Nota do editor: Este é o primeiro de uma série de artigos nos quais os autores proporão um caminho para a restauração constitucional, apontando áreas nas quais a Suprema Corte dos Estados Unidos se desviou do caminho e formas de a corte voltar a trilhar o rumo certo. As discussões levantadas pelos textos se aplicam em grande parte ao Brasil. Devido às recentes declarações do ministro Roberto Barroso, do STF, a publicação começou, na semana passada (13), pelo terceiro texto da série, sobre o aborto.
O fim do sórdido processo que levou à confirmação de Brett Kavanaugh na Suprema Corte dos Estados Unidos dá aos conservadores a oportunidade de refletir profundamente sobre o que eles querem do mais alto tribunal do país.
Claro que os conservadores teriam lutado por Kavanaugh, fosse ele um resoluto Clarence Thomas ou um hesitante Anthony Kennedy. Em jogo estavam os princípios de Justiça e do devido processo legal que deveriam orientar todas as nossas instituições, até mesmo quando elas se deparam com as manifestações do movimento #MeToo.
Os tribunais, o Congresso, os órgãos federais, os governos estaduais e até mesmo as mais perdidas das nossas instituições sociais – a imprensa e nossas faculdades e universidades — não podem abolir os fatos, as provas e o direito à ampla defesa.
Mas agora que Kavanaugh tomou posse na Corte, os conservadores podem dar um passo atrás e refletir sobre seus planos para o futuro. Os democratas travaram uma guerra arrasadora contra Kavanaugh, um juiz incrível e um funcionário público notável, justamente porque sua indicação é a promessa de um confiável quinto voto para compor a maioria conservadora no tribunal.
Um bom argumento quanto a isso é que os conservadores não têm uma maioria dessas na Suprema Corte desde 1936. Apesar de presidentes republicanos terem nomeado a maioria dos ministros desde 1968, quando Richard Nixon venceu com uma plataforma de imposição da lei e da ordem, os nomeados geralmente “criaram asas” e se voltaram à esquerda. Mas os escandalosos ataques democratas a Kavanaugh deveriam ser uma garantia de que ele não trilhará o mesmo caminho de ministros como Harry Blackmun, John Paul Stevens e David Souter, nomeados por republicanos que se tornaram defensores de causas da esquerda.
A Suprema Corte agora tem a oportunidade de reconsiderar as doutrinas de acordo com o sentido original da Constituição. Antes de se transformarem numa briga política e pessoal feia, os depoimentos de confirmação de Kavanaugh revelaram, entre outras coisas, as lacunas da política constitucional norte-americana.
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Os senadores democratas, bem como seus especialistas chamados a se manifestar contrariamente, propuseram uma visão do juiz como simplesmente alguém que defende preferências políticas de determinado partido. Eles questionaram Kavanaugh quanto às decisões específicas a que ele chegou em casos relacionados a certos grupos de interesse: minorias, mulheres, organizações ambientais e coisas do tipo. Para eles, a única diferença entre um juiz e um deputado é que o primeiro usa uma toga.
Influenciados pelo movimento do Realismo Jurídico, que é a doutrina básica ensinada na maioria das faculdades de Direito norte-americanas de hoje, esses democratas consideram a lei e os fatos apenas uma cortina de fumaça. Para eles, os juízes exercem um poder político bruto e sem controle ao decidirem quem ganha e quem perde. Julgar tem a ver com o resultado, não com o processo. Ser um bom juiz é escolher os vencedores certos. A Justiça não é cega – ela distribui justiça com os olhos arregalados para que possa favorecer uma classe ou grupo de sua preferência.
Se os juízes apenas defendem fins políticos, então os democratas ao menos são honestos em seu desejo por um juiz que nutra simpatia pelos grupos de preferência deles. Foi por isso que o presidente Obama disse que estava à procura de juízes com “empatia”, embora sem dúvida nenhuma não fosse empatia pelas grandes empresas, por exemplo, e sim pelos grupos que ele defendia.
De acordo com essa visão, se você é um democrata, você só deveria escolher juízes que defendem sindicatos, minorias raciais e suspeitos de terem cometido crimes. Se você é republicano, você vai querer juízes que sempre votam em favor de grandes empresas e da polícia.
Os senadores republicanos, contudo, rejeitam essa visão. Na opinião deles, os juízes são indiferentes ao eleitorado do partido que os indicou. De acordo com a metáfora do ministro John Roberts, juízes são árbitros que decidem se a bola entrou ou não, mas que não demonstram preferências ou preconceitos pessoais. Em outras palavras, como disse a ministra Elena Kagan durante sua confirmação, “a questão não é ‘você gosta deste ou daquele partido? Você defende esta ou aquela causa?’ (...) A questão é o que a lei determina”.
O resultado de um caso não deveria ser o problema – o que importa é o processo que os juízes usam para interpretar a lei e aplicá-la às partes. Thomas Jefferson via a magistratura como algo mecânico. Ele esperava que houvesse juízes que fossem como máquinas e que pegassem a lei escrita por outra pessoa e a aplicasse aos fatos apresentados pelas partes.
Claro que julgar não é fácil e que os juízes são humanos. Mas esse ideal – o de todos serem iguais no tribunal, sem que haja favoritos diante da Justiça cega – é tão antigo quanto a República em si. Aplicado de acordo, isso deveria tornar o Judiciário, nas palavras de Alexander Hamilton, “o [poder] menos perigoso para as garantias políticas constitucionais”.
