“O golpe está em curso”, afirmou Sérgio Salomão Shecaira, no dia 17 de março de 2016, na mesa do Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP, para uma plateia e uma galeria lotadas de estudantes, militantes e jornalistas. Pouco mais de um ano depois, estaria sentado novamente à mesma mesa, presidindo a banca do concurso para professor titular do departamento de direito penal da mesma faculdade, avaliando a candidata Janaina Conceição Paschoal, uma das autoras do pedido de impeachment que acabou por tirar Dilma Rousseff do poder, em agosto daquele ano.
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“Não vai ter golpe”, a multidão que lotava o salão começou a entoar repetidamente logo após a fala de Shecaira, que tinha como alvo naquela noite o juiz Sérgio Moro, para quem o chefe do departamento de Direito Penal da USP recomendava prisão de dois a quatro anos, por ter divulgado a gravação entre Dilma e o ex-presidente Lula. Eram tempos barulhentos: menos de um mês depois, em 4 de abril do ano passado, foi a vez de Janaina Paschoal falar alto. Virou meme com seu discurso no parlatório externo à Faculdade de Direito, no Largo de São Francisco. “O Brasil não é a República da cobra”, gritou a professora, enquanto girava uma bandeira do Brasil acima da cabeça.
Mas o clima era outro nesta segunda-feira, 11, no Salão Nobre da Faculdade de Direito. Janaina entrou pela lateral, pouco depois das 9h da manhã, trajando uma beca preta enlaçada por um faixa vermelha, própria dos concursos, enquanto arrastava uma mala azul com estampa floral, onde guardava seus livros e anotações. Por baixo da farda acadêmica, só se podia ver o sapato Peep Toe. A candidata teria pela frente mais de cinco horas de arguição de sua tese Direito Penal e Religião: as várias interfaces de dois temas que aparentam ser estanques.
“Posso cumprimentar a banca?”, perguntou Janaina ao presidente do concurso, cujo resultado será divulgado na sexta-feira, 15. Shecaira assentiu e a candidata aproximou-se da mesa onde já estavam os cinco avaliadores, observados de trás pelo imenso quadro de Dom Pedro II que adorna o Salão Nobre. O espaço estava vazio, mesmo para os padrões dos concursos acadêmicos, que se arrastam por dias a fio e por muitas horas a cada dia. Na primeira fila, acompanhavam atentos o irmão, as duas irmãs e o marido de Janaina. Não mais do que outras 10 pessoas completavam a plateia de centenas de lugares vazios.
“Ela sempre foi uma pessoa impetuosa, mas piorou durante o governo petista. Em 2006, em um seminário em que o Márcio Tomaz Bastos [então ministro da Justiça] era o convidado da abertura, ela ficou em pé no meio da palestra e começou a gritar: ‘E o Francenildo? E o Francenildo?’ [em referência à quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo, que levou à queda de Palocci em 2006]”
Um a um, Janaina cumprimentou, com um aperto de mão, o próprio Sérgio Salomão Shecaira, que é professor titular de Direito Penal na USP desde 2008; Renato Jorge de Mello Silveira, também titular e vice-diretor da Faculdade de Direito; Cláudio Roberto Cintra Bezerra Brandão, titular da Universidade Federal de Pernambuco; Maria Auxiliadora Minahim, titular da Universidade Federal da Bahia; e Vittorio Manes, da Universidade de Bolonha.
Os cinco terão a responsabilidade, ao longo desta semana, de dar notas para as teses, para os memoriais – espécie de testamento de toda a vida acadêmica – e para uma aula de erudição que cada candidato vai ministrar na sexta-feira (15). Além de Janaina, que foi a primeira a se inscrever, disputam as duas vagas do concurso os professores Alamiro Velludo Salvador Netto, Mariângela Gama de Magalhães Gomes e Ana Elisa Liberatore Silva Bechara.
“O cargo de professor titular em direito penal está em extinção no Brasil. Não somos mais que cinco hoje”, notou Mello Silveira, o penúltimo a arguir Janaina. É uma exigência do regimento da USP que apenas professores titulares possam compor a banca que vai selecionar seus pares. A titularidade é o mais alto grau da hierarquia acadêmica e confere, além de um aumento salarial, prestígio e um assento permanente na Congregação da Faculdade, que é instância de deliberações máxima da unidade. É a Congregação, por exemplo, que elege o diretor Faculdade e aprova em definitivo as bancas dos concursos que selecionam os novos professores.
