Prevista por lei para a escolha dos chefes de todos os Ministérios Públicos do país – os 27 estaduais, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério Público Militar (MPM) –, exceto o Ministério Público Federal (MPF), a lista tríplice se tornou um dos temas mais polêmicos da campanha para a sucessão na Procuradoria-Geral da República (PGR).
Há dois tipos de críticas ao procedimento: as que se restringem à lista deste ano e as que compreendem todo o processo. As primeiras foram vocalizadas pelo atual vice-procurador-gera da República, Luciano Mariz Maia, indicado pela atual PGR, Raquel Dodge, que busca nos bastidores uma recondução ao cargo, mesmo não tendo se candidatado à lista tríplice. As críticas ao procedimento em si foram expressadas pelo subprocurador-geral Augusto Aras, que se lançou candidato à PGR “fora da lista”.
Neste ano, concorrem à lista os procuradores regionais Blal Dalloul, José Robalinho Cavalcanti, Vladimir Aras e Lauro Cardoso, e os subprocuradores-gerais Luiza Frischeisen, José Bonifácio de Andrada, Paulo Eduardo Bueno, Antonio Carlos Fonseca Silva, Nívio de Freitas e Mário Bonsaglia. Membros do MPF votam nesta terça-feira (18), mas o presidente Jair Bolsonaro (PSL) não é obrigado a respeitar o resultado.
Críticas à lista tríplice de 2019 refletem disputas no MPF
O atual vice-procurador, Luciano Mariz Maia, em entrevista ao jornal O Globo, no mês passado, fez críticas pesadas à Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR), que organiza a lista desde 2001, e afirmou que, se Raquel Dodge concorresse este ano, estaria “legitimando ilegalidades”. Em 2017, Raquel assinou um documento com outros candidatos cobrando do então presidente Temer respeito pelos nomes indicados.
Segundo Maia, neste ano, a ANPR estaria contrariando a lei, ao permitir a candidatura de procuradores (primeira instância) e procuradores regionais (segunda instância) e teria jogado fora “sua memória”, ao excluir aposentados dos habilitados a votar. O vice-procurador também acusou o ex-presidente da ANPR, José Robalinho Cavalcanti, que concorre à lista tríplice, de ter manobrado para alterar as regras em benefício próprio, já que Cavalcanti é procurador regional da República.
Em entrevista à Gazeta do Povo, Cavalcanti negou as afirmações de Maia. Segundo o ex-presidente da ANPR, as mudanças nas regras foram aprovadas em assembleia da categoria, por 90% dos cerca de 850 votantes. Cavalcanti também afirmou que procuradores regionais sempre puderam ser candidatos e explicou que, até 2009, votavam todos os membros da carreira na ativa, associados ou não à ANPR, regra que foi modificada pela diretoria de então, quando passaram a votar apenas associados à ANPR, na ativa ou aposentados. Cerca de 8% dos procuradores não são associados à ANPR. As mudanças retomaram as regras anteriores à 2009.
Em relação à candidatura de procuradores e procuradores regionais, a questão política se mistura à jurídica. Embora a Constituição só limite a escolha do presidente a procuradores membros da carreira e maiores de 35 anos, a Lei Complementar 75/1993, que regula o Ministério Público da União (MPU), estabelece que “as funções do Ministério Público Federal junto aos Tribunais Superiores da União, perante os quais lhe compete atuar, somente poderão ser exercidas por titular do cargo de Subprocurador-Geral da República”. Se o PGR atua perante o STF, que é um tribunal superior, então o cargo só poderia ser ocupado por um subprocurador-geral da República.
O raciocínio, que parece claro, tem algumas complicações. Primeiro, é lugar comum da interpretação jurídica que a Constituição não deve ser interpretada à luz da lei, mas a lei, à luz da Constituição – que não estabelece a restrição. Segundo, a mesma lei complementar exige que uma série de cargos sejam ocupados por subprocuradores-gerais, mas não faz a mesma exigência quando fala do PGR. Terceiro, nos 27 ministérios públicos estaduais, promotores (primeira instância) só são vedados na chefia da instituição em São Paulo, Roraima e Minas Gerais, estados em que a lei prevê explicitamente o impedimento.
A questão, que era teórica, virou política em março deste ano, quando o Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF) rejeitou um pedido de maio de 2016, feito pelos procuradores Bruno Calabrich e Pablo Barreto, apoiado pela ANPR, para que regulamentasse institucionalmente a lista tríplice. Por maioria que incluiu Raquel Dodge, o colegiado decidiu que não tinha competência para regulamentar o procedimento – mas o relator da matéria era Luciano Mariz Maia e, em seu voto, o vice-procurador-geral defendeu a tese de que apenas subprocuradores podem ser PGR.
