Nota do editor: este é o segundo de uma série de três artigos nos quais os autores proporão um caminho para a restauração constitucional, apontando áreas nas quais a Suprema Corte dos Estados Unidos se desviou do caminho e formas de a corte atual voltar a trilhar o rumo certo. O artigo explica os meios judiciais de luta contra o “Estado Administrativo” – defendida por libertários e que é marca do governo Donald Trump – e é ilustrativo da luta anti-establishment nos Estados Unidos. Leia os outros dois aqui e aqui.
Se o ministro Brett Kavanaugh pretende fazer jus aos esforços do governo Trump, dos senadores republicanos e de apoiares de todo o país para confirmá-lo na Suprema Corte, ele deveria começar contendo o Estado Administrativo. Este é um assunto que ele conhece bem.
Antes de ser confirmado, Kavanaugh não tinha opiniões claras sobre privacidade, raça ou sexualidade, os temas constitucionais mais sagrados para a esquerda. Ao contrário, sua ameaça real ao liberalismo progressista vinha de sua hostilidade à visão progressista do governo tecnocrata controlado por burocratas e protegido por juízes que a eles prestam deferência.
Apesar de o Estado Administrativo estar sempre de alguma forma presente, ele se transformou em um moto-perpétuo progressista. Ele convoca o Congresso a delegar boa parte de seu poder legislativo às agências federais, isola os burocratas que exercem esse poder do controle político presidencial e exige que os tribunais respeitem as escolhas das autoridades e até mesmo a interpretação que elas fazem da lei.
O Estado Administrativo moderno distorce o que os constituintes pretendiam com a atividade legislativa. Como James Madison descreveu no Federalista 51, a Constituição cria, deliberadamente, um caminho difícil e cheio de obstáculos para qualquer lei nova: projetos idênticos devem ser aprovados nas duas casas legislativas, cada qual eleita por eleitores diferentes em tempos diferentes, e depois receber a aprovação presidencial. Os constituintes esperavam que as leis federais fossem poucas e esparsas, com os estados criando a maior parte das leis que governam a vida cotidiana.
“Na República federativa dos Estados Unidos, o poder cedido pelo povo é antes dividido entre dois governos distintos, e depois a porção que cabe a cada um se subdivide entre departamentos separados e distintos”, escreveu Madison. “Assim tem origem uma segurança dupla aos direitos do povo. Os governos diferentes controlarão um ao outro e ao mesmo tempo cada um deles se autocontrolará”.
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Mas durante a Era Progressista, na virada do século 19 para o 20, os líderes políticos norte-americanos chegaram à conclusão de que a Constituição estava obsoleta. O presidente Woodrow Wilson acreditava que as estruturas antiquadas da Constituição, com o federalismo e a separação dos poderes, eram incapazes de acompanhar a demanda por regulamentações científicas, gerada por uma economia moderna industrializada e uma sociedade nacionalizada.
As experiências de Wilson, mais tarde consolidadas no governo pelo New Deal de Franklin Delano Roosevelt (FDR), substituíram o sistema dos constituintes de leis federais raras e específicas por uma engrenagem burocrática que expele uma torrente interminável de regulamentações imunes aos limites impostos aos poderes do Congresso.
Kavanaugh talvez agora seja o quinto voto capaz de desfazer essa ideia teutônica importada (Wilson estudara e admirava a teoria e prática alemã de administração pública) para o sistema norte-americano de governo, cauteloso e descentralizado. Ainda como juiz das instâncias mais baixas, Kavanaugh atacou a Doutrina Chevron, que exige que os juízes respeitem a interpretação “sensata” de uma agência quanto à regulamentação imposta, considerando-a “uma invenção sem base dos tribunais”.
Kavanaugh também evocou a ideia de que as procurações amplas dadas pelo Congresso deveriam ser lidas com cuidado, porque a Constituição talvez imponha limites ao poder que o Legislativo pode delegar. Por fim, Kavanaugh votou por fechar a Agência de Proteção Financeira ao Consumidor (invenção da senadora Elizabeth Warren para regulamentar todos os empréstimos e concessão de crédito aos consumidores), porque ela depositava poder demais numa única pessoa que o presidente tinha dificuldade demais para demitir.
Kavanaugh pode muito bem acreditar que, uma vez que agências como a de Proteção Financeira ao Consumidor, a Comissão de Valores Mobiliários e a Comissão Federal de Comunicação executem a lei, elas devem se submeter a uma supervisão presidencial regular.
