A dor de cabeça por ter que registrar o roubo de seu carro foi fator determinante para a trajetória profissional da jovem advogada Ana Paula Braga, 25 anos, que atua em São Paulo (SP). A decisão, porém, não veio de seu problema pessoal, e sim da situação que presenciou no ambiente inóspito que é uma delegacia. Ao chegar ao local, Ana se deparou com uma jovem que estava na capital paulista para um festival de música e, na cidade, foi vítima de um estupro coletivo.
“A moça foi estuprada por três moradores de rua e estava há cinco horas pedindo para ser atendida. O pessoal ria da cara dela, achava que era maluca. Na mesma hora, assumi a defesa e a gente conseguiu registrar o boletim, levar para Instituto Médico Legal (IML) e dar prosseguimento”, conta Ana.
Como a mulher não era de São Paulo, o caso não seguiu com a advogada, mas só o primeiro atendimento foi tão marcante na vida de Ana Paula que se mostrou crucial para que ela e a amiga Marina Ruzzi, também de 25 anos, dessem prosseguimento ao projeto que já vinham estudando há um tempo: um escritório especializado em direito das mulheres e desigualdade de gênero. Assim, maio de 2016 nasceu o Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas. Com sede em São Paulo, suas fundadoras o consideram o primeiro escritório de advocacia feminista do país.
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As advogadas contam que sempre notaram existir uma carência no mercado de uma advocacia que conseguisse olhar, a fundo, os problemas das mulheres. Na opinião das profissionais, o direito é muito “fechado em casinhas”. Um advogado, por exemplo, especializa-se em penal, ou em trabalhista, ou em família, e por aí vai. E quando o assunto é violência de gênero, podem ser envolvidas diversas áreas.
“Eu ouvia muita queixa das mulheres falando que os problemas delas não eram bem compreendidos, que elas queriam uma advogada mulher, feminista, que pudesse entender a situação pela qual elas estavam passando. Se não houvesse um olhar treinado para isso, muitas vezes o problema real delas passava desapercebido”, explica a advogada Ana Paula.
Outro obstáculo apontado pela jurista diz respeito à legislação brasileira. Embora os instrumentos legais tenham avançado no sentido de proteger a mulher – como exemplo, é possível citar as leis 11.340/2006 e 13.104/2015, respectivamente, a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio – muito se argumenta que, sozinha, a lei não dá conta. “Ou não é aplicada”, acrescenta Ana Paula. Na visão da advogada, o direito ainda é muito masculino, em que os ocupantes da esfera de poder são, principalmente, homens mais velhos, “que nem sempre têm essa consciência de gênero”. Além da orientação jurídica, portanto, as advogadas buscam trazer a fundamentação de gênero nos processos.
A respeito dos casos atendidos, as advogadas afirmam que o “carro-chefe” da sociedade é mesmo a violência doméstica. Os casos se desdobram no registro do BO, no pedido de medida protetiva e na regulamentação na parte da família, que pode envolver, por exemplo, um divórcio, uma guarda, um pedido de pensão. Elas atendem, também, casos de violência sexual – estupro, principalmente – e de revenge porn, quando fotos íntimas são compartilhadas na internet sem autorização da pessoa que está sendo exposta.
Isso não quer dizer que as jovens não possam atender homens, desde que se trate de uma causa neutra, na qual eles não sejam agressores. “Mas realmente o nosso foco é em casos de violência de gênero”, diz Ana.
Resistência
As advogadas contam que ainda enfrentam muita resistência vinda das partes contrárias nos processos e de alguns julgadores. Isso ocorre, em especial, quando o caso envolve formas de violência mais sutis, não tão gritantes quando a violência física, como a violência patrimonial – como a retenção, subtração ou destruição de objetos pessoais, instrumentos de trabalho e documentos pessoais da mulher.
Ana Paula comenta que “alguns acham que é ‘mimimi’, ou que você está usando a [lei] Maria da Penha para tirar alguma vantagem. Outros falam ‘ah, para de exagerar’, sabe?”. Ela conta, também, que mesmo nos casos de violência clara, como o estupro, ainda acontece muito o julgamento da vítima, como se ela tivesse “procurado” aquilo ou tentasse prejudicar o agressor.
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“Muitas vezes, quem comete a violência sexual é alguém próximo da vítima. E se nos casos em que a gente chama de ‘estupro de beco’, quando o agressor é uma pessoa desconhecida, já é difícil conseguir um reconhecimento, nos que envolvem pessoas próximas é ainda pior”, diz a advogada.
Outra coisa que já aconteceu, quando as profissionais trouxeram a argumentação de gênero para o processo, foi de a outra parte tentar lhes descredibilizar como profissionais. Na segunda quinzena de agosto, por exemplo, o representante da parte contrária em um processo que as juristas estão alegou que elas eram “duas jovens advogadas idealistas”, que estavam atuando como “porta-vozes crédulas das mentiras e manipulações” da ex-mulher de seu cliente.
Em outra situação, elas chegaram a receber ameaças por telefone, pedindo para que a cliente retirasse a queixa. Outra vez, numa audiência, a parte contrária chegou a passar por cima da mesa para tentar agredir Ana e Marina. Elas dizem, apesar do medo, já estarem “acostumadas” com isso tudo. E quando veem que realmente conseguiram mudar a vida das mulheres que atenderam, quando o Estado reconhece a violência e vem uma reparação, a satisfação compensa todos os percalços.
Colaborou: Mariana Balan
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