A imprensa chegou a repercutir que o CSMPF havia, de fato, decidido isso, mas prevaleceu a tese de que, uma vez que o órgão havia decidido não ter competência para regulamentar a lista, ele não poderia restringir a escolha aos subprocuradores. À época, a PGR confirmou o entendimento à Gazeta do Povo, por meio da assessoria de imprensa. Uma eventual disputa sobre este ponto, no entanto, só poderia ser definitivamente resolvida pelo Poder Judiciário.
Naquele momento, nomes como o do procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, e Ailton Benedito, conservador ativo nas redes sociais, apareciam como cotados para o cargo de PGR, e a maioria da carreira viu a manifestação de Maia como um recado político da cúpula em direção às bases.
A disputa se acirrou: além da discussão jurídica, desafetos de Raquel Dodge lembraram que ela nomeou como procurador-geral de justiça militar Jaime de Cassio Miranda, que é procurador regional de justiça militar, e não subprocurador. A estrutura do MPM, na lei, espelha a do MPF: vários cargos têm exercício explícita quanto a subprocuradores, mas o da chefia da instituição não traz essa exigência.
Também veio à tona uma manifestação da atual PGR na ADI 5704, de outubro do ano passado. A ação questionava um dispositivo da Constituição Estadual de Minas Gerais que limitava a lista tríplice para a escolha do Procurador-Geral de Justiça do estado aos procuradores de Justiça, excluindo os promotores.
Embora tenha se manifestado pela inconstitucionalidade por razões de competência legal, Dodge afirmou que “isso restringe o universo de candidatos e fragmenta a carreira, pois cria vantagem adicional para o cargo de Procurador de Justiça e viola a prerrogativa do Governador de escolher o futuro chefe do MP estadual, a partir de lista tríplice formada amplamente”.
Procedimento de escolha desperta críticas e defesas
Há quem critique o próprio procedimento da lista tríplice, independentemente das disputas do processo eleitoral deste ano. O subprocurador-geral Augusto Aras é um desses: ele acusa a lista de favorecer que um grupo de procuradores tome conta do MPF, beneficie aliados e prejudique desafetos.
“Estive no Conselho Superior por dois biênios e percebi que essa questão da lista se reflete de forma gravosa nos processos administrativos disciplinares. Para quem faz parte do establishment interna corporis, praticamente não existe punição adequada. Ou melhor, não existe processo nem julgamento adequados. Inversamente, para quem não faz parte do establishment, existem os rigores da lei”, disse em entrevista ao portal especializado Conjur.
“O modelo que vem sendo replicado pelo MPF está longe de ser ‘sindical’ ou ‘corporativo’, adjetivos que críticos desavisados costumam empregar para referir-se à lista tríplice”, rebate o procurador regional Vladimir Aras. Segundo procurador, o sistema é previsto para 29 MPs “porque serve à democracia interna e, no campo externo, presta tributo à transparência, ao fazer com que os postulantes ao cargo submetam-se a intenso escrutínio público, antes da indicação pelos governadores ou pelo presidente da República”, afirma.
“Isso não se faz em proveito de corporativismo, mas pela saudável razão de poder-se designar para a cabeça do órgão uma liderança que encarne o ethos institucional, que defenda sua autonomia e que porte os valores positivos que ao Ministério Público cumpre defender”, diz ainda Vladimir.
Em manifestações à imprensa e durante os debates promovidos pela ANPR, todos os candidatos à lista tríplice têm feito defesas semelhantes do instrumento, mas isso não quer dizer que não haja espaço para melhorias. O subprocurador Paulo Eduardo Bueno, que concorre à lista tríplice e elogia o procedimento, lembra que todos os sistemas têm vantagens e defeitos.
“A eleição para a lista tem falhas, como, por exemplo, alguns candidatos percorreram o país inteiro, outros não tiveram essa possibilidade, ou seja, não há controle de gastos, por outro lado, há candidatos que ocuparam cargos de muita visibilidade, como o de secretário-geral, concorrendo com outros que passaram a vida só com processos”, pontua Bueno.
O subprocurador também tenta se afastar do clima de polarização: elogia os esforços da ANPR em “conceder a todos os candidatos condições igualitárias para participação nos debates e discutir o modelo de forma democrática e transparente”, mas ressalva que não concorda com “as críticas que tem sido dirigidas contra a atual procuradora-geral pela não participação na lista tríplice, porque que respeito a sua posição e de muitos cegas que também são contrários a esse sistema. Acho que a PGR tem agido com prudência, equilíbrio e bom senso e jamais utilizou a instituição para fazer marketing pessoal”.