Se você já acompanha decisões de juízes em ações criminais, o título acima não o surpreenderá. Um novo artigo de Paul Giannelli, professor emérito da Escola de Direito da Universidade Case Western, coloca mais lenha na fogueira de discussões e mostra como tem sido realmente péssima a atuação dos tribunais nessa área.
Giannelli, que foi membro da Comissão Nacional de Ciência Forense, organismo criado pelo ex-presidente Barack Obama e hoje desativado, analisa seis campos forenses para os quais há pouca ou nenhuma pesquisa científica de apoio (ou, em alguns casos, que a pesquisa científica foi desacreditada): a comparação entre marcas de mordidas de supostos criminosos, a perícia de incêndios criminosos, análise microscópica de fios de cabelo, balística forense, análise forense de marcas deixadas por ferramentas, datiloscopia forense e análise comparativa de chumbo de projéteis. A credibilidade científica dessas áreas varia entre pouco ou quase nada (é o caso das comparações de marcas de mordidas e da análise comparativa do chumbo de projéteis) a possivelmente confiável, embora ainda não tenha sido comprovado até que ponto têm valor (é o caso da datiloscopia).
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O artigo de Giannelli resume a escassez de pesquisas científicas em cada um desses campos e então comenta como os tribunais responderam a refutações ao uso dessas análises em processos criminais. Já se discutiu, por exemplo, amplamente a história das provas de marcas de mordidas. Pode-se afirmar que é o campo forense com menos credibilidade científica que ainda é usado. Mas até hoje nenhum tribunal nos Estados Unidos acatou um recurso que procurou impedir o uso desse instrumento como prova. Os tribunais, porém, não têm se saído muito melhor em outros campos.
Vejamos o que Giannelli tem a dizer sobre a análise de cabelos e fibras:
“Em 1995, um tribunal distrital observou, com relação à ação Williamson vs. Reynolds: ‘Embora o perito em análise capilar possa ter seguido procedimentos aceitos na comunidade dos peritos capilares, as comparações entre cabelos humanos realizadas neste caso foram cientificamente duvidosas’. (77) O tribunal também observou que “o perito não explicou quais das ‘aproximadamente’ 25 características eram consistentes, não apresentou os critérios para determinar se as amostras eram consistentes, quantas pessoas podemos prever que compartilhem esse mesmo conjunto de características ou como ele chegou a essa conclusão”.
“Williamson, que estava a cinco dias de ser executado quando recebeu habeas corpus, foi absolvido posteriormente graças a exame de DNA. (79) O parecer no caso de Williamson – possivelmente a única análise judicial completa de comparações capilares microscópicas – foi praticamente ignorado por outros tribunais. No processo Johnson vs. Commonwealth (1999), a Suprema Corte do Kentucky confirmou a admissibilidade da evidência de cabelos, tomando “nota judicial” de sua confiabilidade e assim, implicitamente, tornando sua validade indiscutível. Outros tribunais ecoaram Johnson, não Williamson. De fato, dez anos depois da decisão no caso de Williamson, uma decisão de 2005 da Suprema Corte do Connecticut observou (corretamente) que “a grande maioria dos tribunais considerou essas provas admissíveis”.
“(...) temos uma velha guarda de peritos forenses que defendem acirradamente os métodos que utilizam. Temos cientistas que declaram que aquilo que a velha guarda afirma estar apresentando aos jurados como sendo ciência não o é, porque não há pesquisas científicas que fundamentem seus métodos e análises. E temos o Judiciário que se arrasta atrás [deles].”
Foi apenas poucos anos atrás que o FBI finalmente admitiu que seus peritos em cabelos e fibras tinham exagerado o grau de certeza do que atestaram em virtualmente todos os processos nos quais tinham deposto. Esses peritos treinaram inúmeros outros peritos estaduais e municipais em todo o país, ensinando-os a utilizar os mesmos métodos.
