Nota do Editor: O texto analisa as políticas americanas contra o aborto, mas é uma das melhores introduções à retórica internacional que busca legitimar o aborto e tem reflexos nas discussões nacionais, inclusive no Brasil. O texto também oferece uma estratégia para engajar os movimentos pró-vida nacionais em um esforço concertado internacionalmente a fim de reverter a atual política da ONU sobre “direitos sexuais e reprodutivos”, de 1994, naquilo em que pretende transformar o aborto em um direito internacional.
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O movimento pró-vida não pode se limitar aos Estados Unidos. Assim como os abolicionistas tiveram em vista a desmontagem do comércio global de escravos, o movimento pró-vida também deve ter como alvo o conglomerado pró-aborto de governos, filantropos, burocratas internacionais, acadêmicos e de falsas organizações da “sociedade civil” que eles usam como representantes. O objetivo deve ser privá-lo de apoio financeiro e político nacional e internacional e eventualmente desmontá-lo.
Até agora, o presidente Trump vem seguindo o exemplo dos ativistas pró-vida por trás da Emenda Helms [que proíbe a ajuda internacional do governo americano a práticas de aborto como planejamento familiar], de 1973, e da Política da Cidade do México [que proíbe o governo federal americano de financiar ONGs que promovam o aborto], de 1984.
Trump restituiu e expandiu a Política da Cidade do México. Ele tirou financiamento do Fundo de População da ONU (UNFPA). Ele insistiu em limitações importantes a acordos internacionais que incluem “saúde sexual e reprodutiva”, para desconsiderar direitos internacionais ao aborto e fez ressalvas aos acordos da ONU. Mas isso deve ser apenas o começo.
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Quero sugerir aqui dois outros passos essenciais para o movimento pró-vida internacional – passos em que o governo Trump pode desempenhar um papel catalisador.
Uma Política da Cidade do México multilateral
Em primeiro lugar, a Política da Cidade do México deve se tornar uma iniciativa multilateral. O objetivo final aqui é tornar o aborto e o auxílio multilateral incompatíveis no século 21. E, ao lançar uma campanha pró-vida multilateral, o presidente Trump estará cumprindo a sua intenção declarada no discurso do Estado da União, em 30 de janeiro, de os EUA apenas oferecerem assistência internacional a países e organizações que sejam aliados dos Estados Unidos e compartilhem dos nossos valores.
Isso se tornou urgente com o surgimento da campanha europeia “She Decides” (“Ela decide” em português), de US$ 560 milhões, pelo resgate da indústria global do aborto após o restabelecimento da Política da Cidade do México. Até agora, o Departamento de Estado dos EUA não fez nada para contestar essa iniciativa, apesar de a campanha ser abertamente antiamericana.
Muitos países apoiariam os esforços dos EUA em lutar contra a indústria do aborto, principalmente se os EUA criarem iniciativas para isso. Isso poderia acontecer por meio de um acordo multilateral criando uma parceria de longo prazo para oferecer assistência médica a mães e crianças, sem promover ou realizar abortos de forma alguma.
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Tanto os doadores quanto os Estados em desenvolvimento seriam convidados para participar da parceria, juntamente com organizações mundiais de saúde como World Vision, Caritas e Catholic Relief Services, assim como organizações pró-vida famosas. Uma cúpula anual reuniria os parceiros para renovar o seu compromisso, monitorar resultados e dar as boas vindas aos novos parceiros.
Condições políticas favoráveis para tornar isso possível existem na Polônia, Hungria e Malta, e em dezenas de países na América Latina, África e Ásia, onde as leis são altamente protetoras dos seres humanos não nascidos. A Santa Sé, que é o defensor absoluto dos nascituros na sede na ONU há décadas, e em alguns momentos seu único amigo, também deveria ser um parceiro poderoso nessa iniciativa.