Os concursos para docência são velhos celeiros de polêmicas no Largo de São Francisco. A cada edição, ressurgem os boatos de favorecimento de candidatos em meio às disputas entre facções acadêmicas rivais. Quando um concurso acaba, ficam as histórias sopradas ao vento e os derrotados se calam, esperando a próxima chance de virar o jogo. Mas, às vezes, o ritual não sai conforme a missa: em 2009, um jurista abandonou a USP depois de um concurso polêmico, em que perdeu a disputa pela titularidade de Direito Constitucional para outro professor, prata da casa e procurador do estado de São Paulo. Em março deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a anulação de um concurso para professor titular de Direito do Comércio Internacional a pedido de uma candidata. Os professores mais tradicionais da Faculdade, para quem roupa suja se lava em casa, lamentam a falta de etiqueta de tais episódios.
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A expressividade dos gestos da autora do pedido de impeachment, que lhe rendeu paródias mil à época do processo de impeachment, acompanhou também a candidata à titularidade. Certa altura, respondendo aos questionamentos da banca, Janaina explicou por que aproxima, teoricamente, os filósofos Santo Agostinho e John Stuart Mill, enquanto abria os braços e ia aproximando as duas mãos em forma de meia lua, acima da cabeça. Em outra ocasião, fez um globo com as mãos. “Imagina um globo”, disse à banca. “É como se houvesse um globo e eu estivesse ali fora. Meus colegas de departamento olham o direito penal por dentro, olhando a face de dentro do globo”, explicou, defendendo-se das críticas de que seu trabalho não tinha um referencial teórico claro.
Essa e a falta de método foram as grandes divergências entre os membros da banca e Janaina, que nunca ostentou os salamaleques da liturgia acadêmica. Em sala de aula, nos anos em que este repórter foi seu aluno (entre 2011 e 2013), sua postura sempre foi a de professora acessível, preocupada com os alunos, que procurava transmitir os conteúdos técnicos em uma linguagem viva. Cada problema de direito penal era um problema de vida e morte – seus gestos e seu tom de voz, já muito antes do processo de impeachment, não a deixavam disfarçar. Não raro se ouvia de alunos de esquerda, até militantes acadêmicos, que gostavam de frequentar as aulas de Janaina porque eram interessantes e diferentes das dos demais professores.
“Se, de um lado, cabe lhe cumprimentar pela coragem e pela ousadia, que parecem já ser traços da sua personalidade, creio, contudo, que não devo comunicar ao texto as qualidades que são qualidades próprias da autora”, avaliou a professora Minahim, referindo-se à amplitude das preocupações da tese de Janaina, que não teria, como é praxe nas pesquisas acadêmicas, “recortado um objeto de pesquisa claro”. O professor Brandão foi incisivo sobre vários trechos da tese. “Logo após a eleição presidencial de 2010, uma jovem de São Paulo, por meio do twitter, postou uma frase infeliz, dizendo que faria um favor ao Brasil quem matasse um nordestino por dia (...). Essas ponderações podem parecer despropositadas ao tema objeto do presente item; entretanto, as reações ao texto publicado em defesa da estudante muito auxiliaram para as reflexões nesta tese apresentadas”, escreveu Janaina. “Isso aqui é próprio de uma nota de rodapé. Não de um texto fluído sobre um objeto [de pesquisa] determinado”, sentenciou Brandão.
A candidata não negou a percepção da banca. “Eu fiz questão de mostrar para o leitor o tanto que eu julgo, respeitosamente, esta tese necessária para o momento que o Brasil atravessa e, ouso dizer, que a humanidade atravessa. Eu sei que essa minha frase pode contar contra mim na hora da avaliação da banca. Quando eu faço esta tese, Excelência, faço menos com a preocupação de apresentá-la como uma tese formalmente adequada aos parâmetros universitários e mais como um manifesto, uma preocupação com os conflitos que podem eclodir num futuro próximo”, disse. “As razões desta tese são razões muito pensadas, muito sentidas”, completou.
Nem sempre foi assim. Os membros da banca destacaram as qualidades tradicionais do doutorado da candidata, defendido na USP em 2002. Colegas de departamento reconhecem seus méritos acadêmicos, dizem que Janaina era a mais preparada entre os candidatos que prestaram o concurso para docência na Faculdade, em 2003, mas se perguntam em que momento ela teria se desencaminhado. O governo do PT é uma hipótese. “Ela sempre foi uma pessoa impetuosa, mas piorou durante o governo petista. Em 2006, em um seminário em que o Márcio Tomaz Bastos [então ministro da Justiça] era o convidado da abertura, ela ficou em pé no meio da palestra e começou a gritar: ‘E o Francenildo? E o Francenildo?’ [em referência à quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo, que levou à queda de Palocci em 2006]”, disse à reportagem um professor do departamento de direito penal, sob a condição de anonimato.
A única menção à palavra “impeachment”, nas mais de cinco horas de arguição, não apareceu senão como uma tímida nota de rodapé ao primeiro dia de concurso, que terminou numa apoteose da razão pública não transmitida em rede nacional.