Com relação à balística forense e à análise das marcas feitas por ferramentas, Giannelli destaca que em 2005 dois tribunais federais observaram que nos casos de EUA vs. Green e EUA vs. Montero esses campos se mostraram inteiramente subjetivos. Não há índices de erros nem padrões ou critérios consistentes para determinar que apenas uma arma de fogo particular possa ter disparado determinado projétil ou que apenas uma chave de fenda específica possa ter deixado as marcas de um arrombamento em uma porta. Ele escreve que um dos tribunais:
“... concluiu que a teoria em que o perito se baseou era ‘tautológica’. A Associação de Peritos em Balística e Marcas de Ferramentas (AFTE), a principal organização representativa dos peritos, propôs a teoria. Segundo essa teoria, o perito pode declarar que ocorre uma identificação se (1) houve ‘correspondência suficiente’ de marcas entre a cena do crime e os projéteis usados em testes, e (2) que há ‘correspondência suficiente’ quando o perito assim o afirma.”
Será que outros tribunais seguiram seu exemplo? Você já deve saber a resposta. A maioria dos tribunais continuou a permitir o uso desse depoimento como prova. Alguns tribunais pelo menos reconheceram a existência do problema, mas as soluções que propuseram eram em grande medida sem sentido.
Para citar Giannelli outra vez:
“Outros tribunais tomaram a iniciativa importante, embora ainda limitada, de restringir o depoimento de peritos, impedindo o perito de fazer afirmações fortemente exageradas, como declarar uma correspondência que exclua todas as outras armas, de modo prático ou absoluto. Do mesmo modo, alguns tribunais proibiram peritos de dizer em depoimento que ‘atribuem grau razoável de certeza científica’ a seus pareceres. Esse termo é exigido pelos tribunais de muitas jurisdições, há anos, para que o depoimento de peritos seja admissível. Fato inacreditável, a frase não tem sentido científico, e a alegação de certeza não é comprovada pelas pesquisas empíricas. Logo, ela é fortemente enganosa. De fato, foi rejeitada pela Comissão Nacional de Ciência Forense. Mesmo assim, outros tribunais saíram numa tangente quixotesca, substituindo o termo pela frase “grau razoável de certeza balística”. Trocar “certeza científica” por “certeza balística” apenas chama a atenção para a incompetência científica dos tribunais.
“Contudo, mesmo essas restrições modestas foram rejeitadas por outros tribunais. (136) Por exemplo, no processo Estados Unidos vs. Casey (137), o tribunal distrital ‘se negou a seguir o exemplo de outros tribunais que limitaram os depoimentos de especialistas, baseados nos relatórios de 2008 e 2009 da Academia Nacional de Ciências, e, em vez disso, se mantém fiel à tradição de permitir os depoimentos irrestritos de peritos qualificados em balística’.”
A história se repete em cada um dos campos remanescentes. O trecho abaixo, que também diz respeito à identificação de marcas deixadas por ferramentas, poderia igualmente se aplicar a quase qualquer área forense. Os elementos fundamentais são os mesmos: temos uma velha guarda de peritos forenses que defendem acirradamente os métodos que utilizam. Temos cientistas que declaram que aquilo que a velha guarda afirma estar apresentando aos jurados como sendo ciência não o é, porque não há pesquisas científicas que fundamentem seus métodos e análises. E temos o Judiciário que se arrasta atrás, com possivelmente um ou outro juiz aqui ou ali disposto a se manifestar, mas a maioria deles cegamente fiel aos precedentes e ao conceito de “finalidade” e, portanto, na ausência de evidências de DNA, pouco dispostos a cogitar da possibilidade de que os guardiões da ciência forense possam ter errado em suas análises, todos esses anos.
“Na situação atual, uma afirmação de certeza relativa à correspondência entre marcas deixadas por ferramentas possui o mesmo valor comprovatório que a visão de uma vidente: não reflete nada além da confiança não fundamentada do indivíduo em algo que ele acredita ser a verdade’.”
“Durante anos os peritos forenses protegeram seu campo, rejeitando as conclusões da comunidade científica externa. A categoria publicava um periódico que passava pela ‘revisão de pares’ realizada por outros membros de sua disciplina. Anunciado como o ‘periódico científico’ da AFTE, a revista só passou a ser amplamente disponível a partir de 2016. A disciplina da ciência forense alegava ser uma ‘ciência’, mas não se pautava pelos padrões normativos da ciência. A ‘Teoria de Identificação’ da AFTE ‘evidentemente não é uma teoria científica, algo que a Academia Nacional de Ciências define como “uma explicação abrangente de algum aspecto da natureza, explicação que seja fundamentada por um conjunto extenso de evidencias”. E, o que é mais importante, o método citado é circular.’