Essas duas visões do processo judicial deram origem a duas abordagens distintas quanto à magistratura. A primeira apela equivocadamente à forma como os juízes estaduais tomam decisões nos casos com os quais a maioria dos norte-americanos se deparam: crimes, disputas contratuais e de propriedade e ações civis em casos de acidentes. Tais casos são chamados pelos advogados de “Direito comum” (common law), que herdamos da Grã-Bretanha. Juízes que aplicam a lei consuetudinária são livres para criar as regras que acharem melhor. Eles geralmente exercem o equivalente ao Poder Legislativo – eles são os legisladores nesses casos controlados pelos estados.
A importação desse modelo para o Judiciário federal cria juízes que não se sentem atrelados à Constituição ou às leis do Congresso. Os ministros da Suprema Corte se sentirão tentados a liderar o povo para onde “ele deveria estar”, e não para onde ele está. Não há nenhum limite para a Justiça a não ser a imaginação do ministro e de seus colegas. Daí porque o grande ministro liberal William J. Brennan teria dito que a regra mais importante da Suprema Corte é a “Regra dos Cinco”: a quantidade de juízes necessária para se criar uma maioria e, portanto, o poder de mudar qualquer lei.
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A visão oposta, conservadora, tem os juízes como um árbitro tão limitado quanto um rei-filósofo é livre. Um juiz-árbitro conta com uns poucos conceitos básicos: a lei é feita de palavras, as palavras têm sentido e este sentido está preso ao tempo em que a lei é aplicada. O trabalho do juiz é entender o sentido das palavras quando da criação da lei. Este método de julgar é chamado de “originalismo” quando lida com a Constituição, ou “textualismo” quando lida com estatutos ou regulamentações. Os termos “originalismo” e “textualismo” são recentes, mas a metodologia que eles representam remontam às origens da nossa nação.
Estudiosos e juristas podem discordar – e discordam – quanto às várias formas de se chegar ao sentido original de um texto jurídico. Podemos determinar o sentido comum das palavras para uma pessoa comum da época, usar dicionários e exemplos de aplicação da lei do tempo da ratificação da Constituição. Enormes bancos de dados de textos e análises computadorizadas facilitam este trabalho.
Outra forma de se chegar ao sentido original é pesquisar textos jurídicos da época: casos, tratados, matérias legislativas, etc. Uma técnica semelhante é empregar os métodos que os advogados da época usavam para se chegar a tal sentido, como as regras (ou “cânones”) de interpretação jurídica de conhecimento comum e usadas na época.
Outra técnica é descobrir o que as pessoas achavam que uma cláusula constitucional significava, usando fontes importantes como as obras O Federalista, O Antifederalista e a Convenção Constituinte e os debates estaduais de ratificação. Por fim, as práticas das pessoas mais próximas à elaboração do documento jurídico podem esclarecer seu sentido. Geralmente analisamos, por exemplo, a administração de George Washington e os primeiros congressistas para sabermos se o comportamento deles foi consistente com essa ou aquela interpretação da Constituição.
Todas essas técnicas têm um único objetivo: revelar o sentido original da Constituição. Do ponto de vista constitucional, o originalismo é claramente superior ao direito comum de juízes que decidem de acordo com suas próprias preferências políticas como um legislador. Primeiro, porque o originalismo é a única forma legítima de um ministro da Suprema Corte realizar seu trabalho. Como escreveu Alexander Hamilton no número 78 do Federalista, “os tribunais têm de encontrar o sentido da lei; se eles estiverem dispostos a exercerem a VONTADE, e não a ANÁLISE, a consequência seria a substituição da vontade deles pelo do corpo legislativo”. Ministros da Suprema Corte que agem como juízes do direito comum exercendo a vontade em vez da análise usam equivocadamente seu poder judicial sob nossa Constituição.
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Além disso, o uso do direito comum pelos tribunais federais enfraquece nossa República. Ele tira a soberania do povo, colocando-a nas mãos de cinco ministros que, por definição, têm independência política. Abraham Lincoln abominava a ideia de que a soberania popular deveria caber à Suprema Corte. Ele alertou, em seu discurso de posse, que, “se uma política governamental quanto a questões fundamentais para todo o povo vai ser irreversivelmente determinada pela Suprema Corte (...) o povo deixará de governar a si próprio, chegando a praticamente delegar seu governo ao eminente tribunal”.
Permitir que uma maioria da Suprema Corte crie uma emenda à Constituição ou a um estatuto é antidemocrático – sobretudo no contexto constitucional. São necessárias supermaiorias no Congresso e nos estados para criar emendas à Constituição, assim como foi necessária uma supermaioria dos treze estados originais para que a Constituição fosse adotada. Nosso sistema constitucional é virado de ponta-cabeça quando se permite que cinco ministros se sobreponham à vontade da maioria esmagadora da população.
Com a confirmação do ministro Kavanaugh, pela primeira vez em muito tempo há uma maioria de ministros na Suprema Corte que, em vários níveis, pratica o originalismo e o textualismo. Isso significa que a Suprema Corte pode sistematicamente começar a restaurar o sentido original da Constituição.
Essa restauração constitucional não quer dizer que o sentido original da Constituição seja o melhor, do ponto de vista político, quanto a determinado assunto. Quer dizer que as pessoas é que decidem o que é melhor e que à Suprema Corte cabe respeitar a vontade delas. A Suprema Corte não tem autoridade para divergir do sentido original da Constituição, e sim apenas o dever de recorrer a ele até que as pessoas decidem alterá-lo. E, com a nova composição da Suprema Corte, pode-se avistar no horizonte o dia em que, novamente, ela estará no topo do poder “menos perigoso” do governo.
*John Yoo é professor de direito na Universidade da Califórnia, Berkeley, professor-visitante no American Enterprise Institute e bolsista-visitante no Hoover Institution, na Universidade de Stanford. James C. Phillips é advogado e bolsista no Centro de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Stanford.
©2018 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês.