Google e Facebook estão entre as empresas que se opõem a um projeto de lei do Senado nos Estados Unidos destinada a combater o tráfico sexual online de crianças. A posição faz com que os gigantes do Vale do Silício tornem-se aliados desconfortáveis de sites acusados de fornecer uma plataforma publicitária para a prostituição infantil.
A norma alteraria a seção 230 da lei que monitora o conteúdo nas comunicações nos EUA, a CDA (sigla em inglês de Communications Decency Act, de 1996). Atualmente, a seção 230 protege as empresas e provedores de internet da responsabilidade criminal de conteúdos fornecidos por outras pessoas ou entidades.
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As empresas dizem que os provedores online terão responsabilidade desproporcional por discursos e vídeos postados por usuários se os legisladores dos Estados Unidos aprovarem o projeto. Os favoráveis à lei discordam dizendo que a medida criaria uma pequena exceção, para dissuadir os infratores da lei, e não prejudicaria as companhias.
O objetivo principal da lei é acabar com sites como o Backpage.com, suspeito de tráfico infantil. “Há claramente um problema” quando vítimas do tráfico sexual anunciado na Backpage sempre perdem ações nos tribunais baseados na seção 230 da CDA, disse Yiota Souras, conselheira geral do Centro Nacional de Crianças Desaparecidas e Exploradas, um grupo sem fins lucrativos. “Muitas vezes, as vítimas estão sendo expulsas do tribunal, embora haja um tráfico”.
As empresas de tecnologia dizem que compartilham com a preocupação da lei, mas temem consequências indesejadas da sua aplicação. Eles querem preservar a imunidade federal que ganharam do Congresso em 1996, depois que a corretora dramatizada no filme “O Lobo de Wall Street” processou um serviço online sobre comentários críticos postados em fóruns.
Agora, pelo menos 28 senadores dos EUA assinaram a favor de diminuir parte dessa proteção concedida durante o início da internet comercial. Uma audiência sobre a lei está prevista para 19 de setembro; nos últimos dias, a Oracle Corp e a 21st Century Fox endossaram a medida.
A Internet Association, um grupo empresarial com sede em Washington, com membros como Google, Facebook, Twitter e Snap da Alphabet Inc., disse em um email que o tráfico de sexo é abominável e ilegal. Mas defendeu que o projeto de lei é “excessivamente amplo” e “criaria uma nova onda de ações frívolas e imprevisíveis contra empresas legítimas, em vez de abordar o comportamento criminoso subjacente”.
Google, após ser perguntada sobre a lei, respondeu por meio do blog da vice-presidente de política pública da empresa, Susan Molinari. “Ao mesmo tempo em que concordamos com as intenções do projeto de lei, estamos preocupados”. Para ela, a medida teria o efeito contrário pretendido, prejudicando a luta contra o tráfico sexual. Além disso, os sites pequenos, com medo de serem representados criminalmente, seriam prejudicados, acrescentou.
“Nós – e muitos outros – estamos prontos para trabalhar com o Congresso sobre as mudanças no projeto de lei e sobre outras leis e medidas para combater o tráfico de seres humanos e proteger e apoiar vítimas e sobreviventes”, escreveu ela.
Nu Wexler, porta-voz do Facebook, não quis comentar.
“Jovem e doce líder de torcida”
Em questão, estão casos como os nove anos de existência do site Backpage.com, chamado de “líder no mercado de comércio internacional para sexo comercial”, investigado em uma comissão do Senado. O site, com um aspecto semelhante ao popular Craigslist, contém listagens que oferecem serviços localizados por cidade, de acordo com o relatório do Senado.
Uma categoria para adultos foi retirada do site à medida que a investigação legislativa se intensificou, disse a senadora Claire McCaskill, uma democrata do Missouri, em uma audiência de janeiro. Ela perguntou se a cessação marcou o fim “do papel da Backpage no tráfico sexual online de crianças, ou foi apenas um golpe de publicidade barata”.
A página aceitava anúncios que continham palavras como “lolita”, “adolescente”, “inocente” e “garota da escola”, e antes de publicá-los retirava os termos para ocultar que indicavam o tráfico sexual infantil, de acordo com o relatório do Senado. Ainda assim, os anúncios encontravam maneiras de indicar que uma criança está sendo vendida, por exemplo, listando uma “jovem e doce líder de torcida” e uma “saída” com “milhagem muito baixa”, de acordo com uma declaração de 2016 na Suprema Corte dos EUA pedindo aos juízes que ouvissem o caso de uma vítima contra a Backpage. O tribunal negou a audiência.
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O site, baseado em Dallas, conseguiu mais de uma vez sair ileso de ações impetradas contra ele por promotores e vítimas de tráfico argumentando com sucesso que a imunidade conferida pelo Congresso protege suas atividades. O advogado da Backpage, Liz McDougall, não quis dar entrevista para comentar os casos.
Em um ação recente, um juiz da Califórnia respondeu às acusações dizendo que, infelizmente, a lei federal ajuda “também aos que alegam apoiar a exploração de outros pelo tráfico de seres humanos”.
O juiz da Califórnia citou outro caso recente, no qual a mesma parte da lei federal foi usada para proteger o Facebook de ações judiciais movidas por vítimas do terrorismo que alegaram que a rede tinha ajudado grupos no Oriente Médio, como o Hamas, dando-lhes uma plataforma para suas ações incendiárias.
Lobo de Wall Strett
A lei de 1996 nasceu depois que um provedor de sites Prodigy Services Inc. perdeu US$ 200 milhões em um processo movido por Stratton Oakmont Inc. contra mensagens online, incluindo uma que chamou a corretora de um “culto de corretores que precisam mentir para viver ou são despedidos”. A Stratton e as façanhas de seu fundador, Jordan Belfort, que incluíam o uso de cocaína e fraudes para clientes, relatadas no filme de 2013 “The Wolf of Wall Street”, foram depois criminalizadas.
A seção 230 anulou os efeitos do caso Stratton-Oakmont v. Prodigy e quaisquer outras decisões similares que tenham tratado tais provedores e usuários como “editores ou responsáveis de conteúdos que não são seus”.
Desde então, os juízes interpretaram a lei amplamente, e as empresas de tecnologia passaram a depender disso.
O objetivo com o projeto de lei, de senadores como Rob Portman, um republicano de Ohio e democratas McCaskill e Richard Blumenthal, é restringir o texto. O projeto de lei lançado no dia 1º de agosto eliminaria a proteção para sites que ajudem, apoiem ou facilitem violações das leis de tráfico sexual. E permitirá ainda, caso aprovada, que funcionários do Estado tomem ações contra empresas que violam essas leis.
A lei atual “nunca teve como objetivo ajudar a proteger os traficantes de sexo que se abatem sobre os mais inocentes e vulneráveis entre nós”, disse Portman em um comunicado de imprensa.
Reação
Os gigantes do Vale do Silício vêm lutando contra a medida desde o início. Em uma carta de 14 de novembro ao presidente Donald Trump, o grupo listou, entre as suas prioridades políticas, a manutenção da seção 230, chamando-a de “indispensável para o contínuo investimento e crescimento nas plataformas de conteúdo geradas pelos usuários”.
Em reuniões durante o verão com funcionários do Congresso, representantes do Google e do Facebook argumentaram contra o projeto de lei e prometeram oposição a ele, de acordo com duas pessoas familiarizadas com os encontros que pediram para não serem identificados porque as reuniões não eram públicas. As empresas declinaram um convite para testemunhar, disse uma das pessoas.
Contra lei estão grupos de tecnologia como Center for Democracy & Technology, a Electronic Frontier Foundation e o grupo de direitos humanos American Civil Liberties Union. Em uma carta ao Senado, de 4 de agosto, eles insistiram que a seção 230 era tão importante quanto a Primeira Emenda no suporte à liberdade de expressão online.
Matt Schruers, vice-presidente de direito e política da Computer & Communications Industry Association, um grupo comercial que tem o Google e o Facebook como membros, disse que era melhor lembrar do provérbio que defende “não disparar no mensageiro” antes de mexer na seção 230.
“Você verá pessoas saindo do mercado”, disse Schruers em uma entrevista. “Você verá apenas as maiores empresas dispostas a assumir o risco”.
O grupo de Schruers estava entre as 10 associações de comércio de tecnologia que alertaram em uma carta de 2 de agosto aos senadores de que o projeto prejudicaria gravemente a seção 230, criando “um impacto devastador em serviços online legítimos” ao “permitir que advogados oportunistas tragam um dilúvio de litígios frívolos”.
Outros zombam. “Não é uma grande mudança na lei”, disse Mary Leary, professora de direito da Universidade Católica em Washington, DC. “É apenas um esclarecimento”.