Mudando o paradigma normativo internacional
Em segundo lugar, o movimento pró-vida deve pressionar os EUA e outros países a se tornar mais agressivos em contestar políticas de “saúde sexual e reprodutiva” que apoiam a indústria mundial do aborto. O objetivo é eliminar totalmente as políticas de aborto da ONU.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos não proíbe explicitamente o aborto. Ao mesmo tempo, o aborto não pode ser considerado um direito internacional, como os Artigos de São José explicam de forma útil. Pelo contrário, as crianças no útero estão presumidamente protegidas por instrumentos chave dos direitos humanos. Mesmo assim, crianças não nascidas estão sendo atacadas nas arenas internacionais há mais de três décadas.
Grupos favoráveis ao aborto conseguiram promover o acesso ao chamado “aborto seguro” em acordos da ONU. O debate internacional sobre o aborto se solidificou nesse ambiente, preso em um paradigma normativo desfavorável estabelecido na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada em 1994 no Cairo, que permitiu que o aborto entrasse nas políticas da ONU, ainda que com limitações.
O acordo inclui o aborto expressa e implicitamente em múltiplas definições de “saúde sexual e reprodutiva” e em frases relacionadas. O termo foi cunhado por grupos a favor do aborto e de controle populacional para legitimar o aborto juntamente com assistência médica maternal, planejamento familiar e tratamento e prevenção da AIDS. Isso encobre o horror do aborto e faz parecer que ele é apenas mais um aspecto da assistência médica.
Minha colega na C-Fam, Dra. Susan Yoshihara, descreveu a gênese dessa terminologia em políticas internacionais no artigo “Lost in Translation” (“Perdidos na Tradução”, em tradução livre). Nos últimos anos, essa terminologia também se tornou um condutor para agendas extremistas LGBT, ideologia de gênero e educação sexual controversa.
O Acordo do Cairo foi adotado com essa linguagem sob protestos da Santa Sé e muitos outros Estados membros da ONU. No entanto, a Santa Sé, apoiada por uma coalizão maior de outros países, conseguiu obter concessões importantes no acordo final para limitar a ameaça aos seres humanos não nascidos.
Isso inclui declarações de que (1) o aborto não é um direito internacional, (2) não pode ser promovido como uma forma de planejamento familiar, (3) os governos devem ajudar as mulheres a evitar o aborto e (4) onde o aborto é legalizado, deve ser “seguro” – sugerindo que o aborto não é apenas inerentemente perigoso, mas também é presumidamente contra a lei.
Na época, o impulso em direção a um direito internacional ao aborto parecia irrefreável, e ninguém tinha nenhuma ilusão sobre o que o termo “saúde sexual e reprodutiva” significava. Essas limitações foram vistas como uma vitória importante e improvável, como pode ser visto no relatório de George Weigel no First Things, “What Really Happened At Cairo” (“O que realmente aconteceu em Cairo”, em tradução livre).
Desde o Acordo do Cairo, os grupos de aborto e seus apoiadores internacionais buscaram enfraquecer, ignorar e ir além das limitações da CIPD. Então desde que o consenso da ONU continue a incluir as limitações da CIPD, essa é a evidência mais forte de que os Estados membros da ONU não querem que o aborto seja um direito internacional. Esse é um motivo importante de o acordo de Cairo e suas limitações terem sido incluídos na Agenda 2030, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 2015.
O que realmente aconteceu de errado no Cairo
Embora a moldura da CIPD exclua um direito internacional ao aborto, em nível político e programático ela legitima o aborto e traduz isso em apoio político e financeiro para grupos de aborto. Essas limitações simplesmente não se mostraram eficazes.
Saúde sexual e reprodutiva é o maior item na agenda global de saúde, com que se gasta cerca de US$ 12 bilhões todo ano, segundo dados da OCDE. Agências da ONU, autoridades públicas e grupos a favor do aborto conseguiram inverter habilmente as limitações para promover o “aborto seguro” não apenas nas políticas da ONU, mas em mecanismos de direitos humanos da ONU. Susan Yoshihara descreveu os maiores contornos desse esquema no seu artigo “Rights by Stealth” (“Direitos Furtivos”, em tradução livre).
