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Na reportagem anterior desta série de análises sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) discute a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, o J ustiça & Direito mostrou que não existe, na tradição jurídica brasileira, fundamentos para a distinção entre “pessoas constitucionais” e “criaturas humanas intrauterinas”. Mas essa ideia marca o debate moral e jurídico sobre o aborto ao redor do mundo e serviu de base para decisões de outros países, citadas inclusive pelos propositores da ADPF 442. Faz sentido distinguir seres humanos que são pessoas e seres humanos que não são pessoas?

Nelson Hungria, um dos maiores criminalistas brasileiros e ministro do STF entre 1951 e 1961, não tinha dúvidas sobre a personalidade do ser humano em gestação. No quinto volume de seus Comentários ao Código Penal, Hungria afirma, comentando a correção de o aborto ser considerado um crime contra a pessoa, que o feto “é um subjectum iuris [sujeito de direito], podendo dizer-se que tem caráter de pessoa” e que “o interesse jurídico relativo à vida e à pessoa é lesado desde que se impede a aquisição da vida e da personalidade civil a um feto capaz de adquiri-las (...) Quem pratica um aborto não opera in materiam brutam [sobre matéria bruta], mas contra um homem na antessala da vida civil”. 

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte decidiu, no caso Roe vs Wade, de 1973, que as mulheres têm direito a abortar, com base em seu direito à privacidade, até o momento da viabilidade extrauterina do feto, que ocorre por volta dos seis meses. Esse momento varia de acordo com as condições tecnológicas disponíveis. Por isso, a corte adotou o critério práticos dos trimestres para impedir, até os três meses de gestação, quase toda intervenção estatal para proteger a vida do feto. 

As advogadas que assinam a ADPF 442, por sua vez, escrevem no documento inicial que “o marco dos trimestres acompanhava o desenvolvimento da gestação no fundamento de quanto mais imaturo o feto maior o respeito ao direito de privacidade das mulheres” [destaque nosso]. 

Em 1992, no caso Planned Parenthood. vs. Casey, em meio a um intenso debate na sociedade americana, que continua até hoje, o tribunal corrigiu seus rumos e reconheceu que o Estado tem o direito de proteger fetos viáveis em quaisquer circunstâncias, exceto no caso de risco de vida para a mãe. A decisão também diminuiu o rigor para avaliar leis restritivas ao aborto: as leis estaduais podem proibir a prática, mesmo de fetos ainda inviáveis fora do útero, exceto se isso impuser um “fardo indevido” para a mulher. 

Um ano depois, foi a vez de a  Corte Constitucional da Alemanha considerar constitucional uma lei que permitia o aborto até a 12ª semana de gravidez, desde que a mãe passasse por aconselhamento profissional antes de realizar o procedimento. O tribunal considerou que “a Lei Fundamental requer que o Estado proteja a vida humana, incluindo a dos não nascidos” e que “a mãe tem o dever de levar a cabo a gestação”. Entretanto, a corte também decidiu que a Constituição não impõe esse dever às mulheres em todos os casos e que a lei pode criar exceções à regra geral para evitar que sejam submetidas a “fardos que demandem tamanho sacrifício de seus próprios valores existenciais a ponto de que não se possa esperar delas que continuem a gestação”.  A decisão reverteu o caso Aborto I, em que a corte tinha considerado inconstitucional uma lei que permitia o aborto.

As autoras da ADPF 442 citam esses julgamentos, entre outros, para mostrar como diversos países adotaram a ponderação de valores para resolver as demandas envolvendo a questão do aborto, mas ignoram que essas decisões continuam polêmicas e sob intenso escrutínio da opinião pública e das discussões em filosofia moral. A adequação desses critérios, mesmo nesses países, está longe de ter sido considerada correta e, por si só, não tem muito a acrescentar ao debate brasileiro. Na verdade, o que muitos tribunais constitucionais têm feito é assumir uma das posições em jogo no acalorado debate moral sobre o aborto e apresentá-lo como uma solução viável. Neste texto, o Justiça & Direito pretende mostrar porque essa posição não é neutra. 

O que está em jogo 

Quase todos os argumentos que tentam estabelecer um critério outro que não o momento da concepção de uma nova vida como o marco para a proteção moral ou jurídica dessa vida enfrentam o mesmo problema: a consequência lógica de que outros grupos de seres humanos, como bebês recém-nascidos, pessoas em coma ou deficientes mentais, tampouco estariam protegidos pelo direito. Christopher Kaczor, no livro The Ethics of Abortion, chama essas posições de “concepções funcionais da personalidade”, segundo as quais um ser só merece respeito como pessoa se funcionar de determinada maneira: se já tiver autoconsciência, se já tiver nascido, se já for viável fora do útero, se já sentir dor. Há muitos marcos arbitrários à disposição dos filósofos morais. 

Os filósofos Michael Tooley e Peter Singer, por exemplo, não veem, a princípio, nada de errado nem no aborto, nem no infanticídio de recém-nascidos. Para Singer e Tooley, o mero pertencimento de um ser humano à espécie humana – o que, como fenômeno biológico, ocorre na concepção – não garante que ele seja uma “pessoa moral” com um direito à vida. O critério relevante para determinar quando é errado acabar com a vida biológica seria o momento em que um ser passa a ter uma concepção de si mesmo como um sujeito de uma continuidade de experiências. Afinal, só quem tem essa autoconsciência sabe que está vivo, pode fazer planos e tem interesses que se prolongam no tempo. Trocando em miúdos, estão dizendo que não há nada de errado em matar quem não sabe que está sendo morto. 

Kaczor, assim como outros filósofos, aponta a dificuldade óbvia nessa posição: pessoas adormecidas ou anestesiadas poderiam ser mortas sem problemas enquanto permanecem inconscientes. Uma saída para os defensores dessa ideia quase sempre é dizer que não importa a consciência sendo exercida num determinado período, mas a configuração neurológica que torna possível ter consciência. Mas isso não justifica nada: ter um cérebro é condição necessária, mas não suficiente, para ser autoconsciente. Ter um coração funcionando é tão condição necessária para a autoconsciência quanto ter um cérebro. Do fato de determinarmos o momento da morte biológica, por razões pragmáticas, como a morte cerebral não se segue que só exista vida digna de ser protegida quando há autoconsciência. 

Mary Anne Warren, destacada filósofa americana, desde a publicação de The Personhood Argument in Favor of Abortion, em 1973, tentou pensar o nascimento como um critério prático para resolver esse embate. Embora Warren também tenha uma concepção funcional de personalidade, na prática apenas o aborto – e não o infanticídio – deveria ser permitido, uma vez que somente durante a gestação a existência de um ser vivo pode entrar em conflito direto com o direito da mulher sobre o próprio corpo. Essa posição contraria nossas intuições morais em pelo menos dois aspectos. Primeiro, um ser humano concebido in vitro teria mais direitos do que um feto de oito meses. Segundo, se uma mulher quisesse, ainda durante o parto, desistir de ter o filho, não haveria nada errado em matá-lo. 

Essa miríade de critérios – que deveriam indicar, na visão de diferentes filósofos, o momento que marca o início da proteção da vida biológica – dá origem ao que Kaczor apresenta como a “posição gradualista”, que subjaz às decisões das cortes constitucionais nos últimos 50 anos. “Embora cada critério proposto, tomado por si só, possa não ser condição suficiente para a personalidade, tomados em conjunto eles levam à conclusão de que o direito à vida se fortalece gradualmente enquanto a gravidez prossegue”, escreve o filósofo. Se tantos outros direitos são conquistados gradualmente, por que não o direito à vida? 

“A diferença radical que existe entre o direito à vida e outros direitos, como o direito de votar, não se funda apenas no fato de que, sem o direito à vida, uma pessoa não pode exercer qualquer outro direito. Votar, dirigir e ocupar um cargo eletivo são exemplos de direitos que têm responsabilidades correlatas [a seu exercício]”, escreve Kaczor. Estar vivo é um direito que não implica responsabilidade alguma até o que sujeito tenha condições de assumi-las. De fato, no direito brasileiro, a capacidade civil começa em parte aos 16 anos e completa-se aos 18 anos. 

Mas nós já não reconhecemos como mais grave matar um adulto do que um feto? O Código Penal brasileiro não faz justamente isso ao cominar penas diferentes para o aborto, o infanticídio e o homicídio? O Justiça & Direito abordou essa questão na reportagem anterior desta série, ao conversar com Ângela Gandra Martins, Ph.D. em Filosofia do Direito. Da mesma forma, Kaczor diz que “Todo ato de matar viola o direito à vida, que é igual para todas pessoas humanas inocentes. Não se segue disso que matar um embrião e matar um adulto seja igualmente errado em todos os outros aspectos. Muitas vezes, uma ação será errada por mais de um motivo”. 

O filósofo resume o que realmente está em jogo: “Em assuntos de vida e morte, nós temos que fazer melhor do que eleger um ponto de corte arbitrário. A própria vida está em risco, a existência de seres humanos inocentes, de modo que uma concepção de personalidade que se fundamente em decisões arbitrárias dos poderosos contra os vulneráveis não pode ser justa ou igualitária”. 

Kaczor apresenta, em contraposição às concepções funcionais da personalidade, o que chama de “concepção atribuída da personalidade”. Uma formulação dessa ideia está nas palavras de Robert P. George e Patrick Lee, no artigo Acorns and Embryos, publicado em 2005: “A posição chave dos opositores da matança de embriões é que todos os seres humanos, independentemente da idade, do tamanho, do estágio de desenvolvimento ou de condições de dependência, possuem igual e intrínseca dignidade em virtude do que são (isto é, da espécie de entidade que são), e não devido a quaisquer traços acidentais, que podem ir e vir e que estão presentes nos seres humanos em graus diferentes”.

Nada disso importa 

Em um dos textos mais famosos da história da ética no século XX, Uma Defesa do Aborto, publicado em 1971, a filósofa Judith Jarvis Thomson propôs a seguinte ideia: mesmo que o embrião ou o feto tenham direitos, isso não obriga a mãe a continuar grávida se não quiser. Thomson reconhece que “por volta da décima semana, o feto já tem um rosto, braços, pernas e dedos; tem órgãos internos e atividade cerebral”, mas diz que não vai discutir nada disso. 

A forma do raciocínio de Thomson é muito parecida com a estrutura da petição inicial da ADPF 442. Tanto a filósofa quanto as advogadas do caso aceitam a premissa de que o ser humano não nascido é uma pessoa que tem direito à vida, para logo dizer que, no conflito com o direito ao corpo da mulher, prevalece este último. 

“É interessante perguntar o que acontece se, para fins do argumento, nós aceitarmos a premissa [de que o feto é uma pessoa] (...) Estou argumentando apenas que ter direito à vida não garante nem que alguém tenha direito de usar o corpo de outra pessoa, nem que tenha o direito de continuar a usá-lo – mesmo se esse alguém precisar desse corpo para manter a própria vida”, escreveu Thomson em 1971. Cinco décadas depois, as advogadas da ADPF escrevem: “Na questão do aborto, como já demonstrado no item 4.1 desta ADPF, não haveria conflito entre direitos fundamentais, dada a impossibilidade de se imputar direitos fundamentais ao embrião ou feto. Como um exercício argumentativo concorrente, no entanto, seria uma ponderação entre os direitos fundamentais das mulheres e o respeito ao valor intrínseco do humano no embrião ou feto”.

É quase desnecessário dizer que Thomson e as autoras da ADPF 442 propõem esse exercício e concluem que o direito das mulheres prevalece em muitos casos. Enfrentar essa linha de raciocínio será o próximo passo desta série de análises do Justiça & Direito.

Diálogo

Não só a convicção de que vida deve ser protegida desde a concepção motiva essa série de análises sobre a ADPF 442, mas também nossa crença no poder da razão e do diálogo. O filósofo Christopher Kaczor, que se posiciona a favor da proteção da vida desde a concepção, faz um agradecimento especial, no primeiro parágrafo de seu livro, ao também filósofo David Boonin, que defende a posição contrária: “David Boonin, autor de Uma Defesa do Aborto, merece especial reconhecimento e gratidão. David leu meu manuscrito inteiro duas vezes e, na segunda vez, me mandou 23 páginas, em espaçamento simples, de comentários, questões, objeções e desafios. Estou especialmente em débito para com ele por este trabalho”.

Todas as citações deste texto são traduções livres de artigos em inglês, feitas pelo autor da reportagem.

Confira a série completa: Análise da ADPF 442

1. Bebê na barriga é gente? Para defensores do aborto, é “criatura” com menos direito 

2. Há diferença entre os direitos do ser humano que nasceu e os do que não nasceu? 

3. É proporcional descriminalizar o aborto? 

4. Números sobre aborto mostram pontos fracos da legalização como alternativa 

5. Aborto: a liberdade da mulher deve mesmo ser o direito mais relevante? 

6. Decisões anteriores do STF não servem como base para descriminalizar o aborto

7. Não pode abortar? Há alternativas para a defesa da vida, com dignidade para a mulher

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