Em 1988, às vésperas da promulgação da nossa Constituição, alguns juristas acenaram com uma tese – algo tresloucada, aos meus olhos – a respeito do Supremo Tribunal Federal (STF). Basicamente, o que se defendia era a necessidade de alteração integral da composição da Corte, imediatamente depois da nova Constituição. A ideia era a de que os ministros que lá estavam teriam se acostumado a aplicar a norma constitucional à luz da Emenda 1/69 (ou diplomas anteriores), representativa do regime civil-militar que era então encerrado. Não estariam aptos - ao menos, não conscientemente – a aplicar a nova Constituição segundo as premissas dela. O cachimbo teria feito a boca torta; o hábito da compreensão antiga poderia subverter a Constituição e impedir sua plena eficácia. Precisaríamos, portanto, de outros ministros, mais jovens e arejados, que não trouxessem consigo os vícios do constitucionalismo não-democrático, já vencido. 

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Contudo, o que os defensores dessa tese aparentemente não realizaram é o fato de que ninguém, absolutamente ninguém no país inteiro, conhecia a nova Constituição. Ora, todos os juristas de então haviam estudado direito à luz do momento pretérito, sob a vigência das Constituições – ou arremedos de Constituições – anteriores. Os livros, teses e artigos acadêmicos tinham como objeto de estudo ou a teoria do direito constitucional ou a norma constitucional positivada. Antes de outubro de 1988, ninguém, a não ser as cartomantes, conhecia o futuro do direito constitucional brasileiro. Claro que havia expectativas, notícias e debates acalorados, mas uma coisa é certa: só se conhece a Constituição quando examinada por inteiro e, com base nessa compreensão harmônica, assim ela é aplicada aos casos concretos. A norma constitucional não existe apenas em abstrato, divorciada dos desafios fáticos que demandam sua incidência. A força normativa se revela no mundo real; na verdadeira Constituição, aquela que faz parte da nossa vida. 

Logo, se é bem verdade que os ministros que compunham o STF em outubro de 1988 não tinham familiaridade com a Constituição então posta em vigor, também é certo que ninguém mais a conhecia. Os outros ministros trariam os mesmos supostos vícios, a não ser que fossem substituídos por alunos do primeiro ano das faculdades de direito... Porém, nem mesmo essa solução fantasiosa seria eficaz, eis que os professores dessas faculdades também se formaram sob o constitucionalismo pretérito (nada obstante muitos deles terem estudado no exterior ou mesmo compreenderem o direito constitucional sob perspectivas futuristas e até revolucionárias). Ao fim e ao cabo, o desafio só poderia ser resolvido com calma, pelo transcurso da marcha histórica. Constatação que experimentamos todas as semanas: afinal, não há dia sem surpresas no STF. 

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Mas, por que trato desse assunto – um pouco empoeirado, é bem verdade – neste breve artigo que pretende trazer à luz alguns dos dilemas do ensino jurídico? Devido a motivo que é, ao mesmo tempo, bastante simples e muitíssimo desafiador. O exemplo do STF pós-outubro de 1988 revela constatação tão óbvia quanto oculta nos debates sobre os desafios que advogados, procuradores, juízes, defensores e promotores hoje enfrentam: o fato de que, se não mudarmos o ensino do direito, o quanto antes, permaneceremos atados ao passado. Se havia uma situação a ser superada em outubro de 1988, ela não estava no STF, mas nas faculdades de direito. Pois é exatamente essa a síntese das encruzilhadas onde hoje se encontra o ensino jurídico: a necessidade de serem alteradas as técnicas de ensino, o conteúdo das disciplinas e, sobretudo, a estrutura dos cursos de direito. 

Se pensarmos bem, é fácil constatar o muito que se discute a propósito do imenso volume de processos que deságuam no Judiciário todos os dias. De igual modo, há desafios a respeito dos novos direitos e de sua convivência com a tecnologia: todos sabem o que são o Uber, o WhatsApp e o Netflix. Isso sem se falar no declínio da litigiosidade oficial e de sua imprescindível substituição pelos meios não-estatais de solução de controvérsias (mediação, arbitragem, conciliação). Por outro lado, o Novo Código Civil prescreve o dever de cooperação entre as partes e o Código de Processo Penal foi subjugado pelas colaborações premiadas. Porém, tais provocações são postas a lume não na nascente do rio (o ensino jurídico, onde brota o conhecimento teórico), mas sim onde ele desemboca (a prática jurídica, que depende do conhecimento teórico para vencer os desafios do cotidiano). 

Reverberando os desafios acima arrolados, fato é que a maioria dos cursos explicam a teoria dos contratos (mas não como fazê-los nem os desfazer); ensinam a teoria do serviço público, como se todas as prestações coletivas se subsumissem a esse conceito, e lecionam apenas processos litigiosos dependentes do Estado-Jurisdição. A estrutura dos cursos de direito, salvo exceções, contempla a mesma sequência de matérias desde que o mundo é mundo – como se não houvesse modificações sensíveis no modo de o direito ser compreendido e aplicado. Tal como se estivéssemos formando futuros ministros do STF à luz da Emenda Constitucional 1/69 (ou da primeira redação da atual Constituição, desprezando suas mutações formais e materiais). Há algo de muito errado aqui: tais faculdades não estão preparando os seus alunos para o mundo real, mas para um imaginário ultrapassado (que pode ser saudoso, bonito e interessante, mas não mais existe).

Assim e muito embora todos saibamos que as mudanças são presentes e radicais, fato é que a maioria das faculdades de direito ainda não despertaram de seu sono de beleza novecentista, tal como a princesa do conto de fadas. Vivem no século XX (quando não, nos XVIII e XIX). A bem da verdade, alguns programas de cursos de direito mais se parecem com a feiticeira que pica o dedo dos alunos, a bela adormecida da nossa história, com o fuso de uma roca em que se enrolam os livros antigos, para que todos caiam num sono profundo, à espera do príncipe encantado que dará o beijo de amor verdadeiro. Todo o reino dorme, cercado por espinhos do passado, aguardando eternamente o príncipe que não tenha medo, tal como na versão do conto escrita pelos irmãos Grimm. O detalhe está em que, na vida real, o príncipe não é esse terceiro ausente, mas precisa ser todos e cada um de nós.

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