O fim de um relacionamento nunca é fácil. Sonhos compartilhados, expectativas criadas, muitas vezes até filhos (e netos) em comum. Quando esse fim envolve traição, o sofrimento é ainda maior. Choro, ranger de dentes e até barraco na vizinhança. Mas é possível, para muitos juristas e tribunais brasileiros, conseguir amenizar essa angústia com indenização por danos morais em caso de traição. A questão divide julgadores e advogados e nem sempre é claro quando uma traição “merece” ser indenizada. Basta sofrer calado? Ou é preciso ser alvo de chacota na vizinhança, no trabalho ou no Facebook?
O Código Civil (CC) brasileiro estipula, no artigo 1566, os deveres de ambos os cônjuges no casamento: o primeiro deles é a fidelidade recíproca. Depois, vêm a vida em comum, no domicílio conjugal; a mútua assistência; o sustento, a guarda e a educação dos filhos; e o respeito e a consideração mútuos. Essa lei também prevê, nos artigos 186 e 927, que quem violar o direito alheio e lhe causar dano, mesmo que seja apenas moral, está cometendo ato ilícito e ficará obrigado a reparar o dano. A questão que surge daí é a seguinte: quando a traição e a quebra da fidelidade podem gerar o dever de indenizar o traído?
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Em um voto sobre o tema, em 2008, o desembargador Maia da Cunha, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), considerou até discutível haver desonra em condutas adúlteras no “mundo moderno” do século XXI. De acordo com o desembargador, só haveria dano em caso de situação vexatória excepcionalmente grande que ultrapassasse a normalidade do desgosto pessoal. Para o magistrado, o importante para a configuração do dano não é “o adultério em si mesmo, porque fato previsível e até comum na atualidade, cuja ocorrência, é bom destacar, não se dá apenas por deslealdade, mas também pelas circunstâncias que hoje aproximam as pessoas com afinidades comuns muito mais do que antes”, escreveu em 2008.
“Para a maior parte da população, a infidelidade é algo muito grave”, Regina Beatriz Tavares, advogada e presidente da ADFAS.
A questão não é unânime nos tribunais. “É um tema que pode ser considerado novo. Cada tribunal atira para um lado”, afirma Carlos Eduardo Dipp, advogado e professor de Direito Civil no UniBrasil. De acordo com Dipp, existem duas correntes principais na discussão: aqueles que consideram que o adultério em si já acarreta indenização e aqueles para quem a indenização só é devida nos casos em que houver exposição pública, sofrimento e angústia – ou, nas palavras da decisão do desembargador do TJ-SP, em 2008, quando “a violação do dever de fidelidade extrapolar a normalidade genérica”.
Os juízes costumam entender que criar o filho dos outros por engano é um desses casos que extrapolam a normalidade genérica. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou, em 2013, o pedido de um homem que, depois de cinco anos acreditando ser pai, descobriu que a criança era fruto de uma relação extraconjugal da ex-mulher, quando ainda eram casados. Nesse caso concreto, o tribunal entendeu que o sofrimento imposto pela traição, que gerou a crença equivocada na paternidade da criança, dava direito a danos morais.
Porém, ao decidir o caso, o STJ considerou também que “a violação dos deveres impostos por lei, tanto no casamento (art. 1.566 do CC), como na união estável (art. 1.724 do CC), não constituem, por si sós, ofensa à honra e à dignidade do consorte, aptas a ensejar a obrigação de indenizar. Não há como se impor o dever de amar, verdadeiro obstáculo à liberdade de escolha pessoal”, analisou o relator do caso, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Esse entendimento, que é seguido por muitos tribunais estaduais, é criticado por Regina Beatriz Tavares, advogada e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), que escreveu seu doutorado sobre o tema. Para Regina Beatriz, o descumprimento do dever de fidelidade já configura ilícito que dá ensejo aos danos morais. “De fato, amar não é dever ou direito, e a dissolução conjugal não gera o dever de indenizar. Mas é o ato praticado em desrespeito aos direitos do outro cônjuge que gera a obrigação de indenizar o dano moral suportado”, afirma. “Para a maior parte da população, a infidelidade é algo muito grave”, completa.
Muitos juízes e tribunais estaduais tem uma visão mais restritiva sobre o assunto. O TJ-SP, em decisão de 2016, negou o pedido de danos morais a um marido traído, porque “não havendo qualquer exposição pública à honradez externa do apelante, não há qualquer dano a ser indenizado”. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) entende, em algumas decisões, que mágoas e angústias decorrentes de traição são “fatos da vida” e, por si só, não geram dever de indenizar. Em um caso, julgado em 2013, o tribunal entendeu que a “traição conjugal, por si só, apesar de constituir violação a dever matrimonial, não é suficiente para a configuração de danos morais, não havendo nos autos provas que indiquem a intenção da requerida de lesar o autor”.
Há quem entenda, no entanto, que não é apenas a publicidade da traição que pode ensejar danos morais. Rui Stoco, autor de um livro sobre responsabilidade civil e desembargador aposentando do próprio TJ-SP, é um desses. “Se não houver exposição, haverá um problema nos meios de prova, mas tudo aquilo que atinge a pessoa naquilo que ela tem de mais importante pode levar à obrigação de reparar por danos morais. Se o cônjuge ficar sabendo, ele tem sua moral ofendida. Sentimento de tristeza, angústia, isso já é dano moral”, afirma Stoco.
“De fato, amar não é dever ou direito, e a dissolução conjugal não gera o dever de indenizar”, Regina Beatriz Tavares, advogada e presidente da ADFAS.
O Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), por outro lado, é mais receptivo à tese da indenização por traição. Numa decisão de 2001, o relator de um caso no tribunal escreveu: “O que se busca com a indenização dos danos morais não é apenas a valoração, em moeda, da angústia ou da dor sentida pelo cônjuge traído, mas proporcionar-lhe uma situação positiva e, em contrapartida, frear os atos ilícitos do infrator, desestimulando-o a reincidir em tal prática”.
O advogado Carlos Dipp destaca ainda outra questão. Depois da Emenda Constitucional 66/2010, a qual retirou a necessidade da separação judicial para se fazer o divórcio, a maioria dos advogados não tem fomentado ações para os clientes buscarem indenização por traições. “Esse tipo de ação dificulta uma possível relação amigável depois do divórcio. Além disso, as indenizações em geral são baixas”, afirma Dipp. O advogado salienta também que uma alternativa que para diminuir as incertezas sobre o tema é fazer contratos de convivência em uniões estáveis ou pactos antenupciais que prevejam a hipótese de indenização por traição.
“Esse tipo de ação dificulta uma possível relação amigável depois do divórcio”, Carlos Eduardo Dipp, advogado e professor de Direito Civil.
Corazón partío
No novo Código Civil da Argentina, aprovado em 2014, o dever de fidelidade passou a ser entendido pela lei como mero dever moral. Fidelidade deixou de ser dever jurídico, o que deixa a traição sem sanção possível. “A revolta entre os juristas e a sociedade é muito grande”, comenta Regina Beatriz. “Agora, se a lei não mudar na Argentina, aí sim só poderia haver indenização por traição em caso de um desrespeito público ao cônjuge”, completa.
Já em Portugal e na França, o direito de família prevê expressamente a possibilidade de indenização em caso de traição. Na Itália, os tribunais aceitam a possibilidade com base no mesmo raciocínio aplicado no Brasil no Brasil: a regra geral de responsabilidade civil.
No Congresso brasileiro, existe um projeto para cuidar do coração partido dos traídos: o PL 5716/2016, de autoria do deputado Rômulo Gouveia (PSD-PB). A ideia é pacificar as discussões sobre o assunto, acrescentando uma disposição expressa ao artigo 927 do Código Civil: “O cônjuge que pratica conduta em evidente descumprimento do dever de fidelidade recíproca no casamento responde pelo dano moral provocado ao outro cônjuge”.
Se o projeto for aprovado, a tese da advogada Regina Beatriz virará lei depois de quase duas décadas de seu doutoramento. Restará saber o que alguns juízes entenderão por “evidente” no descumprimento do dever de fidelidade.
Entenda a controvérsia jurídica
Entre a promulgação da Lei de Divórcio, de 1977, e a promulgação da Constituição de 1988, era comum os juízes discutirem a culpa dos cônjuges na separação judicial e no posterior divórcio. O cônjuge declarado culpado perdia uma série de direitos: pensão, promessas do outro cônjuge no pacto antenupcial, guarda dos filhos. A partir do final dos anos 1980 e sobretudo com a nova Constituição, a jurisprudência e doutrina caminharam no sentido de não mais discutir a culpa, nem na separação, nem no divórcio.
