Neste ano, viajei demais, todas as semanas, em muitas delas mais de uma só vez. Ao menos para mim, é esquisito: o meu lado matuto não se acostumou à ideia de acordar em Curitiba, trabalhar em São Paulo e dormir no Rio de Janeiro. Mas o costume gera a sobrevivência – e revela vantagens escondidas. Aqueles tubos de metal com turbinas em volta, que descolam do chão e nos fazem ver o mundo de outro jeito, também permitem a visita a outros mundos.
Nos meus dias de hoje, poucos são os lugares onde se pode ler tão bem, com começo, meio e fim. Sem telefones ou interrupções (fones de ouvido inibem as conversas dos ansiosos ao lado...). A leitura torna as longas viagens curtas.
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Como meus livros são basicamente os de Direito e romances, ao lado de alguma coisa de crítica literária, política, negociação e ciências disruptivas, as coisas acabam se misturando. A sério: o cérebro fica embaralhado. O que é bom, eis que recentemente me conscientizei de que o desassossego é proveitoso. Antes, minha natural falta de concentração e de estabilidade incomodavam; hoje, tenho-as como incentivos. A inquietude precisa ser domada, daí ela se torna a grande vantagem, o enorme prazer de ampliar a ignorância e renovar as descobertas. E as revelações surgem mesmo é nas encruzilhadas.
Um dos livros mais maravilhosos que li neste ano, desde o título, foi A verdade das mentiras, de Mario Vargas Llosa. É uma declaração de amor à literatura como experiência humana, analisando as grandes obras de ficção do século XX. São 36 ensaios, resenhas dos livros e autores que explicam o patrimônio humano. A literatura a nos unir e a fazer com que sobrevivamos. Os textos são belíssimos, a maioria dos quais comoventes. Contam muito do que se passou à nossa volta no século passado (e permitem que tateemos o que acontece nos dias de hoje). O que mais me tocou, porém, foi logo a primeira frase do primeiro ensaio, eis que repercutiu no que penso sobre estudo e ensino do Direito.
“Desde meu primeiro conto sempre me perguntaram se o que eu escrevia ‘era verdade’.” Atenção: se o que escrevemos é (ou não) “verdade”, mesmo quando é ficção! Como ficar impassível diante disso e deixar de refletir a propósito da vida no mundo do Direito?
Será que o que pensamos, escrevemos e ensinamos “é verdade”? Como resistir às verdades estampadas em manuais que retratam algo que não existe para além de suas próprias páginas? De que maneira tentar explicar por que tais verdades são aplicadas, negadas ou reinventadas nos tribunais? Quantas verdades existem? Onde elas estão no nosso mundo do Direito? Ou será que nada disso tem importância?
Talvez a resposta esteja em outra frase de Vargas Llosa, ao dizer que: “não se escrevem romances para contar a vida, senão para transformá-la, acrescentando-lhe algo.” Essa me pegou com força; calou fundo. Afinal, não escrevemos leis para contar a vida, mas sim para transformá-la. A fim de tentar fazer com que as pessoas alterem suas condutas e produzam resultados fraternos e justos. Porém, o que se passa quando interpretamos essas mesmas leis? Podemos submetê-las a novas transformações, acrescentando-lhes ou lhes suprimindo algo? Nesse romance, onde se situa a constituição brasileira?
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Daí foi um passo para o meu pensamento ser transportado para a interpretação jurídico-constitucional. Sobretudo aquela que o Supremo Tribunal brasileiro ultimamente tem feito. Basta um par de exemplos: a prisão em segunda instância versus a interpretação do art. 5º, inc. LVII (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) e o controle judicial do indulto (competência privativa do Presidente da República, nos termos do art. 84, inc. XII). Os dois assuntos estão sendo tratados pelo STF (o gerúndio, neste caso, é trágico: revela a precariedade da circunstância) e, nem lá dentro, geraram qualquer conforto.
Em ambos os casos, o que me parece – com toda a reverência à instituição – é que o STF está a escrever uma constituição que altera a que nós temos. Transformação que tem como ponto de partida a visão de mundo de alguns ministros.
