Muita gente se assustou com o fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) estar diante da possibilidade de criminalizar condutas por meio de decisão judicial – condutas que, frise-se, até pouco tempo o próprio tribunal reconhecia não serem crime, como na absolvição, por unanimidade, do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), em 2014 (leia mais abaixo ). Essa possibilidade, no entanto, não caiu do céu: ela vem sendo maturada há décadas na construção da jurisprudência da inconstitucionalidade por omissão e, mais recentemente, por meio de leis aprovadas pelo próprio Poder Legislativo.
A Constituição brasileira, inspirada pela experiência da Constituição portuguesa de 1976, inovou ao criar a possibilidade de controle de omissões inconstitucionais, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), e o Mandado de Injunção (MI).
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A primeira ação, que é de competência exclusiva do STF, decorre da leitura do artigo 103, parágrafo 2º: “declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.
A segunda, cuja análise pode ser feita por qualquer juiz ou tribunal, a depender do caso, está prevista no artigo 5º, inciso LXXI: “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. A partir desses textos, porém, o Supremo exerceu uma ampla atividade criativa.
De grão em grão...
Como a Constituição não fala explicitamente nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão (ADOs), até 2009 elas eram contadas, na numeração do STF, conjuntamente às Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs). Isso mudou porque, naquele ano, o Congresso editou a Lei 12.063/2009, que regulamentou essa modalidade de ação. A edição da lei acompanhou a importância que as ADOs ganharam na corte.
Nos primeiros casos julgados pelo tribunal, os ministros entendiam os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade por omissão mais próximos do texto da Constituição, que fala em “dar ciência” ao poder competente pela edição da norma necessária. A rigor, a Carta Magna estabelece a possibilidade de colocar um prazo para edição apenas no caso de omissão de “órgão administrativo”.
O tribunal também entendia que o fato de haver projetos em tramitação para editar a norma cuja necessidade se questionava impedia que se declarasse a omissão. Foi o caso da ADI 2.495, de relatoria do então ministro Ilmar Galvão, julgada em 2002.
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A ação questionava a omissão de uma lei sobre o reajuste anual de servidores que a Constituição de Santa Catarina previa, mas o STF entendeu que a “mora inconstitucional [...] não se verifica, tendo o Chefe do Executivo estadual, em cumprimento ao dispositivo constitucional sob enfoque, enviado à Assembleia Legislativa projeto de lei sobre a revisão”.
Em maio de 2007, porém, no julgamento da ADI 3682, o STF mudou de posição. A Assembleia Legislativa do Mato Grosso questionava a falta de uma lei complementar, prevista na Constituição desde uma Emenda Constitucional aprovada em 1996, sobre a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios. No julgamento, os ministros entenderam que a inércia legislativa não era razoável e declararam a omissão inconstitucional, mesmo havendo diversos projetos tramitando sobre o tema no Congresso. Nessa ação, o Supremo também deu um prazo de 18 meses para o Parlamento criar a lei.
Em 2013, por decisão cautelar do ministro Dias Toffoli na ADO 24, o tribunal deu um prazo de 120 dias para o Congresso editar a Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público, cuja necessidade se previa na Constituição desde 1998. A lei só foi editada quatro anos depois, em 2017, quando Toffoli extinguiu o processo por perda de objeto. O tribunal não chegou a discutir se o Código de Defesa do Consumidor (CDC) podia ser aplicado analogamente enquanto a lei não era editada.
Mais uma novidade em 2016. No julgamento da ADO 25, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, o tribunal não apenas deu um prazo de 12 meses para o Congresso legislar sobre uma questão tributária em discussão, mas determinou que se nada ocorresse, passado prazo, caberia ao Tribunal de Contas da União (TCU) definir anualmente a quantidade de recursos que a União deveria repassar aos estados.
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Naquela ocasião, Mendes dedicou um capítulo inteiro do voto a manifestar a preocupação com a efetividade das decisões do STF sobre omissões inconstitucionais, muitas vezes ignoradas pelo Congresso.
“Um tribunal apenas terá efetivo poder caso possa, além de conceder a tutela requerida pelo jurisdicionado, garantir também que suas decisões sejam executadas. Com uma Corte Constitucional isso não é diferente. Seus acórdãos não devem servir apenas para declarar ou solucionar determinada situação jurídica, mas para serem efetivamente cumpridos”, escreveu o ministro.
Gilmar listou ainda as inovações que outras ações já tinham trazido nesse sentido. Quando, por exemplo, o tribunal delegou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) poderes para organizar o pagamento de precatórios, ou na decisão em que estabeleceu critérios para a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, que deveriam ser executados pelo relator da ação, ministro Ayres Britto, em conjunto com o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª região.
...a galinha enche o papo
Na jurisprudência das ADOs, o tribunal afastou-se da mera declaração de inconstitucionalidade por omissão. Na dos Mandados de Injunção (MIs), afastou-se mais ainda – e foi legitimado pelo Congresso Nacional.
A posição do STF sobre os MIs começou tímida. Em 1989, no julgamento do MI 107, de relatoria de Moreira Alves, o tribunal definiu que o efeito da ação era apenas o de dar ciência à autoridade competente sobre a falta de norma regulamentadora que “torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.
