Um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) atendeu, em caráter liminar (urgente), ao pedido da deputada Maria do Rosário (PT-RS) para que fosse retirado do Facebook, Youtube e do Twitter um vídeo do humorista Danilo Gentili. No vídeo, Gentili rasga uma notificação extrajudicial enviada pela deputada, esfrega os papeis nas partes íntimas e envia-os de volta à parlamentar, usando linguajar pesado e irônico. A decisão reacendeu as polêmicas sobre liberdade de expressão e humor no Brasil e foi criticada por especialistas no tema.
No despacho, da última quinta-feira (01), o desembargador Túlio de Oliveira Martins considera que há, no vídeo, “grave” dano à imagem da deputada e, possivelmente, ocorrência de crime. O desembargador escreve ainda que o conteúdo é de “natureza misógina, representando agressão despropositada a uma parlamentar e às instituições” e que “não é notícia, nem informação, nem opinião, nem crítica, nem humor, mas apenas agressão absolutamente grosseira marcada por prepotência e comportamento chulo e inconsequente”.
Análise
Para Ronaldo Porto Macedo Junior, professor titular de Filosofia do Direito da USP e da FGV-SP, a decisão do juiz é mais um exemplo do descuido do Judiciário brasileiro com o tema da liberdade de expressão. “O que o juiz faz é colocar um argumento ao lado do outro para fazer volume retórico. Juntar 20 argumentos ruins não dá nem um argumento bom”, diz Macedo Junior. O professor, que também é Procurador do Ministério Público de São Paulo, publicou recentemente um artigo em que analisa a jurisprudência brasileira sobre a liberdade de expressão e os fundamentos políticos da ideia.
Macedo Junior critica os fundamentos da decisão, que se concentra na falta de polidez da linguagem de Gentili e na natureza ofensiva do vídeo. “Isso não poderia ser um fundamento válido para restringir e cercear a liberdade de expressão”, afirma. O professor reconhece que há contextos especiais em que se pode exigir um padrão mais cuidadoso com a linguagem: a ideia do decoro parlamentar, por exemplo, implica que não se pode usar qualquer tipo de palavreado. No humor, porém, a questão é mais complicada.
“O Danilo Gentili é grosseiro, mas o vídeo está em contexto humorístico. Você não pode fazer depender a liberdade de fazer humor do fato de o ironizado ou todo mundo achar engraçado. O humor não precisa ser unânime”, pondera Macedo Junior. “Não compete à deputada ou aos bons modos do juiz entender se o humor é adequado ou não”, completa.
Já para Rodrigo Xavier Leonardo, advogado e professor de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a decisão do juiz não configura censura, porque não foi prévia à sua publicação. “Não creio haver, nesse caso, qualquer violação da liberdade de expressão. O humorista, aliás, livremente expressou as suas ideias e agora está respondendo por essa expressão. O outro lado da moeda da liberdade é a responsabilidade. Essa é uma regra basilar em qualquer sociedade minimamente civilizada”, afirma.
O advogado não considera o conteúdo do vídeo de Gentili um trabalho de humor. Pelo contrário, trata-se, segundo ele, de “ofensa grave, pura e simples”. De acordo com Xavier Leonardo, “o fato de o humorista ter por trabalho o humor não cria um escudo para a agressão livre. Até mesmo para a proteção da liberdade de expressão, este lamentável caso deve ser diferenciado do exercício regular da profissão humorística no Brasil”, opina.
Leonardo Gomes Penteado Rosa, professor da Universidade Federal de Lavras (UFLA), discorda dessa visão. “É verdade que a manifestação é grosseira, mas isso não afeta sua natureza de opinião, de humor e de crítica. Nós até podemos almejar o ideal de uma opinião polida e racional, mas isso não significa que nós podemos impor este ideal por meio de regras punitivas que impeçam o indivíduo de falar o que ele pensa, da forma que ele pensa”, afirma o Rosa, que dedicou sua dissertação de mestrado ao tema da liberdade de expressão.