“Apenas recentemente, após dois relatórios da Academia Nacional de Ciências, é que alguns tribunais começaram a restringir os depoimentos enganosos. Muitos ainda não o fizerem. Assim, os tribunais ainda são competentes para lidar com pesquisas de valor falho. O único resultado positivo se deu no processo Williams vs. Estados Unidos (147), em que o juiz Easterly escreveu um parecer concordante: ‘Na situação atual, uma afirmação de certeza relativa à correspondência entre marcas deixadas por ferramentas possui o mesmo valor comprovatório que a visão de uma vidente: não reflete nada além da confiança não fundamentada do indivíduo em algo que ele acredita ser a verdade’.”
Inocentado post mortem
Mesmo a ciência dúbia relativa a incêndios criminosos – que já foi amplamente desmentida e julgada apropriadamente por pelo menos alguns tribunais, especialmente no Texas, após a publicidade que cercou a execução de Cameron Todd Willingham [executado em 2004 pela acusação de ter matado as três filhas e que agora, post mortem, pode ser inocentado] – ainda não foi enfrentada adequadamente. Ainda há jurisdições onde as teorias científicas desacreditadas sobre incêndios criminosos são aceitas em tribunais. E, pelo menos fora do Texas, mesmo em jurisdições que proibiram a aplicação das velhas teorias a processos novos, não foram feitos esforços para rever os inúmeros processos anteriores em que teorias falhas foram usadas e avaliar se elas ajudaram a colocar inocentes na prisão ou ao corredor da morte.
Na verdade, de todos os campos forenses dúbios que Giannelli analisa, apenas o da composição do chumbo de projéteis foi rejeitado finalmente pela maioria dos tribunais. O fato de esse e outros tipos de perícia terem sido aceitos originalmente, em primeiro lugar, já constitui uma prova contundente da incapacidade dos tribunais de distinguir entre ciência confiável e não confiável. Ou seja, mesmo que os tribunais tivessem autorizado o uso das perícias sem base, tivessem se dado conta disso anos depois, as tivessem proibido daquele momento em diante, tivessem revisto todos os processos passados para avaliar os erros que pudessem ter sido cometidos e libertar pessoas condenadas injustamente, mesmo assim poderíamos argumentar que o fato de os tribunais terem autorizado o uso das perícias duvidosas, em primeiro lugar, já mostraria que a Justiça deixou de cumprir seu dever. Seria possível argumentar convincentemente que confiar esse tipo de decisões a tribunais é uma má ideia, para começo de conversa.
Mas a situação é muito pior. O fato é que juízes continuam a deixar que os praticantes de outros campos deponham em processos, mesmo depois de seus campos terem sido desacreditados pela comunidade científica e mesmo depois de exames de DNA terem exonerado pessoas que foram condenadas, porque profissionais desses campos disseram aos jurados que apenas aquele réu poderia ter cometido o crime. Nos poucos campos em que os tribunais finalmente admitiram ter se equivocado, geralmente houve poucos esforços de revisão sistemática de todos os processos que podem ter sido afetados por esses erros. Tem ficado a cargo de advogados de defesa e ONGs de assistência jurídica localizar esses réus injustamente condenados e mover ações em nome deles.
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É claro que nada disso deveria nos surpreender. Não pedimos a juízes que realizem análises de regressão. Não pedimos que projetem sistemas de saneamento, que joguem beisebol ou componham sinfonias. Sabemos que eles não são qualificados a fazer nenhuma dessas coisas. Os juízes são treinados para realizar análises jurídicas. Ninguém cursa uma escola de direito para tornar-se cientista. Poucas pessoas estudam medicina ou fazem doutorado na área científica porque têm inclinação pelo direito. Os dois campos representam modos de pensar completamente diferentes, são regidos por epistemologias totalmente distintas e empregam dois métodos de análise quase completamente incompatíveis. No entanto, por algum motivo, decidimos que, quando se trata da questão crucial de avaliar a validade de um depoimento de perito que pode condenar uma pessoa à prisão ou à execução, devemos nos deixar reger pelo conhecimento científico de juízes.
O resultado tem sido catastrófico para os interesses da justiça, mas inteiramente previsível.