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As autoras da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (APDF) 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, afirmam que precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) permitiriam uma decisão com esse teor: a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3150 e a ADPF 54. A primeira decisão permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias que destruam embriões congelados. A segunda permitiu o aborto de fetos anencefálicos. 

Embora ambos os julgamentos tenham inovado a ordem jurídica brasileira de forma controversa, este texto da série Análise da ADPF 442 do Justiça & Direito vai mostrar que esses precedentes não autorizam a legalização do aborto. As autoras citam também como precedente o HC 124.306, mas este julgamento não pode ser considerado um precedente, porque é uma simples decisão de uma Turma do Supremo.

De acordo com as autoras do processo que corre no Supremo, o tribunal teria estabelecido, no julgamento da ADI 3.510, a tese de que os seres humanos não nascidos não são pessoas no sentido constitucional e, portanto, não teriam direitos fundamentais até o nascimento com vida. Na ADPF 54, a corte teria permitido o alargamento das exceções à punição do aborto, ao considerar os efeitos da criminalização na vida das mulheres. 

“Foi na ADPF 54 que a Suprema Corte brasileira verdadeiramente se movimentou para a primeira análise de constitucionalidade dos efeitos da criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940. O enfrentamento na ADI 3.510 do critério no nascimento com vida para a imputação de direitos fundamentais permitiu à Corte um acúmulo interpretativo sólido para o enfrentamento da questão da anencefalia, em que o quadro fático da malformação levava a uma interpretação de atipicidade do aborto nesse caso”, diz a ADPF 442. 

ADI 3.510 

De fato, em 2008, na ADI 3.510, o STF ensaiou endossar a posição jurídica e moral de que a proteção constitucional à vida só começa com o nascimento do ser humano com vida. Durante a gestação, conforme o desenvolvimento do feto, essa proteção iria aumentando. Essa posição, chamada gradualista, não é neutra nem imparcial. Pelo contrário, desde que vem sendo adotada pelos tribunais mundo afora, ela tem sido duramente criticada por juristas e filósofos morais. Da mesma forma, a visão de que o ser humano é uma pessoa humana desde a concepção não é uma posição necessariamente religiosa e pode ser defendida com base em argumentos puramente racionais. 

O primeiro e o segundo texto desta série dedicaram-se a mostrar que a concepção gradualista do direito à vida, além de ser problemática, não tem esteio na tradição constitucional brasileira (acompanhe a série em ordem). Trata-se de uma invenção recente de um STF que vem ganhando cada vez mais poder. No entanto, mesmo que alguns dos ministros já tenham saído do armário e escancarado suas posições morais, o julgamento da ADI 3.510 não permite a legalização do aborto: na ocasião discutia-se a proteção de embriões congelados que nunca seriam implantados no útero das mães. Essa é uma diferença crucial. No dispositivo da sentença, a tese gradualista aparece no tópico “A Proteção Constitucional do Direito à Vida e os Direitos Infraconstitucionais do Embrião Pré-implanto” (destaque nosso). 

“Na ADI 3.510, estávamos falando de embriões congelados. Não é caso de aborto. O Código Penal é claro ao dizer que o aborto se dá no ambiente uterino. Um ser vivo tem de ter a capacidade de se mover por conta própria, de autodesenvolvimento. O embrião congelado não tem como se desenvolver sem uma intervenção exógena, sem o médico implantá-lo em um útero”, explica Thiago Rafael Vieira, especialista em Direito do Estado e diretor da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos.

O acórdão da ADI 3.510 deixa claro: “É constitucional a proposição de que toda gestação humana principia com um embrião igualmente humano, claro, mas nem todo embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana, em se tratando de experimento "in vitro". Situação em que deixam de coincidir concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecundado) não for introduzido no colo do útero feminino”. Em seguida: “Não se cuida de interromper gravidez humana, pois dela aqui não se pode cogitar. A ‘controvérsia constitucional em exame não guarda qualquer vinculação com o problema do aborto’”. 

Essa distinção não é irrisória, porque corresponde à diferença entre potencialidade ativa e passiva de um ser. O filósofo Christopher Kaczor, autor de The Ethics of Abortion, explica que a potencialidade passiva é a possibilidade que um ser tem de se tornar outra coisa por intervenção de uma força externa. “Já a potencialidade ativa não é nada além que o crescimento ou a maturação, um autodesenvolvimento ativo. Por exemplo, um arbusto tem a potencialidade passiva de ser esculpido na forma da perna de um banquinho, mas se desenvolve ativamente até tornar-se uma árvore madura”, escreve. 

