Muitos libertários [e liberais, no Brasil] argumentam que devemos legalizar drogas recreativas em nome da liberdade e da autonomia pessoal. A proibição das drogas, eles defendem, viola a liberdade pessoal ao negar aos indivíduos a liberdade de fazer o que desejam com seus corpos.
Isso está errado. Na verdade, é a legalização das drogas que viola a liberdade. A proibição das drogas, não a legalização, é a real posição pró-liberdade.
Os fundamentos da liberdade
Todos deveriam concordar que uma das responsabilidades essenciais do governo é proteger e promover a liberdade individual. Com esse objetivo, governos têm um interesse em restringir atividades que prejudiquem, destruam ou de qualquer maneira enfraqueçam a liberdade individual.
Agora, a liberdade não pode florescer a menos que certas condições de fundo sejam cumpridas. Considere uma analogia com os mercados. Se um governo quer proteger e promover mercados, então ele deve proteger as condições que tornam uma economia de mercado possível. Estas condições incluem a proteção da vida, das trocas, de acordos e da propriedade privada. Sem estes pré-requisitos, seria impossível para os mercados prosperarem.
O mesmo é verdade para a liberdade. Se o governo tem a responsabilidade de proteger e promover a liberdade, então ele deve também proteger e promover as condições que a tornam possível. Nesse sentido, um ingrediente essencial para a liberdade individual é a racionalidade. Escolhas só podem ser livres se são feitas por uma pessoa cujas funções cognitivas estão funcionando corretamente.
A razão confere uma certa ordem e inteligibilidade a nossas ações que as tornam explicáveis e coerentes. É o que faz nossas ações serem nossas, de modo que sejamos responsáveis por elas. Nossa habilidade de agir livremente é reduzida ou destruída se não somos capazes de deliberar e pensar coerentemente, ou se estamos sujeitos a grandes forças coercitivas.
Em outras palavras, a liberdade não é apenas a simples habilidade de fazer algo; é a habilidade de agir sob a influência de funções cognitivas em bom funcionamento. Esse ponto é fundamental para dar sentido aos conceitos jurídicos de consentimento, coerção e competência. Crianças não são capazes de entrar em contratos juridicamente vinculantes porque suas capacidades cognitivas não estão completamente desenvolvidas. Da mesma forma, defesas com base na insanidade fundamentam-se na compreensão de que pessoas cognitivamente deficientes ou insanas não podem ser consideradas criminalmente responsáveis por suas ações. Não pode haver liberdade sem racionalidade.
Assim, já que o governo tem uma responsabilidade em proteger a liberdade individual, ele deve também proteger e promover uma cultura que seja favorável ao pensamento lúcido e combata o pensamento alterado. O governo, desta forma, tem uma responsabilidade em restringir atividades que reduzam, destruam ou enfraqueçam o pensamento lúcido.
O uso recreativo de drogas enfraquece a liberdade
O uso recreativo de drogas interfere na clareza de pensamento. A própria atividade é centrada no consumo de uma substância inebriante que prejudica a cognição. O principal objetivo é afetar a habilidade de pensar com clareza, o que por sua vez compromete a habilidade de pensar livremente. Portanto, drogas recreativas deveriam ser legalmente restritas porque seu uso é incompatível com a visão de estado liberal que respeite a liberdade.
Há duas formas pelas quais drogas afetam a cognição. Em primeiro lugar, há os efeitos imediatos ao consumir certas drogas. Os efeitos imediatos de alucinógenos como o LSD e o PCP incluem rápidas alterações de humor, delírios, alucinações, paranoia e um senso distorcido de si e do tempo. A heroína causa euforia seguida de náusea e do obscurecimento do funcionamento mental. Os efeitos imediatos da maconha – frequentemente anunciada como uma droga “segura” – incluem ansiedade, disforia e paranoia, juízo alterado, comprometimento cognitivo e psicomotor.
