Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF) decidir se o crime de desacato a funcionários públicos fere ou não a Constituição Federal de 1988. É que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propôs, junto à Corte, arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) alegando que a manutenção do delito viola princípios protegidos pela Carta Magna, como o da liberdade de expressão.
Previsto no rol dos crimes contra a Administração Pública do Código Penal, o crime consiste em “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela” e encontra raízes no crime de lesa-majestade, surgido durante o Absolutismo. Mas se na Idade Moderna ofender a dignidade do soberano poderia resultar em morte, hoje, quem comete desacato está sujeito a uma detenção que pode variar de seis meses a dois anos, ou multa.
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Para a OAB, ao não especificar com precisão o que seria o desacato, a lei acaba por reprimir a liberdade de manifestação dos cidadãos, que ficariam intimidados a não se manifestar diante de certas condutas praticadas por agentes públicos, por receio de incorrer no crime de desacato. Na visão da entidade, a manutenção do delito violaria os preceitos republicanos da liberdade de expressão, da igualdade e do Estado Democrático de Direito, todos protegidos pela Constituição.
“Em razão da ausência de uma descrição adequada do tipo, a configuração do crime se sujeita à interpretação do julgador, o que possibilidade a ocorrência de arbitrariedades por parte dos agentes públicos”, anota o órgão na petição endereçada ao Supremo. Embora seja mais comum ter notícia de casos de desacato envolvendo policiais militares, o delito pode ser empregado a diversos níveis de funcionários públicos, como promotores, juízes, escreventes, etc.
O artigo 5°, inciso IV, da CF, por exemplo, prevê que “é livre a manifestação do pensamento”, enquanto o parágrafo 2° do artigo 220 dispõe que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. A OAB também lembra que por meio da ADPF 130, julgada em 2009, o STF derrubou a Lei 5.250/1967, conhecida como Lei de Imprensa, justamente por impor limites ao exercício da liberdade de expressão.
Foi designado como relator o ministro Luís Roberto Barroso e o julgamento ainda não tem data prevista para ocorrer.
Discussão recorrente
A discussão a respeito do fim do crime de desacato tem sido recorrente no meio jurídico, em especial devido a duas decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em dezembro de 2016, a Quinta Turma do tribunal descriminalizou a conduta tipificada como crime de desacato, por entender que a lei atentaria contra a liberdade de expressão. No último mês de maio, contudo, a Terceira Seção do STJ, que engloba a Quinta e a Sexta Turma da Corte, decidiu que desacatar funcionário público do exercício da função e em razão dela continuava a ser crime, principalmente para proteger o agente público contra ofensas exageradas.
Em matéria publicada em setembro na Gazeta do Povo sobre o assunto, o advogado criminalista Jovacy Peter Filho afirmou ao Justiça acreditar que dois são os motivos para a discussão a respeito do crime de desacato estar em voga: enquanto o primeiro diz respeito aos limites da liberdade de expressão, ainda mais em tempos de sociedade tão polarizada, o segundo se relaciona aos limites de intervenção do próprio Estado no funcionamento social.
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Na mesma ocasião, a advogada Camila Marques, coordenadora do Centro de Referência Legal da ONG Artigo 19, disse que o funcionário público pode lançar mão do instrumento do desacato para silenciar vozes, pois seria “muito utilizado contra os setores mais marginalizados da sociedade, como a população negra, pobre e periférica”.
A ONG, que em 2017 lançou a publicação Teses Jurídicas para a Descriminalização do Desacato, traz a teoria do direito penal mínimo para justificar a descriminalização do desacato. Nesse sentido, apenas as condutas capazes de ferir ou colocar verdadeiramente em perigo a sociedade é que deveriam ser tuteladas pelo sistema judicial penal.
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