Perpassa todos os debates na ADI 3.510 a compreensão de que os embriões congelados, que eram a “sobra” dos procedimentos de fertilização de casais, nunca seriam implantados em um útero e, portanto, nunca seriam seres humanos adultos. A pesquisadora Débora Diniz, por exemplo, é citada pelo relator da ação, ministro Carlos Ayres Britto: “O diagnóstico de inviabilidade do embrião constitui procedimento médico seguro e atesta a impossibilidade de o embrião se desenvolver. Mesmo que um embrião inviável venha a ser transferido para um útero, não se desenvolverá em uma futura criança. O único destino possível para eles é o congelamento permanente, o descarte ou a pesquisa científica”. 

Diante desse fato, a escolha diante do STF era proteger integralmente um embrião fecundado fora do corpo da mulher que ficaria para sempre congelado, ou permitir que pudessem tornar-se material de pesquisas, que eventualmente redundariam em benefícios para outros seres humanos. Independentemente da correção ou não dessa decisão do Supremo, ela não pode ser precedente para legalizar o aborto, que consiste em interromper uma gravidez e destruir um ser humano que, sem intervenção externa, em geral se desenvolverá plenamente. 

Kaczor também explica a diferença entre deixar de iniciar um determinado processo causal – no caso, a gestação – e interrompê-lo depois de iniciado. “Embora normalmente não seja errado não fazer uma promessa, é errado quebrar essa promessa no meio do caminho. Normalmente, não há uma obrigação de ajudar um amigo com a mudança, mas se eu estiver ajudando um amigo a carregar um piano de cauda até o quarto andar e, no meio do caminho, na escada, repentinamente for tomar sorvete, deixando meu amigo lidar com o objeto imenso, então eu fiz algo errado”, diz o filósofo. 

“Se eu deixar de te dar cinco dólares da minha carteira, eu deixei de melhorar a sua situação, mas nem por isso piorei a sua situação (...) Mas se eu roubar cinco dólares da sua carteira, eu piorei a sua situação de fato, o que é, por óbvio, moralmente culpável (...) Abortar um feto humano ou matar um recém-nascido, é de fato piorar a situação do feto humano ou do recém-nascidos, já que matar priva o ser de sua vida”, completa Kaczor. 

ADPF 54 

No julgamento da ADPF 54, em 2012, o STF entendeu que não há crime de aborto na interrupção da gravidez de fetos anencefálicos, mas a diferença entre as situações em jogo é gritante. O Supremo raciocinou com base em duas noções. Primeiro, dada a inexistência de expectativa de vida depois do nascimento, no caso particular dos fetos anencefálicos, a interrupção da gravidez não seria fato típico, ou seja, não seria crime de acordo com o artigo 124 do Código Penal. Segundo, mesmo que se reconhecesse direito à vida aos fetos anencefálicos, a interrupção da gravidez poderia ser contemplada pela excludente de punição do inciso I do artigo 128, que dá à mulher a possibilidade de optar pela própria vida, em caso de risco, em detrimento do ser humano não nascido. 

“Na ADPF 54, o tribunal usa a terminologia interrupção da gravidez como complemento do artigo 228 [do Código Penal]: o aborto do feto anencefálico seria um aborto terapêutico pela suposta tortura que a genitora estaria sofrendo por gerar uma criança que, no ambiente extra-uterino, não iria viver”, explica Vieira. “Mesmo no caso da ADPF 54, não cabe falar em tortura: tortura é um ato injusto de um terceiro. No caso da ADPF 442, seria ainda pior insistir nesse argumento: por conta de um descuido da mulher, o Estado estaria torturando a mulher por gestar a criança?”, questiona. 

De fato, o ministro relator da ADPF 54, Marco Aurélio Mello, foi taxativo ao alertar que “aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. A anencefalia, que pressupõe a ausência parcial ou total do cérebro, é doença congênita letal, para a qual não há cura e tampouco possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica em momento posterior. O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura”, escreveu o ministro. 