Se interpretamos esses sinais corretamente, Kavanaugh talvez se junte aos outros quatro ministros conservadores da Suprema Corte a fim de ressuscitar os três métodos de restaurar o controle sobre o Estado Administrativo.
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Primeiro, o artigo 2º. da Constituição dá todo o poder executivo ao presidente, a não ser por exceções explicitamente expostas. A Constituição impõe ao presidente a responsabilidade exclusiva por garantir que “as leis sejam fielmente executadas”, o que quer dizer que todas as autoridades federais envolvidas na aplicação da lei devem se submeter ao controle dele.
Como Hamilton explicou no Federalista 70, essa estrutura aumenta a responsabilidade – a culpa, em último caso, recai sobre o presidente – ao mesmo tempo em que dá ao Executivo “o poder de decisão, de agir, de manter em segredo, de determinar” e a “energia” necessários para exercer este tipo único de poder, sobretudo numa crise.
Mas quando o Congresso começou a criar agências independentes por acreditar que os burocratas deveriam exercer sua especialidade técnica, ele tentou isolar esses órgãos da influência política. Assim, o Congresso tornou essas agências “independentes” criando obstáculos para que o presidente demitisse funcionários e também tornando o financiamento delas independente do Congresso.
Apesar de as agências violarem o preceito constitucional que dá autoridade executiva somente ao presidente, a Suprema Corte manteve a independência delas no New Deal por pressão política do plano de expansão de FDR (no caso dos Executores de Humphrey [neste caso, a Suprema Corte decidiu que o presidente não poderia demitir William Humphrey, membro da Comissão Federal do Comércio]).
No caso Morrison v. Olson (1988) (outro caso em que o poder de decisão do presidente quanto a funcionários de agências federais foi contestado na Suprema Corte), os ministros reafirmaram a independência das agências mantendo a lei do procurador independente, que deu origem à melhor dissidência do ministro Antonin Scalia.
No Federalista 51, Madison argumentava que os povos precisavam de Constituições porque os homens não são anjos. Apesar da fé progressista no contrário, os burocratas tampouco são anjos. Uma agência independente pode enlouquecer na busca por seus próprios objetivos ou tentando ajudar grupos preferidos ou até líderes políticos impunemente, a não ser que os poderes eleitos possam recuperar seu controle sobre elas.
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A Suprema Corte deveria restaurar a Constituição revertendo as decisões Morrison v. Olson e Executores de Humphrey, permitindo que o presidente novamente tivesse controle total sobre os que exercem o poder que cabe exclusivamente a ele no Poder Executivo.
Em segundo lugar, Kavanaugh pode ser o quinto voto a fim de que a Suprema Corte reverta a deferência jurídica a interpretações da lei por parte das agências. Como o ministro John Marshall declarou, o papel do Judiciário é “dizer o que é a lei”, isto é, interpretar a lei (não legislar), a fim de aplicá-la ao caso ou controvérsia diante do tribunal.
Mas apesar de os tribunais protegerem ferozmente esse dever se recusando a respeitar interpretações dos poderes de igual peso (a Presidência e o Congresso), eles passam por uma crise de confiança quando confrontados por burocratas não-eleitos.
Como as agências geralmente lidam com assuntos muito técnicos, os tribunais pisam em ovos quando se trata de tomar decisões sobre elas. Isso faz sentido quando a questão é, por exemplo, o nível de poluição mais adequado para a saúde humana em contraposição ao crescimento econômico. Não queremos juízes generalistas aplicando suas opiniões nada científicas a escolhas políticas. Mas há uma área na qual os juízes são especialistas: na interpretação da lei.
Ainda assim, usando doutrinas jurídicas batizadas de Chevron, Auer e Seminole Rock, quando uma agência aparece no tribunal, os juízes respeitam a interpretação da agência quanto a leis e regulamentações, como se os tribunais considerassem tais leis ambíguas. Isso relega o trabalho do juiz para o órgão governamental.
Isso é ruim quando se trata de atos do Congresso, mas é ainda pior quando um tribunal aceita uma interpretação governamental de suas próprias regras ao impor certa determinação. Neste caso, a agência é realmente o juiz, o júri e o executor – expressando uma tirania contra a qual Montesquieu e Madison alertaram.
(Isso também motiva as agências a aumentarem seu poder promulgando regulamentações ambíguas.)