“Os homens não estão contentes com o seu destino, e quase todos – ricos ou pobres, geniais ou medíocres, célebres ou obscuros – gostariam de ter uma vida diferente da que vivem. Para aplacar – trapaceiramente – esse apetite surgiu a ficção. Ela é escrita e lida para que os seres humanos tenham as vidas que não se resignam a não ter. No embrião de todo romance ferve um inconformismo, pulsa um desejo insatisfeito.”
Quando li essa frase do livro de Vargas Llosa, em algum dos aviões que me circunscreveram, não pude deixar de expandir minhas reflexões. Será que os atuais capítulos do grande romance constitucional brasileiro estão sendo escritos a fim de criar a constituição que nós não temos, aquela dos sonhos, e não a da realidade cruel que nos cerca? Vivemos uma ficção ou uma verdade constitucional? Seria essa a missão do STF?
Todavia, se pensarmos bem, fato é que a redação do primeiro capítulo do nosso romance constitucional – aquele cuja função é a de permitir o desenvolvimento da história, ao apresentar as personagens (sobretudo a principal) e introduzir a história subjacente – não é de competência do STF. Ele só pode desenvolver o enredo, mas está impedido de dar nascimento à sucessão de acontecimentos que constituem a ação.
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Note-se bem a intenção do seguinte pleonasmo: quem pode constituir o romance constitucional é só o poder constituinte, não quaisquer um dos poderes constituídos. Todos nós, juristas, temos simpatia pela constituição e nos identificamos com o que ela nos conta. Podemos duvidar do seu carisma, nela encontrar defeitos e dela sentir mil conflitos internos, mas é justamente disso que são feitas as paixões.
Imaginar que é possível criar a constituição ideal, por meio de onze seres humanos marcados pela nossa principal característica – a imperfeição – é trazer a incomensurável vida real, com toda a sua carga caótica, para dentro da norma constitucional. Fazer com que o Direito se aproxime da ficção traz esse enorme dilema, que não cura a asfixia, eis que, instantes depois, retornaremos à vida real.
“O regresso à realidade é sempre um empobrecimento brutal: a comprovação de que somos menos do que sonhamos.”
Tão belas quanto impiedosas, estas palavras de Vargas Llosa retratam o que se passa no atual capítulo do romance constitucional brasileiro. Ficamos sabendo que a liminar de soltura irrestrita para aqueles presos antes do trânsito em julgado é concedida, a fim de ser cassada no mesmo dia. O indulto beneficia os presos, mas o STF suprime o benefício, ao decidir que pode escolher quem o merece. Se isso nos causa transtornos, nem consigo imaginar o sentimento daqueles presos – pouco importa quem sejam – que recebem a lufada, instantânea e precária, da liberdade. Essa narrativa de montanha russa, que talvez funcione bem na literatura vanguardista, é péssima para a memória constitucional.
Afinal, como advertiu Richard Posner (Law and Literature), se o Direito pode ser assemelhado à literatura, como o grande livro dworkiniano que lemos e escrevemos, fato é que aos tribunais não cabe a criação do primeiro capítulo. Muitas vezes, nem do segundo ou terceiro, mas sim, e quase sempre, do episódio subsequente da narrativa. Daí a ideia de precedentes. Daí a noção de primazia legislativa. Apenas na hipótese – impossível – de a norma constitucional tornar-se perfeita e absoluta, estudiosos e tribunais parariam de gerar o romance. Contudo, não se pode escrever o 31º capítulo sem atentar para o que consta daquele publicado aos 05 de outubro de 1988.
Paradoxalmente, a asfixia que as viagens de avião podem causar também permite a saída para outros mundos, rumos diversos, que não aqueles da decolagem e aterrisagem. Porém, não extingue as angústias de quem deseja preencher as insuficiências da vida, seja ela verdadeira e ficcional, seja real e constitucional. Resta saber o que fazer com esses dilemas. Eu não sei.
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