Imagem do programa veiculado pela TV Pampa em novembro de 2016| Foto: Reprodução/Pampa Debates

“Faculdade de Geologia em Caçapava? Professor é um cabeludo de brinco que não toma banho”. “Os professores lá são débeis mentais”. Com essas e outras palavras, um entrevistado do programa ao vivo “Pampa debates”, da TV Pampa, criticou os professores da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), em Caçapava do Sul (RS), em um debate sobre as dificuldades da educação pública realizado em novembro de 2016. 

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Inconformados com as declarações, 40 docentes da instituição se dividiriam em seis ações no Juizado Especial Cível (JEC) do município pedindo indenização por danos morais à emissora, ao entrevistado e a outro participante do debate, que, sem fazer ofensas, concordou com o argumento de que a qualidade da universidade pública no interior é ruim. A juíza leiga responsável pelo caso absolveu o segundo participante do debate, mas condenou o autor das declarações e a emissora de TV a pagar indenização por danos morais de R$ 12 mil para cada docente.

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Para a emissora, que já interpôs embargos de declaração e irá recorrer da decisão caso a sentença não seja reformada, é injusto condená-la pela fala de um entrevistado que se manifestou em programa ao vivo. Além disso, ela questiona o fato de os professores terem optado por ajuizar seis ações no JEC em vez de apresentar uma ação apenas, no que vê uma tentativa ainda maior de pressionar e coibir a liberdade de imprensa.

Liberdade de Imprensa

Para Ericson Scorsim, advogado e especialista em Direito da Comunicação, a responsabilidade civil de reparar o dano à honra e à imagem deve recair sobre o autor da ofensa, e não sobre emissora, já que a empresa não detém o controle sobre o conteúdo do discurso e da narrativa das pessoas que participaram do programa. Para ele, a decisão cria risco de potencial violação à liberdade de imprensa, prevista no artigo 220 da Constituição.

“A decisão judicial que condenou a emissora de TV aberta à indenização por danos pelo fato de veicular programa ao vivo, com a participação de terceiros, alheios ao seu quadro de funcionários, que pratiquem atos ofensivos aos direitos de personalidade, está na prática criando a potencial intimidação do veículo de comunicação social”, afirma.

“Se prevalecer este equívoco na interpretação da legislação, há o desincentivo à veiculação de programas de televisão ao vivo, algo nocivo ao ambiente democrático e à participação dos cidadãos no setor audiovisual”, continua.

A doutora em direito pela USP e especialista em liberdade de expressão, Clarissa Gross, vê com preocupação a sentença, principalmente pelo fato de a juíza utilizar o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil para pressupor a responsabilidade civil objetiva da imprensa sobre expressões usadas por entrevistado em programa ao vivo.

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Ela lembra que, se esse tipo de interpretação se generaliza, causaria no país o que em inglês é conhecido como “chilling effect” (efeito de esfriamento, em tradução livre do inglês): aumentar tanto o risco para a atividade da imprensa, responsabilizando-a por ações das quais ela não tem controle, a ponto de inibir e comprometer a divulgação de conteúdo útil e relevante.

“Se sentenças como essa se universalizam, ocorre a diminuição da quantidade de informação útil, relevante e importante para a esfera pública, porque aumentam os riscos jurídicos para os atores que normalmente se encarregam de promover o debate público”, explicita. “A liberdade de imprensa não é absoluta, mas, quando a imprensa não tem o controle do conteúdo e ela é condenada por ações de terceiros, isso significar alocar riscos e incentivos no lugar errado, o que é maléfico”, afirma.

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A sensibilidade da juíza de absolver o participante que criticou a universidade pública sem usar ofensas é um ponto a favor da decisão, analisou Leonardo Gomes Penteado Rosa, doutorando pela USP, pesquisador em liberdade de expressão e professor na Universidade Federal de Lavras. “Mesmo discordando da juíza, colocando-se no lugar dela, ela soube ver que uma crítica não é uma ofensa à liberdade de personalidade”, diz. Mesmo assim, ele lamenta a condenação, tanto da emissora quanto do entrevistado ofensor.

“A decisão da juíza, em relação ao entrevistado, está alinhada ao que hoje é praticado no Brasil. Mas, como pesquisador, é possível perceber uma produção jurídica que não é capaz de explicar porque esses direitos de personalidade devem sobrepor aos de liberdade de expressão em casos como esse”, analisa. “É um debate que precisa amadurecer para que as situações não terminem com efeitos indesejados, como o chilling effect”.

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Para Leonardo, não houve ofensa aos direitos de personalidade porque, ainda que a forma utilizada pelo entrevistado seja questionável, ele faz uma crítica genérica, sem individualizar uma pessoa. Por isso, o fato de a emissora ter mantido por um tempo o programa no You Tube, e retirado depois, também não seria motivo suficiente para a condenação da empresa.

Manifestação de apoio

A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) fez uma nota de apoio à TV Pampa. “A ação coordenada contra determinado programa jornalístico ganha contornos de assédio judicial e demonstra falta de conhecimento do real papel da imprensa, além de afrontar a liberdade de expressão”. A entidade lembrou que não existe sociedade livre sem o direito à informação. Leia aqui a nota na íntegra.