Na prática, o Supremo igualou os efeitos do MI e da ADO. Entre idas e vindas, essa posição perduraria até 2007. Em 1991, no julgamento do MI 232, o tribunal chegou a dar, pela primeira vez, um prazo para que o legislador suprisse uma omissão inconstitucional, mas prevaleceu o efeito meramente declaratório na maioria das decisões do tribunal, diante do silêncio do Legislativo, que ignorava as determinações.
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Outra oscilação da Corte deu-se no julgamento, também em 1991, dos MIs 284, 384, 447 e 582, que discutiam a falta de regulamentação dos critérios para arbitrar a indenização devida aos anistiados. Nessa ocasião, o tribunal decidiu que, diante da continuidade da omissão do Congresso, mesmo já notificado anteriormente pelo STF, os anistiados poderiam pedir que os juízes de primeiro grau estabelecessem o montante das indenizações seguindo os critérios do direito civil.
A situação mudou radicalmente em 2007, no julgamento do famoso MI 721, de relatoria do ministro Marco Aurélio, que discutia a falta de uma lei prevista regulamentando a aposentaria especial de funcionários públicos. Por unanimidade, o Supremo decidiu não só pela omissão, mas pela aplicação da Lei 8.213/1991, que vale para os trabalhadores em geral. A decisão gerou uma chuva de MIs pedindo a mesma providência, até que o tribunal julgou uma Questão de Ordem suscitada pelo então ministro Joaquim Barbosa, e autorizou os relatores das ações a estenderem a decisão, em decisão individual, a todos os casos que tivessem em mãos.
Mas o tribunal foi além. Também em 2007, no julgamento do MI 752, de relatoria do ministro Eros Grau, a Corte atendeu a um pleito de sindicatos de servidores públicos e aplicou à categoria, na falta de lei específica, a regulamentação do direito de greve existente para a iniciativa privada. No julgamento, o Supremo estendeu os efeitos para todos os servidores, de todo o país, dando efeitos gerais à decisão.
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Com isso, borrou-se uma linha importante. A doutrina jurídica e a jurisprudência sempre explicavam que os MIs, ao contrário das ADOs, tinham efeitos apenas entre as partes do processo, e não em geral. Por muito tempo, essa foi uma razão para se aceitar que o tribunal pudesse ser mais criativo nos efeitos que dava aos MIs, uma vez que esses efeitos valeriam apenas para quem tivesse a ação julgada no caso concreto – o que, em tese, afastaria o tribunal de estar legislando.
A nova orientação do tribunal, no entanto, foi corroborada pelo Legislativo ao editar a Lei 13.300/2016. Pelo texto da norma, “reconhecido o estado de mora legislativa, será deferida a injunção para: I - determinar prazo razoável para que o impetrado promova a edição da norma regulamentadora; II - estabelecer as condições em que se dará o exercício dos direitos, das liberdades ou das prerrogativas reclamados ou, se for o caso, as condições em que poderá o interessado promover ação própria visando a exercê-los, caso não seja suprida a mora legislativa no prazo determinado”.
A lei também estabeleceu que, em regra, as decisões em MIs valem apenas para as partes, e enquanto lei específica não for editada pelo Congresso, mas assegurou, respeitando a jurisprudência do STF, que “poderá ser conferida eficácia ultra partes [além das partes] ou erga omnes [perante todos] à decisão, quando isso for inerente ou indispensável ao exercício do direito, da liberdade ou da prerrogativa objeto da impetração”. Foi exatamente o que fez a decisão sobre o direito de greve dos servidores públicos em 2007.
Para onde vai o Supremo
Todo mundo sabe que não há crime de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero no Brasil. O tema ficou em discussão no Congresso entre 2001 e 2014 e, atualmente, é discutido no projeto de Novo Código Penal. Até o Supremo sabe disso: em 2014, a Primeira Turma do STF absolveu por unanimidade o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) por uma postagem supostamente homofóbica no Twitter.
O relator, ministro Marco Aurélio, argumentou que a situação não se enquadrava na Lei 7.716/1989, a Lei do Racismo, e lembrou o inciso XXXIX da Constituição para argumentar que não há crime sem lei anterior que o defina.
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A ADO 26 e o MI 4733 querem mudar isso por via judicial. As ações argumentam que o Congresso está omisso em criminalizar a LGBTfobia, porque a Constituição prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” e que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
Em particular, para que se possa aplicar essa segunda previsão – e por consequência, enquadrar a LGBTfobia na Lei 7.716/1989, que pune atos racistas – o tribunal deverá equiparar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero ao racismo.
Na última quinta-feira (14), Celso de Mello interrompeu seu voto justamente depois de reconhecer a omissão do Congresso e sinalizou que equipararia racismo e LGBTfobia. Os efeitos da decisão ainda não foram lidos: seu próximo passo será propor soluções para suprir a omissão. Tradicionalmente, as opções são menores quando se trata de ADOs, mas em seguida votará o ministro Edson Fachin, relator do MI 4733.
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Se o Supremo caminhar na direção apontada por Mello, a Corte poderá apenas reconhecer a omissão; ou fixar um prazo para que o Congresso legisle – e ainda estabelecer critérios e balizas que o Congresso deverá respeitar; ou fixar este prazo e determinar a aplicação da Lei 7.716/1989 se ele vencer e nada for feito; ou, ainda, determinar a aplicação da lei desde logo.
Como a decisão está no campo penal, o mais delicado dos ramos do direito, caminhar nessa direção será um passo além nas inovações que o STF já vem sedimentando – e com a ajuda da Lei 13.300/2016.
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