Nas últimas semanas, a Suprema Corte do Canadá ouviu argumentos sobre a possibilidade de uma mineradora do país ser processada em território nacional por cumplicidade na suposta violação de direitos humanos no exterior, em um caso potencialmente inovador e que é observado de perto por empresas canadenses com operações em território estrangeiro.
No centro da discussão estão três refugiados eritreus que alegam que a companhia de mineração Nevsun Resources, sediada em Vancouver, violou as leis internacionais contra a tortura, trabalho forçado e escravidão em sua mina em Bisha, no país da África oriental.
Os trabalhadores, que falaram na Corte no último dia 23, alegaram que foram recrutados pelo programa de serviço nacional da Eritreia – espécie de serviço militar obrigatório – para trabalhar em instituições estatais que tinham contrato com a Nevsun para a exploração de ouro, cobre e zinco. Trata-se da maior fonte de receita do país.
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Eles afirmam que foram forçados a trabalhar por longos períodos, sob calor escaldante. Além disso, o trabalho lhes causava contusões e cicatrizes. Se fizessem intervalos, eram submetidos a agressões físicas, ameaças e tortura. A Nevsun, que possui 60% de participação na mina, nega as acusações.
Nesse primeiro momento, a Suprema Corte do Canadá não deve analisar o mérito da questão. O tribunal vai decidir apenas se o caso deve avançar para julgamento, bem como se as violações do direito internacional consuetudinário – conjunto de leis tradicionalmente aplicado a Estados soberanos – podem ser acionadas contra empresas canadenses.
Os juízes canadenses não estão dispostos a considerar tais casos, sujeitando-os às jurisdições onde supostamente ocorreram as violações de direito internacional.
Mas a Suprema Corte da Colúmbia Britânica não acatou os pedidos da Nevsun para rejeitar a ação, argumentando de que há um “risco real” de os refugiados não obterem um julgamento justo na Eritreia. A decisão do tribunal regional foi confirmada em recurso, levando o pedido de Nevsun ao Supremo Tribunal do país.
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Especialistas afirmam que autorizar o caso a ser julgado no Canadá pode alterar fundamentalmente o modo como as empresas do país avaliam os riscos de operar no exterior.
“Eu esperaria que qualquer empresa canadense que opera no exterior, especialmente em países governados por regimes autoritários ou em Estados com a democracia frágil, teria motivos para se preocupar”, afirmou Audrey Macklin, do Programa Internacional de Direitos Humanos da Universidade de Toronto, que atua como uma espécie de amicus curiae no caso.
A Associação de Mineração do Canadá afirmou que uma decisão favorável aos refugiados colocaria as empresas canadenses em “desvantagem competitiva”, além de promover insegurança a ponto de levar a uma “redução de investimento no próprio Canadá”. O país, segundo dados do governo canadense, é sede de quase metade das empresas de mineração de capital aberto do mundo.
Os advogados da Nevsun argumentaram que o caso deveria ser rejeitado, citando um princípio legal conhecido como “ato de doutrina estatal”, que afirma que os tribunais de um país não deveriam julgar a legalidade das ações de outro governo dentro de suas próprias fronteiras.
Mas o advogado que representa os refugiados eritreus, Joe Fiorante, afirma que o que a empresa quer é “impunidade por sua conduta”. Segundo Fiorante, o ato de doutrina estatal nunca foi aplicado numa Corte canadense.
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Desde que os três refugiados procuraram a Justiça pela primeira vez, em 2014, mais de 80 demandantes fizeram alegações semelhantes de trabalho forçado e tortura.
O uso de mão de obra recrutada pelo governo eritreu na mina de Bisha também foi relatado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em relatório de 2015. Uma testemunha relatou que trabalhadores foram obrigados a trabalhar dia e noite, e que aqueles que fizessem intervalos seriam “amarrados a árvores e pendurados” como punição. A Nevsun se referiu ao relatório como “sensacionalista e inacreditável”.
Em janeiro de 2018, o governo canadense anunciou que iria criar uma nova posição de ombudsman, encarregado de investigar denúncias de abusos de direitos humanos ligados à atividade de empresas canadenses no exterior. O cargo ainda está vago.
A ação judicial contra a Nevsun é a mais recente de uma série de ações ajuizadas nos tribunais canadenses contra empresas de mineração do país, com o intuito de responsabilizá-las por supostas violações de direitos humanos em minas do exterior. Processos contra a Hudbay Minerals e a Tahoe Resources, em relação a minas localizadas na Guatemala, também correm na Justiça canadense.