A deputada estadual eleita Ana Caroline Campagnolo (PSL-SC) criou um canal de denúncia para professores que façam manifestações político-partidárias ou ideológicas em sala de aula.| Foto: Reprodução/Facebook

Eleita para a Assembleia Legislativa de Santa Catarina com 34,8 mil votos pelo “partido de Jair Messias Bolsonaro”, como gosta de dizer, Ana Caroline Campagnolo (PSL) não sai do noticiário. Defensora do Escola Sem Partido, a professora de História fez um pedido a seus seguidores nas redes sociais no domingo (28), assim que foi confirmado o resultado da eleição presidencial: que os estudantes catarinenses denunciassem casos de “manifestações político-partidárias ou ideológica (sic)” em sala de aula. 

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Nas publicações, Ana pede que os estudantes gravem vídeos ou áudios que comprovem a “denúncia” e encaminhem o material para um número de celular disponibilizado por ela. Na quarta-feira (31), o deputado estadual eleito por São Paulo Douglas Garcia, também do PSL, anunciou iniciativa similar, mas voltada a seu estado.

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Tão logo a deputada eleita fez as postagens, opiniões começaram a pipocar. Ao mesmo tempo em que muitos consideraram que suas atitudes fomentariam a censura e a perseguição nas escolas, outros apoiaram a ideia de Ana, embasados na ideia de que há assédio ideológico nas salas de aula Brasil afora. 

Na última terça-feira (30), entretanto, a postagem da professora de História foi alvo de reação maior que comentários na internet, quando o Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC) apresentou Ação Civil Pública, com pedido de tutela antecipada, contra Ana. A ação é assinada pelo promotor Davi do Espírito Santo, titular da 25ª Promotoria de Justiça de Florianópolis. Nesta quinta (1°), o juiz de direito Giuliano Ziembowicz, da Vara da Infância e da Juventude da capital catarinense, acatou parte dos pedidos feitos pelo MP-SC. 

Além de excluir as postagens feitas em suas redes sociais, Ana Caroline deverá se abster de “criar, manter, incentivar ou promover qualquer modalidade particular de serviço de denúncia das atividades de servidores públicos”. Na decisão, Ziembowicz anota que legitimidade para esse tipo de atividade seria de ouvidorias criadas pela Administração Pública. 

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“Pode-se afirmar que está em cena a liberdade de expressão em sala de aula e, ainda, o direito da criança e do adolescente, de alunos da rede escolar do Estado de Santa Catarina, ao ensino guiado pelos princípios constitucionais da liberdade de aprender e ensinar e do pluralismo de ideias e de concepções”, escreve o magistrado no acórdão. A deputada eleita está sujeita a multa diária de R$ 1 mil caso descumpra a sentença. 

Professora de História em Chapecó, no Oeste catarinense, Ana Campagnolo ficou conhecida do grande público ao processar, em 2016, Marlene de Fáveri, professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) ex-orientadora de mestrado da deputada eleita, por suposta “perseguição ideológica”. O 1º Juizado Especial Cível de Chapecó (SC) julgou a ação improcedente, mas Ana recorreu. Já a ex-orientadora apresentou queixa-crime contra a deputada por calúnia e difamação. 

Sem unanimidade

Apesar da iniciativa do Ministério Público e da decisão em primeiro grau da Justiça, especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo não são unânimes em afirmar que a deputada cometeu alguma ilegalidade ao criar o canal de denúncias. 

Doutora em Direito do Estado pela USP e professora do Instituto de Direito Público (IDP-SP), a advogada Telma Rocha Lisowski opina que “mais que antiética e imoral, [a atitude de Ana Campagnolo] é ilegal e inconstitucional”. 

Para Telma, a iniciativa da deputada do PSL fere a liberdade de cátedra, que envolve a “liberdade de ensinar, difundir o conhecimento, o pensamento, e promover o debate de ideias com base num pluralismo, num respeito à opinião, mas permitindo um debate amplo”. A advogada explica que se trata de um princípio constitucional, extraído, especialmente, dos incisos II e III do artigo 206 da Constituição Federal de 1988, presentes também no artigo 3° da Lei 9.394/1996, conhecida também como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). 

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Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: 

(...) 

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; 

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; 

(...) 

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Outro ponto problemático apontado por Telma é o fato de se tratar de um canal de denúncias privado, sem qualquer tipo de controle e fiscalização a respeito do que será feito com o conteúdo recebido. Ela lembra que os diversos canais de denúncia que existem no Brasil em que o anonimato é garantido são canais públicos. 

Em relação às gravações feitas em sala, o advogado Francisco Monteiro Rocha Júnior, doutor em Direito pela UFPR, afirma não haver nenhuma lei específica que proíba a captura do material em áudio e vídeo, sendo necessário observar o que cada escola estabelece. “Mas não é um ilícito para o direito em geral”, ressalta. O problema, diz Telma, é o objetivo para o qual essas gravações serão utilizadas. 

“Parece-me que coagir e ameaçar professores não é um objetivo lícito. Você não pode alimentar algo que tenha um potencial para gerar um discurso de ódio, uma limitação dos professores em sala de aula”, aponta a professora do IDP-SP. 

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Para a advogada, é totalmente compreensível que aluno e professor entrem em discordância no tocante a vários assuntos, mas o debate deve ser feito em sala de aula. No mesmo sentido, Rocha Júnior opina que privilegiar apenas uma forma de ver o mundo gera um ambiente antidemocrático, que não deve tolerar tentativas de cercear um pluralismo político e de concepções. Ele ressalta, porém, que abusos de direito precisam ser contidos – um professor que ofende a honra de um aluno, por exemplo, deve ser punido –, mas pelas vias corretas – nesse caso, a judicial. 

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Liberdade de expressão

Já o também advogado Flávio Pansieri, fundador da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Abdconst), não enxerga ilegalidade na iniciativa de Ana Caroline Campagnolo, vez que a liberdade de manifestação, inclusive da deputada eleita, é livre no Brasil. Na visão dele, “o escândalo criado a partir da manifestação dela é maior que se apresenta”. Isso porque, de acordo com Pansieri, ao mesmo tempo em que a LDB garante a liberdade de cátedra, também se extrai da lei a ideia de que professores não podem fazer da sala de aula um espaço de militância de qualquer ideologia. 

“Tenho convicção de que a maior parte dos professores são professores democráticas, que seguem uma linha dialética, que permitem diferentes visões a seus alunos. Mas, se por um acaso existir uma minoria que não o faz, ela precisa ser responsabilizada”, afirma o advogado. 

Segundo Pansieri, o princípio da liberdade de cátedra não pressupõe que o professor diga em classe o que quiser, mas permite que ele explore diferentes vertentes sobre um determinado tema, e não escolha uma como verdade absoluta. E assim como os professores que cometerem abusos em sala podem ser responsabilizados, a deputada também pode ser punida se lançar mão de excessos com o material fruto das denúncias, caso ofenda ou exponha alguém sem autorização, por exemplo. 

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“Temos que lutar de verdade pela ideia de liberdade, mas liberdade está vinculada à ideia de responsabilidade”, diz.