A Advocacia-Geral da União, em manifestação sobre o caso no STF, também percebeu que essa decisão do STF não pode servir de precedente para legalizar o aborto: “ao julgar a Arguição de Descumprimento nº 54, essa Suprema Corte afastou a alegação da arguente no sentido de que seria necessário proceder à ponderação dos direitos mencionados em sua petição inicial. De fato, o fundamento principal do voto condutor do acórdão prolatado em tal julgamento consistiu na inexistência de conflito efetivo entre direitos, dada a ausência de expectativa de vida dos fetos anencefálicos”, escreveu 

A ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, também foi clara durante o julgamento da ADPF 54: “Também faço questão de frisar que este Supremo Tribunal Federal, nesta tarde, não está decidindo nem permitindo o aborto. Essa é uma questão posta à sociedade (...) Portanto, não estamos falando de introduzir no Brasil a possibilidade de aborto, menos ainda de aborto em virtude de qualquer deformação, mas a questão da anencefalia que diz com a possibilidade ou não vida”, disse.

O não precedente

Em novembro, a 1ª Turma do STF surpreendeu o país ao decidir, no curso do Habeas Corpus 124.306, uma questão que não estava sendo discutida no processo. Na ocasião, médicos e funcionários de uma clínica aborteira pediam liberdade ao STF, pois tinham sido presos preventivamente pelo crime de aborto com consentimento da gestante e pelo de formação de quadrilha. Eles alegavam que a prisão não cumpria os requisitos do Código de Processo Penal (CPP).

Depois de o relator do HC , ministro Marco Aurélio Mello, ter votado pela liberdade dos acusados, discutindo apenas questões de processo penal, no que era apenas mais uma entre milhares de ações parecidas que o STF recebe, o ministro Luís Roberto Barroso pediu vista do processo e, quando trouxe seu voto de volta à turma, foi muito além do objeto da ação. Barroso não só se posicionou a favor da concessão do HC, mas afirmou que o regramento atual do Código Penal que trata sobre o crime de aborto deve ser considerado como não recepcionado pela Constituição Federal. O ministro defendeu ainda que não é crime o aborto feito até o terceiro mês de gestação. Foi acompanhado pelos ministros Luiz Edson Fachin e Rosa Weber e o placar terminou 3x2.

Na época, em entrevista ao Justiça & Direito comentando a decisão da 1ª Turma, o advogado André Brandalise apontou dois equívocos de Barroso: não se deve entrar no mérito da tipicidade penal no julgamento de um Habeas Corpus; o Supremo não poderia ter se manifestado sobre o mérito, porque o caso ainda estava tramitando no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Não eram simples equívocos.

Quatro meses depois, em março deste ano, quando a ADPF 442 ingressou no STF, a derrapagem de Barroso revelou-se bem mais do que um mero descuido. Junto à ADI 3.510 e à ADPF 54, o HC veio compor o caldo retórico daqueles que veem, nas posições heterodoxas do STF, o aborto legalizado como o rumo inexorável do direito brasileiro.

Diálogo

Não só a convicção de que a vida deve ser protegida desde a concepção motiva essa série de análises sobre a ADPF 442, mas também nossa crença no poder da razão e do diálogo. O filósofo Christopher Kaczor, que se posiciona a favor da proteção da vida desde a concepção, faz um agradecimento especial, no primeiro parágrafo de seu livro, ao também filósofo David Boonin, que defende a posição contrária: “David Boonin, autor de Uma Defesa do Aborto, merece especial reconhecimento e gratidão. David leu meu manuscrito inteiro duas vezes e, na segunda vez, me mandou 23 páginas, em espaçamento simples, de comentários, questões, objeções e desafios. Estou especialmente em débito para com ele por este trabalho”.

Confira a série completa: Análise da ADPF 442

1. Bebê na barriga é gente? Para defensores do aborto, é “criatura” com menos direito 

2. Há diferença entre os direitos do ser humano que nasceu e os do que não nasceu? 

3. É proporcional descriminalizar o aborto? 

4. Números sobre aborto mostram pontos fracos da legalização como alternativa 

5. Aborto: a liberdade da mulher deve mesmo ser o direito mais relevante? 

6. Decisões anteriores do STF não servem como base para descriminalizar o aborto

7. Não pode abortar? Há alternativas para a defesa da vida, com dignidade para a mulher

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