| Foto: Beto BarataPR

O anúncio da possibilidade de greve dos juízes federais realizado por nove entidades de juízes e integrantes do Ministério Público trouxe novamente o tema do auxílio-moradia às manchetes. A motivação da possível greve é a colocação em pauta pela presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) do julgamento de ações que questionam o pagamento desse benefício aos juízes federais. 

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Regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2014, o auxílio-moradia é um benefício mensal de R$ 4,3 mil concedido a todos os juízes estaduais, federais, da Justiça do Trabalho e Justiça Militar, independentemente de se já possuem residência própria na cidade onde atuam ou se estão atuando em sua cidade de origem. A única restrição para o recebimento desse valor é se tiver à disposição do magistrado um imóvel funcional. 

Para se ter uma ideia dos custos dessa decisão, segundo o blog do jornalista Lúcio Vaz, desta Gazeta do Povo, apenas no mês de dezembro do ano passado 17.094 juízes (88% do total) receberam R$ 76,6 milhões referente ao benefício, dos quais 11.735 são dos Tribunais Estaduais (R$ 52,7 milhões), 3.305 dos Tribunais Regionais do Trabalho (R$ 14,8 milhões), e 1.873 são dos Tribunais Regionais Federais (R$ 8,2 milhões). 

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No início do mês de fevereiro este tema despontou na opinião pública e suscitou questionamentos e defesas. Há aqueles que buscam demonstrar que o auxílio-moradia é inconstitucional; outros, que é indevido, imoral e que é mais uma prova de que o Judiciário não difere dos outros dois poderes na obtenção de regalias e privilégios. Na outra trincheira estão seus defensores, que entendem ser uma compensação pela redução do poder de compra de seus salários em 41% comparado ao ano de 2006 e a falta de reajuste salarial desde 2015. 

Sem dúvida que o auxílio-moradia, do modo como atualmente está configurado, é questionável por todos os lados e ter critérios mais rigorosos para a sua concessão é imprescindível. Também é necessário que se busquem soluções mais plausíveis para a perda salarial dos juízes. Este é o “texto”, digamos, do cenário: discussões e contestações com bases jurídicas, morais e financeiras da coisa em si que, por sinal, devem ser estimulados e continuados. 

Leia também: Não é só auxílio-moradia! Conheça todos os penduricalhos que elevam salários de juízes

Mas talvez seja necessário tomarmos uma “atitude parentética” – termo cunhado pelo grande sociólogo brasileiro Alberto Guerreiro Ramos – para enxergarmos o cenário no qual o auxílio-moradia é apenas mais um componente. Tal atitude é “a capacidade psicológica do indivíduo de separar-se de suas circunstâncias internas e externas” de modo que consiga “abstrair-se do fluir da vida diária, para examiná-lo e avaliá-lo como um espectador”. 

Pois bem, quando me dei conta de que a polêmica veio à tona alguns dias após a condenação pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) de um ex-presidente da República cujo partido político ao qual pertence não esconde a hostilidade para com alguns juízes federais, fiz para mim mesmo a seguinte pergunta: “por que, de todos os 1.873 juízes de tribunais regionais federais que recebem o auxílio-moradia, dois juízes da Lava-Jato foram o centro das atenções?” 

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Ela imediatamente me remeteu ao livro “A rebelião das elites e a traição da democracia”, do escritor americano Christopher Lasch. Publicado em 1995, um ano após sua morte, o texto busca responder se a democracia tem futuro nos EUA, com análises surpreendentemente atuais sobre o papel das elites e das universidades, a política racial, a mobilidade social, as escolas públicas e, principalmente, o debate público. 

Ao lermos o livro, temos a estranha sensação de que o Brasil é um caso piorado do que descreve Lasch, que vê a sociedade americana em franco declínio político, com a opinião pública monopolizada por “especialistas” e grupos de pressão, o entrincheiramento desses grupos em suas causas e impermeáveis à discussão racional – tornando-se enclaves fechados em si mesmos – e a opinião pessoal sendo apenas uma caixa de ressonância de uma identidade ideológica qualquer. 

Um ponto fundamental para Lasch é o seguinte: sem um debate público com vigorosa troca de ideias e opiniões, intelectualmente honesto, e com fins de esclarecer fatos a partir de visões de mundo embasadas na realidade, a democracia inevitavelmente declinará. O que sobra são batalhas em torno de questões periféricas - com os sensos de prioridade e proporção dos reais problemas completamente comprometidos - e o esquecimento de que um grande volume de informação não significa muita coisa se não estiver imerso em um debate sério. 

Uma sociedade confundir acesso à informação com democracia já é um sintoma de que essa sociedade perdeu o significado de democracia. Obviamente que a informação é fundamental e condição necessária para a democracia, porém não é tão óbvio que ela, a informação, não tem tanto valor e relevância num ambiente social no qual o debate não existe ou é dilapidado e distorcido. É nesse sentido que “é o próprio debate, e apenas ele, que desperta o desejo de informações úteis” (Lasch, p. 21). Portanto, a deterioração do debate público acarretará a deterioração da democracia. 

Opinião da Gazeta: Os magistrados e o corporativismo

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O caso do auxílio-moradia e como está sendo abordado pela opinião pública me parece um bom exemplo dessa deterioração. Em relação aos juízes, ganhar um salário alto com certos benefícios não é o grande problema, mas a forma como querem resolver a defasagem de seus vencimentos os isola da vida comum de um brasileiro, que acaba percebendo-os como privilegiados às custas do erário – e o anúncio da possibilidade de greve piora ainda mais esta percepção. 

Mas há um outro aspecto da deterioração, talvez mais importante. A política atual sabe que o gerenciamento de impressões é determinante na luta pelo poder ou para salvar a própria pele. Ao que tudo indica, a circulação de informações sobre o caso foi instrumentalizada convenientemente por certos grupos como uma tentativa de catalisar as indignações das pessoas em alvos específicos, de tal modo a tornar os juízes “politicamente suspeitos”. 

Este tipo de estratégia, quando não descoberta e denunciada, afeta a percepção do público, levando-o a interpretar os acontecimentos de acordo com os interesses desses grupos. Isso, evidentemente, não gera uma franca discussão e compromete negativamente qualquer possibilidade de debate público que mereça este nome. 

Não se trata de ser contra ou a favor de juízes ou de qualquer outra figura pública. Trata-se de buscarmos urgentemente restaurar o debate público – jogando holofotes de luz nas tentativas de instrumentalizá-lo por interesses inconfessáveis – e, desse modo, tentarmos salvar o que resta de nossa debilitada democracia.

Mauricio C. Serafim é professor do Departamento de Administração Pública da ESAG/UDESC.

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Ouça o Podcast Ideias sobre o tema: