A performance do bailarino Wagner Schwartz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) na semana passada foi o quarto evento artístico a gerar polêmica desde a exposição do "Queermuseu", realizada em Porto Alegre, que trazia obras com ataques à religião católica. No caso mais recente, Schwartz fazia uma releitura dos "Bichos", esculturas de Lygia Clark, quando foi manipulado, nu, por uma criança. Um vídeo registrou a performance e se espalhou rapidamente pelas redes sociais. O Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) abriu investigação. Juristas apontam desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e reforçam que pais devem prezar pelo melhor interesse da criança.
Grande parte das pessoas que tiveram acesso às imagens demonstrou descontentamento, chegando a afirmar se tratar de pedofilia. Uma petição on-line para o fechamento do museu foi criada e, até a noite de segunda-feira (2), reunia mais de 81 mil assinaturas pelo fechamento do MAM.
Ações similares aconteceram no caso da mostra "Queermuseu" e da peça "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", que teve sessão no Sesc Jundiaí cancelada por liminar porque mostrava uma versão transexual de Cristo.
Do outro lado, grupos e instituições culturais e políticas expressaram-se a favor do museu. Masp, Sesc e Videobrasil, entre outros, assinaram carta pública em apoio à liberdade de expressão. Paço das Artes e Masp postaram nota no Facebook. Já o prefeito de São Paulo, João Doria, publicou um vídeo condenando a performance de Schwartz e a mostra "Queermuseu", realizada pelo Santander . "Afrontam o direito, a liberdade e, obviamente, a responsabilidade", disse. Ele chamou de "libidinosa" e "absolutamente imprópria" a performance artística no MAM. "Peço que os que promovem a arte no Brasil tenham consciência de que é preciso respeitar àqueles que frequentam os espaços públicos."
Pais, filhos e juristas
Advogados e membros do Judiciário ouvidos pela reportagem dizem que o problema não está na suposta incitação à pedofilia. A publicação do vídeo é o que mais pode configurar risco à criança. A ausência de classificação etária também infringe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Antonio Carlos Malheiros, 66, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, considera que houve desrespeito ao ECA. "Levar a discussão para um âmbito de pedofilia passa da medida." O principal erro seria a ausência de classificação etária em local visível. O MAM apenas fez um aviso de que havia nudez na performance.
Segundo o Ministério da Justiça, exposições devem ser autoclassificadas, seguindo um guia que a pasta fornece. O documento aponta a possibilidade de classificação etária livre em obras com nudez. Mesmo com a classificação indicativa, a decisão de liberar a criança ainda é prerrogativa dos pais. No caso do MAM, a criança estava acompanhada da mãe. "O que se espera é que eles saibam tomar conta dos filhos, como fariam com relação à TV. Não podemos admitir um Estado invasivo", diz Malheiros.
Segundo o magistrado, uma mãe pode ser punida. "Um magistrado mais rigoroso poderia suspender temporariamente o poder familiar", diz. "Essa sequência de campanhas contra peças, exposições, quadros e, agora, uma performance, eu vejo como censura. Mas é preciso ter uma proporcionalidade quando tratamos de menores."
Para ele, a divulgação do vídeo pode colocar a criança "em situação humilhante" —e gerar processo .
"Não sabemos o que isso pode causar na 'cabecinha' da criança".
Na opinião de Eduardo Tomasevicius Filho, professor de Direito da Criança e do Adolescente na USP, a exibição do órgão sexual masculino a uma menina já poderia ser interpretada como relevante e indevida. Ele recorda que os artigos 74 a 79 do Estatuto mostram uma preocupação do legislador em evitar o contato das crianças com qualquer tipo de pornografia e, portanto, a exposição do MAM estaria violando os princípios da proteção integral da criança e do melhor interesse para a criança.
Ele reconhece ainda que esta questão é muito delicada por estarem em conflito a liberdade do artista, da família e o direito da criança. “Eu pessoalmente acho que [nesse caso] a criança não deveria ter acesso”, diz. Segundo ele, nas decisões judiciais o ECA tem sido interpretado de forma a proibir qualquer tipo de exposição precoce à sexualidade.
Oswaldo Peregrina Rodrigues, 53, professor de direito civil na PUC-SP, lembra que "os pais são os detentores do poder familiar". São eles que devem avaliar. Isso não significa que eles possam agir em prejuízo da criança, diz. "O princípio geral é o do melhor interesse da criança e do adolescente."
Para Dinovan Oliveira, membro da Comissão de Direito às Artes da OAB-SP, associar as obras em questão com nudez à pedofilia à erotização é exagero. "A liberdade de expressão artística é um valor fundamental, que deve ser defendida. Não consigo enxergar responsabilidade do MAM, que cumpriu sua obrigação ao orientar os visitantes sobre a existência de um nu."
A investigação
O Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) vai investigar a divulgação na internet do vídeo, na semana passada, em que uma criança aparece interagindo com um artista que realizava, nu, uma performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM).
Segundo Eduardo Dias, da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude (Setor de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos), o MPSP vai também investigar a responsabilidade do MAM na classificação indicativa da performance. Quaisquer responsabilidades legais sobre a criança ou qualquer infração relacionada ao caso, porém, serão investigadas pela justiça criminal. "A identificação de quem é a mãe, se era ela que aparecia no vídeo com a criança, se estava no exercício regular da guarda, isso é feito pelo promotor do bairro onde mora a pessoa."
"A nossa preocupação é fazer valer os direitos da criança e do adolescente", afirmou Dias, que citou o Estatuto da Criança e do Adolescente. "No que diz respeito a eventos de arte, o Brasil, desde 1988, adotou o sistema de classificação indicativa", explicou.
De acordo com o promotor, o que cabe ao órgão é investigar qual classificação indicativa foi adotada pelo MAM no dia do evento, que serviu de abertura de uma exposição na última semana. "Existe uma regra específica para eventos dessa natureza, como exposições de arte ou instalações, e ela é pautada pela autoclassificação, os curadores, examinando o evento, vão fixar a idade de acesso do público infantojuvenil."
"Se o evento for classificado como permitido para menores de 18 anos, os pais que assim desejarem podem levar os filhos", esclareceu ainda Eduardo Dias. "Dado o conceito de arte moderna, quem foi para lá talvez estivesse preparado para absorver o conteúdo, mas nem todos que receberam as imagens estavam prontas para entender aquela manifestação cultural."
O promotor vê como problema, além da classificação indicativa, a divulgação, por meio da internet, do vídeo em que a criança aparece. O órgão identificou alguns responsáveis pelo upload do vídeo, que não apagaram ou borraram o rosto da garota, e pediu a retirada dessas imagens. "Nós pedimos ao Facebook e ao Google (administrador do YouTube), denunciando os endereços das imagens, que elas sejam retiradas da internet."
Para ele, o que pode ser mais prejudicial para a criança é a exposição no meio virtual. "As imagens, numa veiculação desse porte, precisariam de autorização judicial", o que, segundo Dias, não parece ter ocorrido.
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