A última moda no ativismo da Justiça criminal é o conceito de “crime de sobrevivência”. A teoria sustenta que os sem-teto, os pobres e os negros cometem crimes contra a propriedade e infrações de baixo nível para assegurar sua sobrevivência básica. Aplicar qualquer punição nesses casos é, portanto, uma violação aos direitos humanos básicos dessas pessoas. É preciso flexibilização – isto é, os governos locais devem parar de aplicar quaisquer leis que “criminalizem a falta de moradia” e “criminalizem a pobreza”.
A teoria do crime de sobrevivência é o oposto da teoria das janelas quebradas. Elas lidam com a mesma classe de delitos – principalmente crimes contra a propriedade, posse de drogas e perturbações da ordem pública – de um modo completamente oposto. A teoria das janelas quebradas argumenta que todos são responsáveis por seu próprio comportamento e que, se permitirmos crimes menores, isso levará a um colapso geral na lei e na ordem. A teoria do crime de sobrevivência, em contrapartida, argumenta que os governos locais deveriam descriminalizar esses delitos porque indivíduos vulneráveis são compelidos pelas condições sociais a cometê-los.
A ideia de “crime de sobrevivência” não é nova e circula em ambientes acadêmicos há décadas. Para as pessoas que vivem em uma favela de Caracas, Peshawar ou Cartum, pode haver um argumento moral de que roubar comida para si ou para a família é um “crime de sobrevivência” justificado.
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Mas os Estados Unidos não são a Venezuela, o Paquistão ou o Sudão. O governo federal atualmente gasta mais de US$ 1 trilhão por ano em programas de combate à pobreza, incluindo assistência geral, vale-refeição, auxílio moradia, auxílio social e orientação nutricional para grávidas e crianças. Toda cidade norte-americana tem uma rede de igrejas, bancos de alimentos e instituições de caridade que oferecem assistência direta. E, se pensarmos mais amplamente, nunca tivemos taxas de desemprego tão baixas e, em cidades como São Francisco, Nova York e Seattle, os salários mínimos nunca foram tão altos.
O problema é que cidades como Seattle e São Francisco não apenas “descriminalizaram a falta de moradia” ou “descriminalizaram a pobreza”: elas têm descriminalizado cada vez mais o crime. Nos últimos cinco anos, a classificação do crime de sobrevivência se expandiu muito além do roubo do proverbial pão de cada dia.
Na Califórnia, por exemplo, a Proposição 47 rebaixou o roubo de propriedade avaliada em menos de US$ 950 para uma contravenção, o que significa que é improvável que a polícia persiga ladrões habituais. O resultado previsível: um aumento em todo o estado de pequenos furtos. Seattle e King County recentemente divulgaram novas diretrizes pedindo aos policiais que parem de prender indivíduos por todos os “crimes relacionados ao desabrigo”, com o objetivo de “eliminar a desproporcionalidade racial” e garantir que as políticas “não penalizem a falta de moradia e pobreza”. Enquanto isso, os procuradores do condado arquivaram milhares de casos de contravenção contra “populações vulneráveis”.
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Tudo isso causou frustração generalizada entre os moradores e os policiais. Como um policial veterano de Seattle me disse: “basicamente, paramos de aplicar a lei contra a população sem-teto. Os líderes políticos não querem isso e os promotores não vão se responsabilizar por isso. É uma perda de tempo”.
Em Nova York, o Departamento de Polícia parou de prender as pessoas por sonegação de metrô, alegando que o cumprimento da lei tem um impacto desigual sobre os pobres; entrar sem pagar a tarifa é consideravelmente mais frequente desde que a nova política foi promulgada.
Embora cresça a preocupação de que essas políticas permissivas tenham levado a um aumento do crime contra a propriedade, o maior risco da teoria do crime de sobrevivência é que estamos lentamente criando um sistema de justiça paralelo: um para cidadãos comuns e outro para grupos identitários politicamente favorecidos. Os ativistas argumentaram com sucesso que devemos sacrificar a igualdade perante a lei para abordar as desigualdades sociais mais amplas. Eles estão efetivamente argumentando que o nosso princípio fundamental de “igualdade perante a lei” é simplesmente um mecanismo de opressão do Estado contra os sem-teto, os pobres e os negros – uma inversão radical de seu significado constitucional original.
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Se os ativistas são bem-sucedidos nessa reavaliação da lei, não há limite óbvio para a extensão da teoria do crime de sobrevivência a outros grupos identitários favorecidos. Já existe uma literatura crescente que defende que as proteções contra crimes de sobrevivência devem ser estendidas à comunidade LGBTQ, profissionais do sexo e beneficiários de benefícios públicos. Sob a doutrina ampla da interseccionalidade, esses grupos podem ser estendidos ad infinitum, dependendo dos caprichos políticos do momento. Em pouco tempo, nossos processos judiciais podem não começar mais com a questão “qual é o crime”, mas “quem é o criminoso”. A Senhora Justiça poderá finalmente retirar sua venda e desempenhar um novo papel como árbitro de dois sistemas legais separados, dependendo de quem está diante dela.
* Christopher F. Rufo é escritor, cineasta e pesquisador, além de diretor executivo da Documentary Foundation.
Tradução de Gisele Eberspächer.
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