Tanto Macedo Junior quanto Rosa enxergam no vídeo de Gentili, além de humor, uma manifestação de conteúdo político. “Essa maneira agressiva e grosseira é também um jeito irônico e político de fazer uma defesa da liberdade de expressão. É como se ele dissesse: ‘Está querendo que eu tenha bons modos? Agora é que eu vou até o limite para mostrar que eu tenho esse direito’. Esse é o teor do final da fala dele, de contestar o que ele considera um comportamento censor da deputada”, diz Porto Macedo.
“O vídeo é claramente político. Ele se manifesta de maneira grosseira, misógina e imatura, mas contra o que, na opinião dele, é um abuso de uma parlamentar. Ele veicula no vídeo uma relação entre cidadão e Estado que não é sofisticada, mas você não precisa ser sofisticado e racional para ter respeitadas suas condições de exercício de liberdade”, afirma Rosa.
Honra
No despacho, o desembargador enxerga a possibilidade de ter havido crime na manifestação de Gentili, o que, “se for o caso, deverá ser apurado em instância própria”, embora não diga qual crime tinha em mente. No Brasil, a honra e a imagem das pessoas são protegidas pela Constituição Federal, nos incisos V e X do artigo 5º, e o Código Penal prevê três crimes contra a honra: a calúnia, a difamação e a injúria.
“O fundamento mais plausível da sentença seria o dano à honra”, afirma Porto Macedo. “Ainda assim, no caso, parece ser mais uma brincadeira de mau gosto, porque o Gentili não estava efetivamente dizendo que ela [Maria do Rosário] é ‘puta’, mas fazendo a piada-trocadilho com a palavra ‘de-puta-da’. Ou seja, por mais que seja grosseiro, parece não haver dano real à imagem”, completa.
“O que há no vídeo é uma ofensividade, mas ninguém tem o direito de não se sentir ofendido. Isso não é crime contra a honra. Uma parte importante do humor é, e pode ser, ofensiva. O que se espera de uma sociedade liberal é que as pessoas, se for o caso, boicotem o Danilo Gentili, de alguma forma minimamente espontânea”, diz Porto Macedo.
Para Leonardo Rosa, está na hora de o Brasil discutir a possibilidade de certos crimes que estão em tensão com a proteção da liberdade de expressão deixarem de existir. “Nós ainda precisamos fazer esforço de interpretação da Constituição que não dê o espaço que o Legislador tem hoje para criminalizar a opinião”, afirma. “O STF perdeu pelo menos uma oportunidade de fazer isso quando discutiu a Marcha da Maconha, porque o tribunal saiu pela tangente e não discutiu a constitucionalidade do crime de apologia ao crime [artigo 287 do Código Penal]”, diz o professor.
Embora Rosa reconheça que a Constituição Federal protege, além da liberdade de expressão, a honra e a imagem das pessoas, ele questiona a compreensão trivial dessas ideias. “O que é honra e imagem? Eu tenho um direito a uma imagem pública? Eu tenho direito a uma honra publicamente incólume? Isso não é óbvio. A discussão política passa pela atribuição de defeitos às figuras públicas, inclusive ao próprio Danilo Gentili”, pondera. “Se honra for o conjunto da opinião que terceiros têm de você, então nunca poderão explanar uma opinião negativa sobre você. Isso não pode ser honra”, afirma.
“Essa é uma questão delicada que vários países tentam equacionar de formas diferentes: alguns são mais protetivos da liberdade de expressão, outros são mais protetivos da honra, mas nós devemos apostar na liberdade de expressão sobretudo quando estamos lidando com figuras públicas”, opina. “Não faz parte do regime democrático que os políticos tenham controle sobre a própria imagem. Quem deve controlar a imagem do político é a própria sociedade”, completa.
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