A principal mudança trazida pela nova Constituição foi ter permitido o divórcio depois de um ano de separação judicial ou dois anos de separação de fato, na qual nem se precisava discutir a questão da culpa, uma vez que bastava o mero fato de os cônjuges terem se separado para permitir divórcio. Isso acabou gerando a compreensão de que era inadequado discutir culpa em um contexto em que a busca da felicidade surgiu como fundamento das relações de família e diante da igualdade entre os cônjuges, ou companheiros, e os filhos e da busca da felicidade como fundamento das relações de família. Regina Beatriz Tavares escreveu seu doutorado sobre o assunto na USP em 1998, quando o tema da responsabilidade civil nas relações de família ainda era tabu na jurisprudência.
“Embora estejam superadas as resistências na aplicação dos princípios da responsabilidade civil nas relações familiares, havia uma visão de que essas relações seriam voltadas a um regime de exceção, de modo que a violação dos deveres do casamento, assim como de outras relações de família, não deveria originar a condenação daquele que praticava ato ilícito”, afirma Regina Beatriz, em artigo publicado sobre o tema.
“O dano moral não é só a dor ou o sofrimento do cônjuge traído, mas o prejuízo decorrente do fato grave em si mesmo”, Regina Beatriz Tavares, advogada e presidente da ADFAS.
A advogada defendeu a visão oposta, que foi recepcionada pela jurisprudência, segundo ela. Para Regina Beatriz, vale no descumprimento dos deveres conjugais o regime geral da responsabilidade civil no direito brasileiro. “Para haver indenização, é preciso que haja descumprimento de um dever, dano moral e um nexo causal (ligação) entre o descumprimento e o dano”, resume a advogada. “O dano moral não é só a dor ou o sofrimento do cônjuge traído, mas o prejuízo decorrente do fato grave em si mesmo. A traição em si é um fato grave, valorado negativamente”, afirma Regina Beatriz.
O advogado Rodrigo Xavier Leonardo, professor de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná (UFPR), discorda dessa tese. Leonardo lembra, em primeiro lugar, que nem todo ato ilícito tem como sanção o dever de indenizar. De acordo com o professor, os atos ilícitos invalidantes geram a anulação de um ato, sem o dever de indenizar, e os atos ilícitos caducificantes resultam na decadência de um direito. “Não se pode concluir pela existência de uma relação consequencial entre um ilícito, como violação ao ordenamento jurídico, e o dever de indenizar”, afirma o professor.
Ainda de acordo com Leonardo, o casamento não é um contrato, mas um negócio jurídico de direito de família. Isso significa, segundo o professor, que os efeitos jurídicos do casamento são diferentes daqueles gerados por contratos e permitem modulações e consequências diversas.
“No casamento há um espaço de liberdade amplo, pertinente ao espaço da privacidade, para que os consortes definam, e redefinam ao longo da vida, o vínculo que lhes une”, Rodrigo Xavier Leonardo, advogado e professor de Direito Civil.
Por isso, o professor critica a tendência contemporânea de tentar resolver todos os perrengues da vida conjugal a partir de discussões monetárias e patrimoniais. “Há uma certa tendência em se procurar resolver as mazelas do direito de família mediante o pagamento de indenizações que acaba por transformar relações existenciais em relações contratuais, como se noivos, companheiros e cônjuges fossem contratantes que, diante do descumprimento de uma ou mais cláusulas do seu acordo, pudessem buscar uma indenização pela frustração de suas expectativas contratuais”, avalia.
O advogado Caio Martins Cabeleira, diretor da ADFAS e doutorando em Direito Civil pela USP, levanta outras questões. “O dever de fidelidade não existe para aplacar os ciúmes do outro”, afirma. “Precisamos ter em mente que a relação conjugal não é uma relação obrigacional, onde há credor e devedor. O que temos na relação conjugal é uma relação institucional e os deveres matrimoniais dizem respeito ao melhor interesse do casal, da família e da sociedade em geral. A fidelidade não é um dever somente para atender o outro cônjuge”, explica.
“A onda de pedidos de dano moral por traição surgiu num momento histórico em que as alterações legislativas praticamente acabaram com as outras sanções contra o adultério”, Caio Martins Cabeleira, advogado e diretor da ADFAS.
Segundo Cabeleira, “na ausência de outras sanções – que sempre existiram –, o ordenamento acabou por encontrar uma forma de compensar isso por meio do dano moral”, afirma. Mas, na opinião dele, hoje cabem apenas duas sanções previstas para o descumprimento dos deveres do casamento, que constam dos artigos 1578 e 1704 do Código Civil, se o cônjuge for declarado culpado em ação própria: a perda do direito de usar o sobrenome do cônjuge traído e, a princípio, a perda do direito de receber pensão.
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