De fato, Janaina preferiu colocar-se, a todo o momento durante o concurso, como vem fazendo já há anos, em oposição às exigências formais de uma tese acadêmica, soando como uma desafiante ao insulamento dos saberes, para quem a liturgia e os dogmas da Universidade não deveriam se sobrepor ao conteúdo de suas reflexões personalíssimas. Uma herege desafiando os Torquemadas de beca. “Eu sou uma minoria neste departamento”, disse a certa altura. “Estou dando os instrumentos para a banca me reprovar sem dificuldades, argumentos formais haverá aos montes”, afirmou em outra ocasião.
O presidente da banca não discordou. “Abraçar um caminho que é o distante da ortodoxia da tese cria um problema para uma pessoa que vai se debruçar sobre a leitura da sua tese com um olhar científico”, ponderou Shecaira no final de sua arguição, que foi a última do dia. Era o momento mais esperado da avaliação de Janaina, não só pela divergência ideológica entre os professores, mas pelo histórico tempestuoso da relação acadêmica entre ambos. Segundo relatos de presentes, em 2010, quando Janaina defendeu sua livre docência, sobre os crimes comissivos por omissão, Shecaira chegou a dizer que a tese da candidata estava mais para manual de autoajuda. A candidata ficou de pé e arremessou um papel em direção ao avaliador. Na ocasião, todos os membros da banca deram notas finais maiores de 8,0 a Janaina; Shecaira atribuiu 6,4 a ela.
“Talvez pelo histórico pretérito, as pessoas não compreendam exatamente a nossa relação, professora Janaina”, disse Shecaira, antes de começar sua arguição. “Eu queria dizer do apreço que eu tenho por vossa senhoria. Talvez a senhora não acredite, professora Janaina”. A candidata estava imóvel, mas seu semblante era inacessível da plateia, já que o arguido se senta de costas para o salão. “Quando meu filho veio para a Faculdade de Direito, ele foi seu aluno e ele destaca que um dos melhores professores que ele teve foi vossa senhoria, e eu não ignoro o que é evidente: o reconhecimento dos seus alunos de que a senhora é uma boa professora”, disse ainda.
“Minha mulher também admira muitíssimo vossa senhoria, pelo seu destemor, pela sua ousadia, por sair diante do perigo e com o peito aberto, e isso é uma qualidade humana”, afirmou Shecaira. “A despeito das discordâncias de atitudes políticas que vossa senhoria trilhou em seu caminho, eu não posso negar que, do departamento que eu chefio, saiu uma professora que fez um pedido de impeachment bem-sucedido. O que eu não posso deixar de reconhecer é o seu protagonismo”, continuou o titular.
Mesmo entre os elogios, Shecaira não pode deixar de lado as ironias, ainda que em um tom de autocrítica. “Vossa senhoria mencionou que lamenta que o nosso departamento, ou que qualquer outra área da Faculdade de Direito, não seja tão proativo no trâmite dos processos. [Quero apenas] destacar o quanto eu sinto, e estou falando do coração, que vossa senhoria talvez tenha razão. Talvez por uma regra de prudência o departamento não deva ter este protagonismo”, encerrou.
Janaina abraçou o tom conciliatório. “Eu quero, até como Vossa Excelência iniciou falando das nossas divergências e das normas que regem o templo da nossa Faculdade, reconhecer a qualidade de Vossa Excelência como chefe do nosso departamento. Nunca aconteceu de Vossa Excelência me perguntar o que eu falo em sala de aula ou dizer que eu posso falar algo e outra coisa não”, relatou a candidata.
“Algumas pessoas me perguntaram se eu não iria impugnar a banca, pelo fato de Vossa Excelência presidi-la, e quando eu dizia que não, as pessoas não entendiam. E como eu realmente entendo que isso aqui é um aparte, que nós não nos limitamos ao material”, disse Janaina, apontando para baixo os dedos abertos das mãos abertas, “eu achei que era importante essa nova oportunidade, para que nós pudéssemos dialogar de uma maneira mais tolerante e comedida. Como exemplo para os nossos alunos, esse encontro seria interessante”.
A única menção à palavra “impeachment”, nas mais de cinco horas de arguição, não apareceu senão como uma tímida nota de rodapé ao primeiro dia de concurso, que terminou numa apoteose da razão pública não transmitida em rede nacional. Como todas as notas de rodapé que faltaram na tese apresentada por Janaina, e que terão selado seu destino acadêmico, este detalhe revela muita coisa, pela ausência e pelo silêncio que marcaram o concurso mais decisivo da carreira daquela que foi uma das personagens mais instigantes da crise política brasileira entre 2015 e 2016: heroína para uns, louca para outros. Deus ou o diabo – a preferência é do fiel – mora nos detalhes.
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