Apesar de parecer obscuro, o acordo político sobre o aborto alcançado no Cairo não é muito diferente do acordo sobre a escravidão alcançado na Constituição dos EUA [em 1787]. O acordo tenta unir duas posições diametralmente opostas. Assim como na cláusula na Constituição dos EUA, que coloca a escravidão em uma perspectiva negativa, os embargos da CIPD também colocam o aborto em uma perspectiva negativa. Mas assim como a cláusula sobre escravos fugitivos na Constituição dos EUA legitimava a escravidão, o acordo do CIPD também legitimou o aborto.
É por isso que o movimento pró-vida não pode se contentar enquanto o atual acordo da CIP sobre aborto existir. Não há acordos políticos ou burocráticos com os quais os ativistas pró-vida possam se sentir confortáveis enquanto crianças forem mortas no útero.
Os esforços da Santa Sé para enfraquecer o acordo da CIPD, durante mais de vinte anos, são um modelo que os ativistas pró-vida deveriam seguir. Diferentemente dos Estados que esconderam sua consciência por trás dos seus limites territoriais soberanos e do caráter não obrigatório dos acordos da ONU, a Santa Sé teve que cumprir o seu dever moral de mostrar preocupação com as crianças não nascidas, onde quer que elas estejam e em todos os momentos, e nunca se contentou com o status quo. Em decorrência disso, a entidade contestou firmemente termos como “direitos reprodutivos” nos acordos da ONU.
Dezenas de nações seguiram o exemplo da Santa Sé, incluindo os Estados Unidos no governo Bush. Mais recentemente, toda a União Africana e o Conselho de Cooperação do Golfo, além de diversos outros países individualmente, fizeram ressalvas a esses termos quando a Assembleia Geral adotou a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, em 2015.
Mas o movimento pró-vida precisa aumentar a pressão às delegações da ONU para contestar a inclusão da saúde sexual e reprodutiva em políticas da ONU até que elas sejam redefinidas para excluir o aborto. Isso não é um jogo de palavras com as definições atuais das políticas da ONU, como alguns sugerem.
Isso significa tirar completamente o aborto das políticas da ONU. Infelizmente, mesmo com políticas internacionais e instituições ameaçando os seres humanos não nascidos de modos antes inimagináveis, alguns grupos pró-vida não acreditam que valha a pena travar essa batalha.
Não podemos entregar as normas internacionais para a indústria do aborto
Apesar de ser compreensível que os grupos pró-vida estejam desmoralizados após os ataques implacáveis que receberam no governo Obama, tirar o aborto das políticas da ONU não é um objetivo inalcançável, como alguns argumentam. Pelo contrário, esse deve ser o objetivo principal da causa pró-vida internacionalmente. Cerca de um terço dos Estados membros da ONU são altamente protetores de crianças no útero. Essas são as mesmas nações que expressaram ressalvas à “saúde sexual e reprodutiva” como um todo, ou ao aborto mais especificamente.
Na semana passada, o Departamento de Estado dos EUA publicou a sua primeira revisão da Política da Cidade do México e constatou que ela foi majoritariamente aceita por parceiros da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). Apenas quatro grupos de aborto se recusaram a aceitar as condições da política. Apenas isso já deveria ser indício suficiente de que é possível excluir o aborto de políticas da ONU.
Devido ao poder e influência que os EUA exercem internacionalmente, os EUA sozinhos podem alimentar o ímpeto e a inclinação política pelo fim do aborto. O acordo da CIPD, por si só, nunca poderia ter incluído o aborto em uma política da ONU sem pressão do governo Clinton. O governo Trump já deu alguns passos importantes para levar de volta o debate na ONU sobre aborto para onde estava antes das linhas de defesa da era Obama, ao pedir para qualificar o termo “saúde sexual e reprodutiva” em referência ao acordo da CIPD em pelo menos alguns dos acordos internacionais recentes.
