Fachada da prisão de Nova Orleans, no Sul dos EUA.| Foto: William Widmer/NYT

A maioria das pessoas acredita que qualquer conversa com o advogado permanecerá confidencial. Mas se ela acontecer no telefone da prisão de Nova Orleans, no Sul dos Estados Unidos, pode ser usada como prova de algum crime.

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Um preso que aguardava julgamento por acusações relacionadas a drogas mencionou a seu advogado que havia acabado de passar por um processo de desintoxicação. 

A ligação foi gravada na delegacia e sua declaração foi usada para provar que uma agulha que o detento carregava consigo no momento em que foi preso servia para o uso de drogas ilícitas, de acordo com seu advogado, Thomas Frampton. Ele foi condenado por posse de acessórios de drogas. 

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"Acabou sendo a evidência crítica", disse Frampton, que na época era defensor público em Nova Orleans e agora é professor na Faculdade de Direito de Harvard. Frampton opôs-se à inclusão desta prova, mas o juiz discordou. 

As conversas entre os réus e seus advogados sobre o caso normalmente são protegidas, desde que não haja nenhuma discussão sobre algum futuro crime, a perpetuação do atual ou em caso de atos fraudulentos. Essa privacidade, conhecida como privilégio entre advogado e cliente, é garantida pela Quinta Emenda da Constituição americana, contra a autoincriminação, e pela sexta emenda, o aconselhamento legal. 

Em alguns lugares, no entanto, pode ser difícil realizar essas conversas tão cruciais para a defesa do preso. 

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Nova Orleans é um deles, onde todas as chamadas feitas pelos presos da cadeia para o celular de seu advogado – e para quase qualquer outro lugar – são registradas e arquivadas em um sistema que pode ser acessado por agentes da lei. Como resultado, se um réu fala ao seu advogado sobre provas contra ele, ou sobre o tipo de acordo que ele estaria disposto a aceitar, pode estar sendo escutado por algum promotor. 

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Esta prática é destacada em um relatório do Court Watch Nola, grupo sem fins lucrativos que exige que delegados parem de gravar qualquer chamada entre os presos e seus advogados, ainda mais em uma cidade onde o sistema de justiça criminal já está esgarçado. Os defensores públicos de Nova Orleans estão sobrecarregados, com um dos maiores volumes de trabalho no país, no estado que tem a maior taxa de encarceramento dos EUA. 

O promotor do distrito, Leon A. Cannizzaro Jr., está sendo processado por ter utilizado falsas intimações para coagir testemunhas a falar, e enfrenta a acusação de que algumas testemunhas que estavam relutantes em cooperar foram parar na cadeia. 

"Onde o privilégio entre advogado e cliente é subvertido também ocorre a subversão da função do sistema legal pela busca da verdade", conclui o relatório. 

Assessores do delegado e do promotor local defendem a vigilância das ligações. Nas chamadas feitas da prisão, há um aviso que diz que a conversa está sujeita à gravação e monitoramento. Deste modo, as pessoas têm ciência que a conversa não é privada ou privilegiada, argumentam eles. No ano passado, o delegado adotou um sistema permitindo que ligações para o telefone fixo do advogado do detento não fossem gravadas, isso quando o advogado apresentar uma declaração indicando seu número de telefone. 

E, dizem eles, os advogados podem sempre ir até a cadeia para conversar pessoalmente com seus clientes. 

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Na opinião dos advogados de defesa criminal em Nova Orleans, no entanto, toda essa história é para esconder alguma coisa: a maioria daqueles que representam os presos são defensores públicos sobrecarregados que lidam com até 150 casos ao mesmo tempo. A noção de que podem, vez ou outra, dar um pulo na prisão para ver um cliente – ou mesmo a ideia de que estarão disponíveis no telefone fixo quando algum liga da cadeia – é absurda. 

Alguns advogados criminais largaram os telefones fixos há muito tempo e só usam celulares. 

"Eu não sei de um único advogado que ainda tenha um telefone fixo", disse Nandi Campbell, advogada criminalista na cidade. Alguns anos atrás, durante a audiência de um caso que ela defendia, Campbell se aproximou do promotor e fez uma proposta de acordo, embora ela e seu cliente tivessem expressado que preferiam aceitar uma sentença mais longa. 