Em segundo, estão os efeitos a longo prazo do uso de drogas. Muitas drogas possuem efeitos viciantes que afetam a liberdade de usuários de drogas ao exercer uma poderosa influência sobre suas ações futuras. Viciados em drogas que se tornam física e psicologicamente dependentes possuem seu senso de autocontrole enfraquecido ou até mesmo destruído. Tais efeitos viciantes podem interferir em outras áreas da vida de um viciado, afetando sua habilidade de trabalhar, aprender, cuidar de si mesmo, interagir com outros e criar relações. Eles podem impeli-lo a agir destrutivamente de forma a alimentar o vício, afetando, assim, a liberdade de outros além dele mesmo.
Adversários da legalização das drogas tipicamente focam nos efeitos a longo prazo do uso de drogas e suas repercussões em terceiros, especificamente crianças e adolescentes. Essas são certamente preocupações muito sérias, mas os efeitos imediatos do uso de drogas são por si mesmos suficientes para mostrar que o uso recreativo de drogas é intrinsicamente contrário ao bem da liberdade e da autonomia. Os adversários da legalização não precisam recorrer aos efeitos em terceiros para formular seu argumento.
Vamos resumir o argumento até agora. Uma das principais responsabilidades do governo é proteger e promover a liberdade. Para fazer isto, ele deve também proteger e promover as condições subjacentes que tornam a liberdade possível, uma destas sendo a clareza de pensamento. O governo, assim, tem um interesse em cultivar uma cultura que encoraje a clareza de pensamento e o combate à alteração deste. Considerando que o uso recreativo de drogas prejudica a habilidade do usuário de raciocinar, os governos deveriam, portanto, estabelecer restrições legais sobre drogas recreativas.
Em outras palavras, se você valoriza a liberdade, então você deveria se opor à legalização de drogas recreativas.
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Proibição das drogas: mitos e realidades
Até agora eu defendi a restrição de drogas. Mas o termo “restrição” é vago. Que tipos de restrições o governo deveria adotar?
O governo deveria proibir substâncias que não possuem nenhum uso legítimo além da recreação. Além de torná-las mais difíceis de ser obtidas, a proibição serve para impulsionar o custo das drogas, o que em troca reduz a demanda ao torná-las mais caras. É simplesmente uma questão de oferta e procura: quanto mais caro algo for, menos as pessoas estarão dispostas a comprá-lo. A ameaça adicional da punição legal também serve para diminuir a demanda. Por outro lado, se algo for barato, legal e amplamente disponível, as pessoas estariam mais inclinadas a comprá-lo.
A legalização tornaria as drogas mais baratas e mais disponíveis, o que, por sua vez, aumenta o uso. Um estudo de 2015 no Journal of Health Economics descobriu que a legislação sobre a maconha medicinal aumentou o uso desta em adultos e adolescentes. Em adultos de 21 anos ou mais, a frequência do consumo excessivo [binge] de álcool também aumentou. Da mesma forma, um estudo de 2017 publicado na JAMA Psychiatry descobriu que “leis sobre o uso de maconha medicinal parecem ter contribuído para o aumento na prevalência do uso ilícito de cannabis e de transtornos decorrentes do consumo de cannabis”. O aumento de disponibilização também é associado ao aumento no uso de outras drogas, incluindo o álcool.
A proibição torna as drogas mais caras e menos acessíveis, o que, por sua vez, reduz o consumo. A proibição do álcool, que muitos pensam ter acabado como um fracasso, na verdade reduziu o consumo de álcool per capita em cerca de 30 a 50 por cento. Números de mortes por cirrose, internações em hospitais psiquiátricos estatais por psicose alcoólica e prisões por embriaguez ou conduta desordeira também diminuíram dramaticamente.
