contrário de estimular o litígio (como ensinam algumas faculdades e cursinhos de direito), os advogados precisam aprender a resolver os problemas do cliente, sempre de modo transparente e republicano, orientados pelas noções fundamentais de compliance. Se for o caso, devem advertir o cliente e negar o atendimento da causa. O que certamente implicará a valorização dos profissionais jurídicos.
Como o leitor constatou desde a abertura deste texto, as cogitações acima pretendem ser inconsequentes. Contudo, não são levianas: partem do pressuposto de que o direito e o exercício da advocacia experimentarão mudanças cada vez mais céleres e radicais. Não tenho conhecimento de quais efetivamente surgirão, mas uma coisa é certa: sei que nada será como antes amanhã.
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