"Ele me disse que sabia o número real que eu e meu cliente havíamos discutido. Foi assim que eu soube que ele estava escutando nossas ligações. Fiquei assustada", recorda-se Campbell. 

Clientes presos já estão em desvantagem quando se trata do planejamento de sua defesa. Os detentos têm menos possibilidades de ajudar os advogados a encontrar testemunhas ou a reunir outras informações. E como estão encarcerados e sem trabalho, enfrentam maior pressão para se declararem culpados, além de ter menos dinheiro para financiar um advogado particular. 

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Ken Daley, porta-voz de Cannizzaro, recusou-se a especificar a frequência com que os promotores ouvem as chamadas dos clientes nos celulares de seus advogados, mas afirmou que “qualquer chamada que esteja sob monitoramento e sendo gravada faz parte de um jogo justo". Daley disse que o aviso que é vinculado no início dessas chamadas dos detentos constitui "uma renúncia voluntária que interrompe o privilégio" para qualquer pessoa na ligação. 

"Se os defensores públicos estão reclamando que acham inconveniente visitar seus clientes na cadeia (eles têm acesso livre a qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana, inclusive) ou utilizar o protocolo de não monitoramento das chamadas (e, portanto, privilegiada) emitido pelo delegado, talvez estejam no trabalho errado", disse Daley em um e-mail. E acrescentou que é "extremamente raro" que as ligações da prisão entre cliente e advogado sejam usadas como prova. 

Especialistas dizem que o governo é obrigado a fornecer aos réus um acesso razoável às conversas privadas e privilegiadas com seus advogados, embora não seja precisamente definido o que seria um "acesso razoável". 

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Os procedimentos processuais similares aos de Nova Orleans enfrentaram desafios legais em outros lugares quando os tribunais decidiram que esses atos restringiam o acesso dos clientes a seus advogados de maneira nada razoável, disse Peter Joy, professor de Direito da Universidade de Washington que estudou monitoramento governamental de comunicações entre advogado e cliente. 

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"Caso contrário, você coloca um defensor público que já está sobrecarregado em uma sinuca de bico. Você só consegue discutir o que está acontecendo com seu cliente por telefone, e muito provavelmente por celular. Desta maneira ele será penalizado por ter sido aberto e franco nas discussões com o advogado", disse Joy. 

A maioria das prisões americanas não grava as ligações entre advogados e clientes, ou possui mecanismos para apagar essas chamadas sem que ninguém as ouça, acrescentou ele. 

Ainda assim, Nova Orleans não está sozinha. O Court Watch Nola fez um levantamento em outras 47 prisões por todo o país e descobriu oito que gravavam as ligações deste tipo: Salt Lake City; Minneapolis; Tulsa, Oklahoma; Boston; Frankfort, Kentucky; Columbia, Carolina do Sul; Annapolis, Maryland; e Concord, New Hampshire. 

Blake Arcuri, conselheiro geral do escritório do delegado do distrito da cidade, disse que é um dos poucos da Louisiana que permite que algumas chamadas não sejam gravadas. Arcuri reconheceu que existem inconvenientes na ida dos advogados de defesa à prisão para encontrar seus clientes, mas defendeu a política de monitoramento, citando preocupações acerca de intimidação e risco que as testemunhas possam enfrentar. Um advogado poderia entregar o celular para alguém que poderia receber instruções de um detento, disse ele. 

Dane Ciolino, que ensina Ética Jurídica e Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de Loyola New Orleans, disse que era "ridículo" a cadeia exigir que os advogados passassem por situações como essas, embora não fique claro esta seria uma violação do direito constitucional à atuação de advogados. 

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Segundo Ciolino, por conta das enormes cargas de trabalho e tempo limitado dos defensores públicos, seria o caso de dar "acesso razoável" a conversas privilegiadas entre preso e advogado em todas as chamadas. 

Agora, disse ele, quando os detentos ligam para seus advogados no celular, ao invés de discutir provas ou estratégia de defesa, eles quase fazem o oposto. 

"Isso coloca o advogado de defesa em uma posição desconfortável", concluiu Ciolino. 

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