Embora seja verdade que a lei seca fracassou em seu fim, ela falhou por razões políticas. Em termos de redução no consumo de álcool, a proibição foi um sucesso. E, considerando que o consumo excessivo de álcool prejudica a clareza de pensamento (além do custo de 250 bilhões de dólares anuais que impõe à nação), é válido questionar se não deveríamos trazer de volta alguma forma de regulação severa sobre o álcool por razões já mencionadas.
É claro, nem todas as drogas são utilizadas de forma recreativa. O álcool pode ser consumido como um leve lubrificante social sem a intenção de ficar bêbado. Mas isso não é verdade sobre a maconha, já que o objetivo do uso da maconha não-medicinal é “ficar chapado” (e, como veremos, a maior parte dos casos do chamado uso “médico” é indistinguível do uso recreativo). Ninguém fuma um baseado querendo evitar a “viagem”. Assim também é com a heroína, a cocaína e outras drogas. Essas drogas deveriam ser o centro da proibição, já que o seu uso paradigmático é abuso, diferentemente do álcool.
É verdade que haverá alguns que farão o esforço de obter drogas ilegalmente, mesmo que a proibição esteja em vigor. Uma perfeita conformidade, no entanto, não é a referência do sucesso quando se trata de legislação. Leis contra assassinato, agressão e roubo não impedem que esses crimes aconteçam, mas ninguém está propondo que legalizemos essas coisas.
Onde os libertários erram
Onde muitos libertários erram em seu apoio à legalização das drogas é em sua concepção de liberdade. Se pensarmos na liberdade apenas como a simples habilidade de fazer escolhas, então é compreensível por que alguém pensaria que restrições a drogas violam a liberdade individual, já que tais restrições limitam nossa habilidade de fazer uma gama de escolhas.
Mas nem todas as escolhas merecem ser respeitadas. Conforme observei antes, nós não podemos respeitar a liberdade sem também respeitarmos as condições que tornam a liberdade possível. Uma dessas condições é a preservação e a manutenção do bom funcionamento das capacidades cognitivas. As livres escolhas que devemos respeitar, assim, não podem buscar abalar essa condição. Já que o uso recreativo de drogas busca afetar a clareza de pensamento, a escolha de participar dessa atividade não deve ser respeitada.
Isso não é, como alguns teóricos da política liberal podem contestar, adotar uma concepção “moralizante” de liberdade. Em vez disso, está-se recorrendo às condições estruturais necessárias para dar sentido ao respeito à liberdade de acordo com qualquer concepção de boa vida.
De fato, seria estranho argumentar que o objetivo do Estado em promover a liberdade é cumprido ao permitir que seus cidadãos prejudiquem a sua própria liberdade. A decisão inicial de se envolver no uso recreativo de drogas pode ser livre, mas o resultado final é a diminuição da liberdade. Não se pode exercer a liberdade suprimindo-a, assim como não se pode ficar saudável ficando doente. A ideia de que o uso recreativo de drogas pode ser justificado por meio do recurso à autonomia ou à liberdade é, assim, autodestrutiva, da mesma forma que beber água do mar como o remédio para a sede é contraproducente em si mesmo.
Alguns argumentam que existe um direito moral de consumir drogas derivado de nosso direito de posse sobre nossos próprios corpos. De acordo com o filósofo libertário Michael Huemer, “é difícil ver como alguém que acredita em direitos poderia negar que [...] o uso de drogas, tido apenas como algo que altera o corpo e a mente do usuário, seja um exemplo do exercício do direito da pessoa sobre o seu próprio corpo e mente”.
Há diversos problemas com o argumento de Huemer. Primeiro, não se segue de ter direito sobre o próprio corpo que estes direitos sejam absolutos e ilimitados. Muitas tradições filosóficas estabeleceram que nós temos deveres de auto respeito para conosco mesmos, como deveres de preservar nossa própria saúde, nossa integridade pessoal e de desenvolver nossos talentos.