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A Suprema Corte pode abrir mão dessas doutrinas que prestam deferência às agências sem ter de se imiscuir em áreas de conhecimento científico e técnico especializado. As agências deveriam continuar a usar seu conhecimento para promover um ar mais puro ou padrões para os cintos de segurança, dentro de limites razoáveis que o Congresso estabeleceu para elas. Levada ao extremo, a supervisão jurídica de escolhas de diretrizes legítimas infringiria o poder executivo presidencial de aplicar a lei.
Por exemplo, consideramos que a Suprema Corte errou feio no caso Massachusetts v. EPA (2007), no qual ela considerou que a lei federal exigia que a EPA (Agência de Proteção Ambiental) regulamentasse o dióxido de carbono como um elemento poluidor do ar. Consideramos que a Lei do Ar Puro legou à EPA a decisão científica quanto a considerar determinadas substâncias como poluidoras, e que a maioria dos ministros tomou a decisão com base mais em suas preocupações quanto ao aquecimento global do que com o direito da EPA de aplicar a lei. Mas os tribunais não deveriam ceder quando se trata de interpretar a lei em si, que é um trabalho para o qual os tribunais, não as agências, são os especialistas constitucionalmente designados.
Em terceiro lugar, a Suprema Corte deveria ressuscitar a doutrina da não-delegação (que se aplicaria ao caso Gundy [que discute a deleção de autoridade ao procurador-geral na lei de ofensas sexuais]). Devido a uma combinação de covardia legislativa e complexidade social cada vez maior, o Congresso delegou mais e mais de seus poderes às agências. As agências ficaram mais do que felizes por assumir os amplos poderes legislativos, sem a responsabilidade de prestar contas aos eleitores.
É fácil constatar a consequência disso. No último ano da administração Obama, com as agências trabalhando a todo o vapor, foram publicadas 95.894 páginas de regulamentações. Em um ano! Isso equivale a 159 romances da série Harry Potter em 12 meses. Por outro lado, nos últimos dois anos da administração do democrata, o Congresso aprovou, em média, apenas 165 novas leis federais por ano.
No entanto, o Congresso pode delegar à vontade, quase sem limitação, por causa de um caso de 1928 que exige apenas que o Congresso apresente um “princípio inteligível” para orientar a agência antes de lhe dar autoridade legislativa. O que significa “princípio inteligível”? Praticamente qualquer coisa que seja “justa” ou “necessária” ou que “realiza os objetivos de uma lei”.
Como resultado, o Congresso se saiu com leis amorfas e amplas como a Lei do Ar Limpo, que em essência autoriza a EPA a fazer o que ela quiser a fim de tornar o ar mais limpo sem levar em conta custos, crescimento econômico e praticabilidade tecnológica em comparação aos ganhos mínimos de saúde.
Achamos que a Suprema Corte deve estabelecer um limite entre delegar o poder de investigação às agências (como se substâncias novas realmente poluem o ar e prejudicam a saúde humana) e simplesmente transferir, sem limites, o poder do Congresso sobre o meio-ambiente a uma agência (como ordenar que a EPA tomasse todas as medidas cabíveis para despoluir o ar).
Delegar a autoridade legislativa para as agências prejudica a separação constitucional dos Poderes. O poder de legislar foi dado ao Congresso. Talvez isso seja algo antiquado em nossa sociedade complexa. Talvez seria melhor que houvesse um robusto Estado administrativo capaz de exercer constantemente uma mistura de poder executivo, legislativo e judiciário.
Mas esse não é o sistema constitucional que temos. Os Pais Fundadores se preocupavam com a tendência à tirania quando o poder cabia somente a uma pessoa que não poderia ser adequadamente fiscalizada. Nosso sistema constitucional é genial em distribuir os poderes entre três instâncias do governo nacional e entre o governo federal e os estados, como forma de defender a liberdade: a “dupla garantia” de Madison.
Se o povo quer abdicar dessas proteções, ele é soberano para fazer isso. Mas, até lá, o Congresso, os tribunais e o Presidente não podem permitir que as agências assumam o poder que constitucionalmente cabe a eles. Podemos ter ar puro, rodovias seguras e alimentos saudáveis sem violarmos a Constituição. Mas abdicar dos limites governamentais propostos pelos Fundadores em nome da facilidade administrativa seria mais danoso do que não poder atender às demandas populares do momento.
*John Yoo é professor de Direito na Universidade da Califórnia, Berkeley, professor-visitante no American Enterprise Institute e bolsista-visitante no Hoover Institution, na Universidade de Stanford. James C. Phillips é advogado e bolsista no Centro de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Stanford.
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