Originalmente pautados pela fiscalização posterior da Administração Pública, desde o início dos anos 2000 os Tribunais de Contas ampliaram significativamente o seu espectro de ação. Isso sem limites claros, tanto em termos substanciais (a matéria objeto do controle) quanto subjetivos (as pessoas a ser controladas) e cronológicos (o momento em que o controle é exercitado).
Assim, a singela expressão constitucional “fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial” (título da seção IX, do capítulo que trata do Poder Legislativo – onde estão situadas as Cortes de Contas) vem prosperando de modo inercial. O que se dá, na maioria das vezes, por ato dos próprios Tribunais de Contas, em seus regimentos internos, instruções normativas e decisões que apreciam consultas ou julgam casos concretos.
Entende-se, de modo autoatributivo, que “fiscalização” é muito mais do que o tradicional controle binário (aprova ou desaprova as contas). Inclusive, abrangeria o ato de decidir, de maneira substitutiva àquela do titular da competência pública (os órgãos do Poder Executivo definidos em lei). Hoje, os Tribunais de Contas não só fiscalizam as contas e a execução de contratos, mas imiscuem-se ativamente em políticas públicas, regulamentos administrativos, editais de licitação, termos de ajustes de conduta e de parceria, decretos da Presidência da República, etc.
Essa capacidade de decidir positivamente foi alargada pelas Cortes de Contas e aceita pelos controlados – seja por conveniência, preguiça, ignorância ou medo. Muitas vezes, é de se sublinhar, as decisões bem apontam desvios e erros. Antecipam-se e previnem danos. Fato é que, hoje, tais Tribunais não só controlam, mas sim administram. O que acabou por legitimar excessos e a ausência de controle dos controladores. E, como se sabe desde antes de Montesquieu, o abuso é natural àquele que detém o poder.
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Mais recentemente, esse desafio foi posto à luz nos acordos de leniência firmados pela Administração Pública com empresas – públicas e privadas – envolvidas em escândalos de corrupção. Ora, o acordo de leniência é negócio jurídico-administrativo, com tipicidade fechada, firmado entre Administração Pública e pessoas privadas. É típico porque sua prática pressupõe leis específicas e detalhadas, que preceituem quem, quando, onde e por quê pode ser celebrado. Não se permite que seja implementado por quem quer, mas só por quem pode, segundo a norma jurídica que expressamente atribua tal competência à autoridade administrativa.
No caso brasileiro, a leniência está prevista na Lei 12.529/2011, que imputa competências privativas às autoridades de defesa da concorrência para os celebrar, e na Lei 12.846/2013, a conhecida Lei Anticorrupção, ao determinar que “autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei” (art. 16) e que “A Controladoria-Geral da União - CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal” (art. 16, § 10).
Outros órgãos públicos podem participar da constituição do acordo de leniência (como já decidiu o TRF da 4ª Região no agravo de instrumento 5023972-66.2017.4.04.0000/PR, de relatoria da Des. Federal Vânia Hack de Almeida), mas isso não é condição de sua perfeição, validade e eficácia. O importante é que ele seja desenvolvido e celebrado pela autoridade a quem a lei outorga a competência privativa para tal – e assim gere efeitos imediatos. Isso por diversos motivos.
Os acordos de leniência consubstanciam trade-off bastante peculiar, eis que envolvem bens assimétricos: por um lado, o dano – patrimonial e institucional – sofrido pela Administração Pública; por outro, a capitulação do infrator, as informações de que ele dispõe e a indenização que consegue adimplir. É ilusório pensar-se em equivalência, comutatividade ou plena satisfação com o resultado.
A não ser os psicopatas, ninguém fica feliz em confessar ilícitos, da mesma forma que nenhuma autoridade se regozija em suavizar a aplicação de penalidades a infratores confessos. Não é para isso que servem os acordos de leniência: eles se prestam a por fim a processos e a fornecer informações de difícil ou impossível obtenção por parte das autoridades públicas (ao lado de compensações e de compromissos de condutas). Trata-se de pactos prospectivos, destinados a criar soluções futuras para problemas passados.
Tais intensas assimetrias, ao lado do risco moral, fazem com que as tratativas dos acordos de leniência sejam extremamente delicadas e minuciosas, a fim de gerar resultados firmes. Aqui desponta o dever de manusear com habilidade as três tensões ínsitas a qualquer negociação, tal como descritas por Robert Mnookin, professor do Program on Negotiation da Harvard Law School: (1) entre criação e distribuição de valores; (2) entre principais (os titulares do bem negociado) e agentes (os representantes) e (3) entre empatia e assertividade. As duas primeiras são mais apropriadas para o problema “acordos de leniência – Tribunais de Contas”.
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Inicialmente, tratemos da tensão “criação de valor vs. distribuição de valor”. De usual, negociações são pautadas pela distribuição (quem ficará com a maior fatia do bolo). Mas essa é visão acanhada da realidade, eis cria soluções insatisfatórias – e não se presta a resolver os dilemas dos acordos de colaboração, em que o mais importante é a criação de valores (materiais e imateriais).
Sabe-se que ilícitos foram cometidos e não podem ser desfeitos. Alguns dos efeitos podem ser atenuados ou mesmo extintos, mas a negociação será muito mais proveitosa se criar valor: ressarcimentos, informações, práticas futuras, compromissos, referências culturais, etc. Esses assuntos, porque essencialmente díspares (não existem “unidades” de informação nem comparação entre seu valor e moedas circulantes), precisam ser submetidos à sensatez, bom senso e prudência de quem negocia – e só de quem negocia (nunca de terceiros alheios ao drama que é transacionar temas de tamanha sensibilidade).
Porém, a tensão “agente-principal” é ainda mais desafiadora. Quando se faz a negociação em acordos de leniência, que se dá entre pessoas jurídicas e envolve temas vulneráveis (admissão de ilícitos; atribuição de responsabilidades a terceiros; quantificação e assunção de débitos; atenuação de sanções legais, etc.), é indispensável que ela se dê entre quem pode, efetivamente, decidir. É imprescindível que o negócio seja vinculante para as partes que o firmaram. Caso a validade e eficácia de tal acordo – e o seu conteúdo – sejam passíveis de apreciação/revisão por terceiros ou, o que é pior, necessitem de ser homologadas por quem não participou das negociações, uma coisa é certa: uma das partes não negociou com o “principal”, mas com o “agente”. A negociação de nada valeu – e quem entrar em cena para a aprovar será então revelado como o verdadeiro dono dos interesses transacionados.
Ocorre que, no caso de negócios jurídico-administrativos típicos, é a lei quem define quem é o “principal”: são os órgãos administrativos detentores de tal competência privativa as únicas partes aptas a se sentar à mesa, negociar e celebrar o acordo de leniência.
Como se pode constatar, existem fronteiras rígidas à intervenção dos Tribunais de Contas nos acordos de leniência. Não se está diante de contratos ou pactos que se submetam naturalmente à sua “fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial” – como se houvesse várias rodadas de negociações precárias. Ou como se a Lei 12.846/2013 nada valesse. Quem detém competência privativa para sentar-se à mesa e celebrar acordos de leniência são as autoridades previstas em lei. O conteúdo do acordo integra o núcleo, duro e indevassável, da competência discricionária desses órgãos públicos. Caso haja ilícitos – antes, durante ou depois – dos acordos, merecem ser reprimidos com firmeza. Mas isso não importa dizer que a validade e eficácia dos acordos de leniência dependam do aval das Cortes de Contas.
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