Se esses deveres existem, então eles poderiam contar contra o direito moral de rebaixar o funcionamento cognitivo de alguém. Os apelos à autonomia corporal dependem da teoria moral subjacente que adotamos, e a concepção de auto propriedade de Huemer não é diferente. Huemer pressupõe uma controversa antropologia filosófica que precisa ser justificada – e não nos dá qualquer razão por que devamos aceitá-la.
Também não adiantará argumentar, como alguns libertários fazem, que o defensor da proibição das drogas deve também estar comprometido em banir comidas gordurosas, refrigerantes e similares. O argumento que eu dei aqui pertence apenas às atividades que são intrinsecamente destrutivas à clareza de pensamento, o que comidas não saudáveis (que tipicamente só são assim se consumidas em excesso) não afetam. Assim, essa objeção simplesmente não se aplica.
E a maconha medicinal?
Meu foco tem sido o uso recreativo de drogas, mas é válido discutir brevemente a chamada utilização “médica” de drogas (especificamente, a maconha), já que essas são questões políticas que muitos defensores da legalização das drogas exploram para transformar em uma completa legalização recreativa.
Há pesquisas que mostram que a cannabis ou os canabinóides podem ajudar com a administração da dor, náusea, vômito e com a espasticidade decorrente da esclerose múltipla. No entanto, estas mesmas pesquisas também encontraram fortes evidências que a cannabis ou os canabinóides podem afetar negativamente a saúde respiratória, levar ao desenvolvimento de esquizofrenia ou outras psicoses e aumentar o risco de envolvimento em acidente automotivo. Então, os supostos benefícios da maconha devem ser contrabalançados com os efeitos negativos à saúde decorrentes do uso dela.
Além disso, não há realmente uma necessidade fundamental de maconha medicinal, considerando que há diversos outros medicamentos capazes de auxiliar nas mesmas enfermidades em que a maconha poderia ajudar. Assim, embora eu esteja aberto, a princípio, a permitir certos tipos de maconha medicinal (desde que esta passe pelo mesmo rigoroso processo pela qual outros medicamentos são aprovados), isso parece desnecessário. E, considerando os riscos da maconha para a saúde, seria insensato e imprudente legalizar a maconha sob pretexto médico.
De fato, a maconha medicinal é a preparação para o abuso. Em estados com programas de maconha medicinal, a grande maioria dos usuários são homens adultos jovens que alegam “dor” como a razão pela qual precisam de maconha. Apenas uma pequena porcentagem utiliza a maconha por outras razões. Dor, é claro, é uma razão muito vaga que é muito simples de ser forjada, então isso abre um caminho para que os usuários recreativos possam obter maconha sob o falso pretexto da medicina. Parece, então, que os programas de maconha medicinal fornecem um disfarce para o uso recreativo que equivale à legalização total. Assim, de fato há um argumento a ser feito sobre estender a proibição das drogas à chamada maconha medicinal.
No fim das contas
Para ser claro, o argumento que ofereci não é que o uso recreativo de drogas deve ser restringido porque não é saudável ou porque é imoral. Em vez disso, o argumento é de que o uso recreativo de drogas compromete e prejudica as condições de liberdade e, assim, a legalização de drogas recreativas é incompatível com a visão de um Estado que respeita a liberdade.
Como John Stuart Mill disse, “o princípio da liberdade não pode requerer que alguém seja livre para não ser livre. Não é liberdade ser permitido alienar a sua liberdade”. Uma sociedade que valoriza a liberdade deve cultivar uma cultura que encoraja a clareza de pensamento e combate à sua debilitação. Por isso, drogas recreativas devem ser legalmente proibidas. Libertários, consequentemente, devem se opor à legalização das drogas.
Timothy Hsiao é professor de humanidades na Universidade Grantham. Seu site é timhsiao.orh. Este texto é adaptado de seu artigo “Why Recreational Drug Use is Immoral”, que sairá na National Catholic Bioethics Quaterly.
©2018 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.
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