Desde o seu nascimento, são muitas as Constituições dentro de um só diploma constitucional. Promulgada há 29 anos, depois de um biênio de trabalhos confusos da Assembleia Nacional Constituinte, a Lei Fundamental brasileira nasceu plúrima. Contém preceitos com diversidade sem igual, unificados e multiplicados em vários artigos, incisos e parágrafos. Ela é gigantesca: originalmente, 245 artigos, alguns dos quais com dezenas de preceitos autônomos (só o art. 5º tinha 77 incisos – haja direito fundamental! – fora as cláusulas de abertura de seus parágrafos). A “decisão constituinte” foi marcante, especialmente para pôr fim ao regime ditatorial civil-militar, mas fato é que resultou num texto impreciso, excessivo, complicado e desafiador.
Porém, não é de se estranhar que seja assim. A ampla maioria dos constituintes compunha os quadros do PMDB – que, desde então, impera na política brasileira e alberga todas as matizes ideológicas (ou seja: não representa qualquer uma delas, eis que o tudo equivale ao nada). As eleições haviam sido regidas pelo Plano Cruzado, que estabilizou (provisoriamente) a economia brasileira e fez com que o PMDB regesse a política – não só na Presidência da República e Assembleia Constituinte, mas também em 22 dos 23 governos estaduais. Convenhamos, não é pouca coisa.
A essa ausência de linearidade político-ideológica, somou-se constituintes não eleitos com esse atributo, eis que o mandato de alguns senadores ainda não havia se encerrado. No entanto, tais constituintes assim-não-eleitos integraram a Assembleia Nacional. Como se não bastasse, os trabalhos foram simultâneos aos da legislatura ordinária. O Poder Constituinte era integrado pelos mesmos de um dos constituídos (o Legislativo); ele vinha à superfície quando nos momentos de unicameralidade do bicameralismo. Por fim, o processo foi regido pelo caos: o regimento interno só foi aprovado depois de instalados os trabalhos, mas precisou ser modificado quando se descobriu que implicava a criação de duas categorias de constituintes – os que decidiam e os que sugeriam.
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O exercício do Poder Constituinte foi dividido em oito comissões temáticas, cada qual com três subcomissões (24 grupos autônomos, portanto). Desde o seu nascedouro, não havia limites. Contudo, em seguida vinha a sistematização, em que só 93 dos 599 constituintes organizariam (leia-se: escolheriam) o projeto a ser votado pelo plenário. Aqui, era necessária maioria absoluta (280 votos dos 599) para rejeitar o que essa comissão de sistematização havia preferido. No meio do caminho, quando se detectou tal, digamos assim, exotismo constituinte, as regras foram alteradas e se conferiu maior poder ao plenário.
O resultado dessa dispersão confusa foram várias Constituições – cada comissão e cada constituinte queria um dispositivo para chamar de “seu” -, aglomeradas num só texto normativo. As múltiplas subcomissões albergavam legisladores interessados em questões bastante específicas (muitos obedientes a lobbies – não só da iniciativa privada, mas também e especialmente, de funcionários públicos). O que gerou a descoordenação dos projetos, com sobreposições que até hoje persistem. Quando a votação da matéria gerava impasses e bloqueios, remetia-se a solução aos “termos da lei”. Isto é, não se resolvia o problema, mas se o delegava ao futuro. Muitas vezes, criando expectativas inviáveis de ser cumpridas. Houve também parcelas do texto constitucional que simplesmente não foram submetidas à votação, mas redigidas por alguns poucos e depois referendadas. Mas isso é só o começo da história.
Isso porque, mesmo depois de promulgada, a atual Constituição brasileira experimentou intensas e extensas modificações, tanto formais quanto materiais. As primeiras estão nas Emendas: foram seis na revisão de 1994, mais 97, entre 31 de março de 1992 (em assunto que é o suprassumo da importância constitucional: a remuneração de deputados estaduais e vereadores) e 04 de outubro de 2017 (a denominada “reforma política”). Já, as alterações substanciais, são as mutações operadas pelo nosso Poder Constituinte de plantão: o Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte Constitucional modifica constantemente o sentido das normas (veja-se o que se passou quanto aos efeitos da união homoafetiva, bem como o significado do mandado de injunção: os textos persistem os mesmos, as normas são outras), bem como a respectiva materialidade formal (no julgamento da ação de inconstitucionalidade contra a Emenda 62, que tratava dos precatórios, o STF fez escolhas positivas e ditou a redação do texto constitucional).
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O que exige dizer que a Constituição que hoje rege a nossa vida não é exatamente a mesma que foi promulgada em outubro de 1988. Originalmente redigida em termos amplos e minuciosos, houve de ser submetida ao dinamismo de cronologias e desafios cada vez mais velozes. A atual Constituição brasileira assume novos significados a cada dia que passa. Amanhã será um novo dia constitucional.
Por isso que a batizar de “Constituição de 1988” implica, por um lado, o culto ao passado e, por outro, a expectativa de que surja uma nova. Ainda que inconscientemente, fixar a data de 1988 importa reviver o que se dava no passado brasileiro: a periodicidade de várias Constituições, promulgadas, suspensas ou outorgadas de tempos em tempos (1824; 1891; Revolução de 1930; 1934; 1937; 1946; 1964; 1967; 1969). A fixação de uma cronologia perversa, que celebra o passado e se esquece do futuro. Talvez seja o caso de nos conscientizarmos de que a nossa Constituição não é a de 1988, mas sim a atual – que se renovará, formal e materialmente, no porvir.
Mas atenção: essas considerações, talvez realistas demais, não pretendem vir em desdouro da Constituição brasileira. Nem se vinculam a correntes que buscam a instalação de novas assembleias constituintes (parciais ou totais). Nada disso. O que se pretende é pôr em foco o óbvio: a Constituição é fruto do trabalho humano, naturalmente marcado pela imperfeição. Ela não é, felizmente, uma dádiva divina, que nasceu perfeita e assim merece ser aplicada. Ao contrário: exige que nos conscientizemos de que precisa ser estudada, renovada e aplicada todos os dias. Demanda esforço e comprometimento. A Constituição que hoje temos, felizmente, não é a “Constituição de 1988” ou a “CF/88”, mas sim a Constituição do Brasil – um belíssimo diploma que, para se manter vivo, necessita de permanente compreensão reflexiva.
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