Isso é essencial para impedir o desenvolvimento de um direito internacional ao aborto e deve permanecer como a posição de segurança da delegação americana na ONU. Mas mais deve ser feito para recuperar as normas internacionais.
O governo Trump, agora, deveria ampliar a disputa normativa na ONU e em outros foros internacionais para lançar as bases para uma retirada completa do aborto das políticas da ONU. O melhor jeito de isso acontecer é opondo-se categoricamente à inclusão do termo “saúde sexual e reprodutiva” em políticas da ONU a menos que seja definido para excluir expressamente o aborto. Enquanto isso não acontecer, o governo americano deveria insistir em se referir aos componentes principais da política de saúde sexual e reprodutiva que não envolvam a morte de uma criança inocente: principalmente saúde maternal, planejamento familiar e tratamento e prevenção de HIV/AIDS.
Continuar a incluir o termo “saúde sexual e reprodutiva” em políticas da ONU e só fazer ressalvas simplesmente não vai atingir, suficientemente, a indústria do aborto. Ressalvas da Santa Sé estabelecem um bom ponto moral e ajudam os diplomatas do país a evitar escândalos. Ressalvas das delegações dos EUA à ONU causam boa impressão na imprensa pró-vida, como no governo Bush e agora no governo Trump. Também estabelecem um argumento contra o aborto como um direito internacional.
Mas, programaticamente, elas são inúteis. Quando se tornam necessárias, é porque as políticas da ONU já incluem o aborto. O dano está feito, e o dinheiro e os esforços políticos pelas crianças mortas no útero já foram gastos.
Nesse sentido, apoiar-se em ressalvas na verdade prejudicou a causa pró-vida. As ressalvas têm atuado como uma medida paliativa moral que permitiu que o câncer da saúde sexual e reprodutiva se tornasse uma metástase nas políticas da ONU. Elas são especialmente convenientes para as delegações da ONU que não têm a fortaleza moral ou o apoio político para se posicionar a favor dos direitos humanos dos seres humanos não nascidos. Elas permitem que delegações que normalmente seriam contrárias ao aborto em políticas da ONU devido às leis do seu país assinem acordos que dão apoio financeiro e político a grupos de aborto.
Um apelo ao presidente Trump
Estamos em um momento crítico na história do movimento pró-vida internacionalmente. E isso pede que o presidente Trump desafie o status quo mais uma vez. A sua disposição em desafiar as ortodoxias aparentemente inatacáveis das burocracias governamentais é um motivo para ter esperança.
Apesar de a indústria do aborto não ter conseguido criar um direito ao aborto, ela teve sucesso em assegurar apoio financeiro e político por meio da política de saúde sexual e reprodutiva da ONU e do sistema ONU. Se isso continuar, a indústria do aborto expandirá a sua influência política, com consequências mortais para crianças não nascidas.
Atingimos um ponto crítico. As políticas internacionais sobre aborto precisam mudar. E elas podem mudar de dois jeitos. Ou o aborto é retirado completamente das políticas da ONU, ou será consagrado como um direito internacional.
Defender a vida por meio de ressalvas e gestos políticos simbólicos não é o bastante. Também não é o bastante voltar para a situação que existia antes de Obama assumir o controle da Casa Branca. O presidente Trump deve ser auxiliado a fazer o seu mandato valer. O movimento pró-vida deve insistir em resultados e vitórias até que o aborto fique no passado.
Stefano Gennarini é Diretor de Estudos Legais no Center for Family and Human Rights (C-Fam) em Nova York. Tweeta como @prolifeadvocate. As opiniões expressadas neste artigo são do autor e não representam necessariamente as opiniões do C-Fam.
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