A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o Estado deve indenizar um homem por danos morais por ter ficado preso em condições sub-humanas abre precedente para que outros detentos requeiram o mesmo tipo de ressarcimento. Além disso, juristas consideram que, seguindo a lógica dos deveres do Estado em relação à dignidade da pessoa humana, outros cidadãos, inclusive vítimas, poderiam ajuizar ação solicitando uma compensação financeira.
A ação que foi julgada no STF era de um homem que passou oito anos preso por latrocínio - roubo seguido de morte - e hoje está em liberdade. Ele pediu um salário mínimo por mês em que ficou em situação degradantes, mas o Supremo fixou apenas R$ 2 mil de indenização. O caso tem repercussão geral, ou seja, a mesma interpretação deve se aplicar a ações semelhantes que tramitam na Justiça.
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A respeito da decisão do STF, O jurista Luiz Flávio Gomes considera que ela está em consonância com o posicionamento que a Organização das Nações Unidas (ONU) tem apresentado. “A ONU tem se preocupado com o assunto e tem dito que o Estado é o responsável pelo preso. Os presídios no Brasil são como os da idade média, o tratamento é inteiramente desumano. Em virtude disso, justifica-se a indenização”, avalia Gomes.
A Constituição Federal apresenta, logo no primeiro artigo, a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos do Estado Democrático de Direito. E no artigo terceiro estão entre os objetivos “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais” e “promover o bem de todos”.
Diante de todos esses preceitos, surge a o questionamento se outros cidadãos não poderiam cobrar do Estado a dignidade que lhes falta. Poderiam e podem. O jurista Luiz Flávio Gomes ressalta: “Também há desempregados, favelados, pessoas da periferia em situação até pior que os presos. Isso leva a uma polêmica, pois o Estado é responsável por todas as pessoas do país”, observa o jurista.
Reparação para vítimas
As vítimas da violência e seus familiares também podem buscar reparos além da penalização dos agressores. Inclusive, Gomes lembra que o artigo 245 da Constituição, que até hoje não foi regulamentado, prevê a criação de um fundo para os parentes de vítimas de crimes.
O constitucionalista Dircêo Torrecillas Ramos também ressalta a situação daqueles sofrem violência: “E a família da vítima que teve o familiar assassinado e foi e não vai poder criar os filhos? Como eles ficam?”, questiona o advogado.
Mas, mesmo havendo direito à reparação de todos os lados, o fato é que não há capacidade financeira de o Estado arcar com a série de indenizações que poderão ser solicitadas. Ainda não há cálculos exatos, mas uma estimativa feita pelo jornal O Globo aponta que, somente no sistema carcerário brasileiro, se todos os 622 mil presos pedirem danos morais, o rombo no orçamento público seria bilionário.
Ramos reconhece a situação problemática dos presídios que, muitas vezes, “são amontoados de pessoas”. Mas, na opinião dele, o Estado não pode arcar com o ônus financeiro. “Não podemos resolver um problema e criar outro”.
“O Judiciário, quando toma esse tipo de decisão tem que pensar no Brasil como um todo. O país está quebrado. Os grandes privilegiados continuam com seus penduricalhos, e o trabalhador mais humilde é que está pagando a conta”, aponta Ramos.
Na decisão do STF, três ministros se posicionaram contrários ao ressarcimento financeiro devido à impossibilidade de o Estado arcar com esse ônus. O ministro Luiz Roberto Barroso, acompanhado por Celso de Mello e Luiz Fux, propôs que a compensação fosse com desconto nos dias de pena.
Alternativa para não indenizar
Thiago Bottino, professor de direito penal da Fundação Getúlio Vargas – FGV Direito Rio, explica que a decisão do STF é juridicamente perfeita: “Se tem um dano causado pela sociedade, a Constituição exige que seja reparado. E a legislação permite que as pessoas que comentem crimes sejam privadas da liberdade, mas não de sua dignidade”, diz ele. Mas o professor reconhece que, do ponto de vista prático o impacto financeiro para o Estado pode ser muito maior do que os R$ 2 mil que o STF determinou de indenização no processo em questão. Não existem limites de valores fixados e a Justiça pode determinar que uma pessoa que adquirir uma doença grave na prisão, por exemplo, receba uma indenização muito mais alta.
Na opinião de Bottino, para que existam condições de dignidade nos presídios, o que precisa ser revisto é encarceramento excessivo. “No Brasil, prende-se muito e prende-se mal”. Ele explica que indenizar não deve ser a alternativa, não só pelo custo, mas também porque nem sempre o dinheiro compensa as condições sub-humanas que a pessoa vivenciou.
Abater os dias da pena também não deveria ser opção na visão do jurista. “A pena é pelo que ele [detento] praticou”. Além disso construir novas prisões para resolver o problema demoraria muito e seria muito oneroso. E mais: quando as prisões estiverem prontas, a demanda já vai ser muito maior.
O professor da FGV-Rio relembra o maior percentual é de presos que estão detidos por tráfico de drogas – cerca de 30% - e questiona os critérios para se efetuar essas prisões: “Será que temos 400 mil Fernandinhos Beira-Mar presos? Muito são pequenos traficantes, que não estavam com arma, nem em ação violenta”. Bottino observa ainda que ainda que não há uma distinção clara na legislação entre quem é usuário e quem é realmente traficante.
Uma ação sobre a descriminalização do porte de drogas tramita no STF. O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635659 foi interrompido após pedido de vista do ministro Teori Zavascki. Agora, só deverá voltar a pauta após a posse do novo ministro.
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