A Justiça de Minas Gerais atendeu a um pedido do Ministério Público do estado (MPMG) e concedeu uma decisão liminar para garantir a vontade de um adolescente de 12 anos e de sua mãe, em desacordo com o pai, para que o jovem seja submetido a um tratamento que interrompa sua puberdade. Isso tem como objetivo impedir a manifestação de características do sexo masculino, como o surgimento do pomo de adão, para que, a partir dos 16 anos, o garoto possa, se assim decidir, começar o tratamento hormonal e manifestar as características do sexo feminino.
O fundamento da decisão foi o direito à saúde. De acordo com laudos de uma equipe multidisciplinar da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), o garoto, de sexo biológico masculino, sofre de transtorno de identidade sexual e comporta-se de acordo com o gênero feminino. Segundo o MPMG, o adolescente chegou à Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e contou que, embora tenha sido registrado como homem, se comporta como mulher. O garoto pediu para usar os remédios prescritos para o caso e ter acompanhamento psicossocial, o que contrariava a vontade do pai. Ainda de acordo com o MPMG, o garoto disse “que ama o pai que, no entanto, por preconceito e desconhecimento dos seus problemas, negava-se a autorizar os tratamentos, fato que contribuiria para causar-lhe intenso sofrimento mental”.
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O juiz Lourenço Migliorini Fonseca Ribeiro destacou também o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, que é a base da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da Organização das Nações Unidas (ONU), incorporada ao direito brasileiro. De acordo com esse princípio, o melhor interesse da criança deve ser o norte de todas as leis, políticas públicas e decisões judiciais, ocasião em que cada caso é analisado em suas peculiaridades. Segundo o MPMG, o juiz afirmou que “não se pode conceber que o pai, de forma discriminatória, impeça ou prejudique os tratamentos e os acompanhamentos psicossociais indicados, com clara violação da dignidade humana e do livre desenvolvimento da saúde mental do adolescente”.
Em 2013, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou uma resolução, proposta pelo médico Lúcio Flávio Gonzaga Silva, recomendando a terapia hormonal de bloqueio da puberdade em pessoas com transtorno de identidade de gênero (TIG). O parecer recomenda ainda que “aos 16 anos, caso persista o TIG, a hormonioterapia do gênero desejado deve ser iniciada gradativamente”. O procedimento deve ser adotado por um local que “possibilite o diagnóstico correto e a integralidade da atenção de excelência, que garanta segurança, habilidades técnico-científicas multiprofissionais e suporte adequado de seguimento”. O parecer foi uma resposta a uma consulta do Núcleo de Combate à Discriminação da Defensoria Pública do estado de São Paulo.
Controvérsia
Para Antonio Jorge Pereira Júnior, doutor em Direito pela USP e professor da Universidade de Fortaleza, o parecer do CFM não é imparcial. “O parecer do CFM é bem favorável [ao tratamento] e não expõe com clareza as posições contrárias. Ele chega a dizer que o médico que recuse o tratamento deve ser questionado no campo ético e legal”, diz Pereira Júnior. “Um dos dramas é que não há lei proibindo ou regulando esse tipo de tratamento. Como o Judiciário não tem uma referência específica, o juiz vai pegar a posição do CFM, o que acaba tendo valor de regra na matéria”, avalia.
O professor destaca que o Judiciário não está tratando com a cautela necessário o assunto. “Na questão dos [alimentos transgênicos], aplicava-se o princípio da precaução: se eu não tenho todos os elementos para tomar uma decisão bem informada, é melhor não liberar. Mas na questão das pessoas transgênero, não está havendo essa precaução”, diz. “O problema é que o assunto virou tabu. Se um juiz decidisse contra [o pleito], ele seria enxovalhado pela mídia. O juiz é posto numa encruzilhada: ou se autoriza o tratamento, ou você condena a pessoa à infelicidade. É claro que será muito mais cômodo o juiz endossar a posição do CFM”, acrescenta.
O advogado Pablo Antonio Lago, doutor em Direito pela USP, ressalta que nem sempre o melhor interesse da criança coincide com os interesses dos pais. “Muitos pais querem que a criança se desenvolva naturalmente e viva dentro dos padrões de normalidade social, mas os interesses dos pais nem sempre serão um direito deles, em sentido forte. O que não se pode é negar a existência de crianças e adolescentes transgênero nem os danos que elas venham a sofrer se não fizerem o tratamento”, diz.
Lago observa que, diante das incertezas sobre o tema, os juízes devem levar em conta a avaliação das equipes multidisciplinares. “Nós não temos um padrão que nos permita decidir com certeza em todos os casos. Não existe um algoritmo que nos permita afirmar qual é a melhor resposta”, diz. “Como a matéria da transgeneralidade é relativamente nova, há controvérsias no meio médico. Hoje, a transgeneralidade ocupa o lugar que a homossexualidade ocupava há 40 anos”, afirma.
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