Diante da França devastada pela Primeira Guerra Mundial, o premiê francês Georges Clemenceau intensificou o alerta que, anos antes, havia lançado: “A Guerra! É coisa séria demais para ser confiada aos militares.” Décadas depois, Milton Friedman o parafraseou, ao defender que “o dinheiro é um assunto muito sério para ser deixado aos bancos centrais”.
Ambos os reptos traduzem a ideia de que nem sempre aquele a quem historicamente se atribui a capacidade de definir ações é a pessoa mais capacitada para enfrentar desafios extraordinários.
Por isso, eu ousaria dizer que, hoje, a infraestrutura brasileira é importante demais para ser confiada só aos governos. Advogo isso não devido a motivos político-ideológicos, mas, sobretudo, factuais. A nossa experiência dos últimos 20 anos comprova o alarmante baixo estoque da infraestrutura, unido à falta de planejamento, aos elevados custos de transação e à insegurança jurídica.
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Existem obras públicas muito caras em lugares errados, gerando contínuas perdas de eficiência. Também há obras complexas com projetos imprecisos ou incompletos – a instalar condutas oportunistas. Logo, necessário se faz alterar a lógica da estruturação, execução e controle dos projetos de infraestrutura. O que exige muita prudência.
Afinal, a experiência comprova que governos brasileiros andaram muito mal ao avocar para si a responsabilidade exclusiva por todos os investimentos em infraestrutura – e ao estruturar contratos incertos, sem pensar no dia seguinte. Salvo exceções, quanto mais importante o projeto, menor a maturidade da Administração Pública e maior a assimetria de informações.
Ainda assim, governos buscam impor todas as regras do jogo (por mais inusuais, senão bizarras: basta pensar em contratos de longo prazo que pretendem congelar no tempo os investimentos, receitas, despesas e taxa de retorno).
Por outro lado, o Estado brasileiro é tipicamente fiscal. Sobrevive às custas da arrecadação tributária. Ocorre que hoje vivemos uma crise fiscal que não se encerrará tão cedo. Os desembolsos públicos – de curto e médio prazos – estão comprometidos. Quem prometer despesas, vai ter sérias dificuldades em alocar verbas e cumprir os contratos.
Por fim, fato é que os dados trazidos neste XXX Fórum Nacional* comprovam que os governos brasileiros não administram, com segurança e eficiência, a infraestrutura que lhes foi cometida pela Constituição. O legislador constituinte talvez tenha sido por demais generoso com uma mão e excessivamente estatizante com a outra. Lamentavelmente, a conta não fecha. Existem muitas despesas para poucas receitas, num país cuja economia terá dificuldades em conviver com novos aumentos da carga tributária.
Assim e para além do reforço à segurança jurídica e eficiência (advindos da Nova Lei de Introdução), talvez devamos pensar em dois vetores de implementação de infraestrutura: o primeiro é o prévio e constante planejamento setorial; o segundo, são contratos que não tragam consigo desembolso de verbas públicas. Em ambos os casos, com a efetiva – e republicana – participação da iniciativa privada.
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O planejamento deve ser atribuído a órgão ou entidade que não experimente as amarras a que estão submetidos os governos e respectivos calendários eleitorais. Esse é um tema de Estado, que pode ser alocado em órgãos que sobrevivam às eleições (como as agências reguladoras). O planejamento lança metas de longo prazo, que precisarão de um estoque de projetos com qualidade técnica atenta às boas práticas internacionais.
Aqui, pode-se pensar numa estatal mínima, com escopo certo e limitado, que cumpra a função de start up de negócios públicos, ou em contratações diretas de fundações privadas, ou ainda think tanks que tenham reconhecida a sua legitimidade para desenvolver projetos de alta qualidade técnica. Os Procedimentos de Manifestação de Interesse (PMI) igualmente precisam ser levados em conta, com reforços de compliance. Em todos os casos, há de existir protocolos que instituam chinese walls robustas, tanto em face da Administração Pública como das pessoas privadas. São projetos de Estado, não de governos.
Uma vez definido o planejamento, tenho que os modelos contratuais mais eficientes neste momento de crise fiscal são aqueles que não dependam de gastos públicos: as concessões comuns e as autorizações negociais. Estas constituem negócios jurídicos por meio dos quais o Estado autoriza que a pessoa privada faça investimentos em determinadas áreas e serviços de titularidade pública, sob regime de direito privado (telecomunicações, energia e portos já tem projetos de êxito sob essa modelagem). Já as concessões comuns são outorgas de obras e serviços públicos sustentadas exclusivamente pelas tarifas pagas. O empresário privado faz o investimento e a receita advém do usuário, não do Erário.
Quem sabe essas duas condições – planejamento claro e modelos contratuais viáveis – instalem ambientes que estimulem o investimento privado, brasileiro e estrangeiro. Sem barreiras de entrada a novos investidores. Sem cartéis, nem, muito menos, corrupção. Sem custos de transação extraordinários e/ou cláusulas estapafúrdias. Isso com segurança jurídica reforçada, às claras e com pouca burocracia (minimum minimorum). Contratos públicos sérios já sofreram demais com o populismo – está na hora de mudar o jogo, em benefício de todos.
Enfim, precisamos de uma nova cultura de relação público-privada, não adversarial nem oportunista. O Estado precisa se conscientizar de que o desenvolvimento econômico depende da iniciativa privada. Esta, há de abandonar práticas patrimonialistas e usar o seu poder econômico sem abusar dele. A lógica do “ou-ou” precisa ser substituída pela do “e-e”: Estado e iniciativa privada como parceiros em projetos de infraestrutura, definidos com precisão técnica, ampla publicidade e competição.
Talvez, contudo, o maior desafio esteja justamente no mais básico: a conscientização de que a infraestrutura é importante demais para ser confiada só aos governos.
*PS: Este texto foi a base da minha conferência na sessão de encerramento (“Como destravar investimentos públicos na infraestrutura”), do XXX Fórum Nacional, promovido pelo Instituto Nacional de Altos Estudos – INAE (www.forumnacional.org.br). Agradeço imensamente ao convite que me foi formulado pelo Dr. Raul Velloso.
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