Em seu alvorecer, o Direito Administrativo foi concebido como mecanismo de limitação ao poder das autoridades públicas. Disciplinava o relacionamento delas com as pessoas privadas por meio da legalidade. Assim, aplicava a separação dos poderes, ao parametrizar o exercício das prerrogativas da Administração Pública e seu controle externo.
Estruturalmente, preocupava-se com os órgãos e entidades administrativos do Estado e, funcionalmente, com o exercício das respectivas competências. Tudo isso continua vivo, mas está em eclipse. O Direito Administrativo deste século 21 não é só isso. Ou, melhor: ele está muito mais outro. Precisamos, urgentemente, tomar consciência disso.
Já há alguns anos vem-se colocando à luz – academicamente e na prática – essas mutações. Bastam dois exemplos: as “Transformações do Direito Administrativo”, livro precursor da professora Patrícia Baptista, e o artigo-cujo-nome-diz-tudo do grande Carlos Ari Sundfeld: “O Direito Administrativo entre os clips e os negócios”. Misturando-os, talvez fique mais claro que o Direito Administrativo transformou-se e já não mais prestigia o império dos carimbos, clips e prateleiras que arquivam o passado, mas tem foco no futuro. Não exclui nem rejeita ou hierarquiza por meio da execução cega à letra da lei. Ao contrário: precisa acolher e negociar soluções. Vive de contínuas mutações, que conferem segurança ao seu permanente porvir.
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Bem vistas as coisas, essa estruturação normativa tem um marco: a positivação do princípio da eficiência no artigo 37 da Constituição, lado a lado com a legalidade, moralidade e publicidade. Este princípio vem sendo intensamente aplicado pela legislação infraconstitucional: pensemos nas agências reguladoras, nas organizações sociais, nas autorizações, concessões e parcerias público-privadas, na lei anticorrupção, nas mediações e arbitragens.
Mais: reflitamos a propósito da modificação experimentada pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, cujos recentes artigos tratam de temas até então outsiders no Direito Administrativo: dever de conjugar a aplicação de preceitos indeterminados com seus efeitos práticos (arts. 20 e 21); garantias a agentes públicos responsáveis (arts. 22 e 28); irretroatividade de novas interpretações, acompanhada de protocolos de transição (arts. 23 e 24); negociação público-privada e ajustes de conduta (art. 26); dever de compensar benefícios ou prejuízos injustos (art. 27); dever de realizar consultas públicas (art. 29) e o dever de estabilizar as decisões administrativas e lhes conferir uniformidade (art. 30).
Tais diplomas trazem significativa alteração estrutural do Direito Administrativo, conjugada com novas funcionalizações de suas competências. As transformações já incidiram e, hoje, os negócios são efetivados em blockchains digitais. O Direito Administrativo dos clips pode ser estudado , mas se aproxima da arqueologia jurídica.
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Estruturalmente falando, o Direito Administrativo já não é apenas o monopólio da Administração Pública. Expandiu-se e convive com pessoas privadas e máquinas que exercem funções publicas. A sua normatividade é multinível e multifontes (União, estados, municípios, convênios nacionais e internacionais, consórcios públicos, agências reguladoras, contratos administrativos, consultas públicas, códigos de compliance de sociedades privadas, etc.). Logo, os elementos essenciais com os quais o Direito Administrativo é gerado são bastante diversos daqueles do século passado. Ele brota de outras fontes e se estrutura em raios que transcendem os tradicionais poderes do Estado.
Em suma, os Poderes Públicos deixaram de ser monopolistas do interesse público. Hoje, são public interest takers, não public interest makers: eles recebem o interesse público consolidado democraticamente em crescentes graus de juridicidade (da Constituição até os atos e contratos, passando pelas leis, regulamentos, códigos de conduta, etc.). Essas camadas pluricêntricas necessitam de ser compreendidas, preservadas e aplicadas.
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Além disso, a função do Direito Administrativo passou a ser outra. Ele não mais se presta apenas a executar a lei, mas a criar soluções sob a proteção do Direito. Respostas que podem brotar da própria Administração Pública, mas também de pessoas privadas – que recebem competências público-privadas e assim exercitam a função administrativa. As organizações sociais, as certificações privadas com efeitos públicos e os códigos de compliance são algumas das provas disso.
Tais mutações estruturais fazem parte do nosso cotidiano. Integram a nossa vida, do nascimento à morte. Por isso, precisamos nos sentar à mesa com elas e construir amigavelmente o Direito Administrativo do futuro.
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