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Em 16 de março de 2016, a ex-presidente Dilma Rousseff nomeou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ser ministro chefe da Casa Civil. No mesmo dia, às 13h32min, uma intercepção da Polícia Federal captou uma conversa entre ambos que ficou famosa pela referência ao “Bessias” e ao termo de posse assinado. No início da noite, o juiz Sergio Moro divulgou o áudio da conversa, embora sua ordem para interromper as gravações tivesse sido proferida às 11h13min daquela manhã. A conversa se alastrou como pólvora pelo país. Dilma parecia estar querendo livrar Lula das garras de Moro por meio do foro privilegiado. Dois dias depois, no entanto, quando o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu uma liminar suspendendo a nomeação de Lula para o cargo, ele teve a oportunidade de contornar a discussão sobre a legalidade dessa prova.
Mendes fiou-se na nota oficial divulgada pelo Palácio do Planalto no mesmo dia 16, quase à meia-noite, confirmando a existência e o teor da conversa e entendeu que se tratava de uma confissão. Porém, a rigor, pelo raciocínio que construiu na liminar, nem isso seria necessário para impedir a posse de Lula. O conceito que fundamentou a decisão de Gilmar Mendes foi o de desvio de finalidade, maturado por juristas e acolhido na Lei 4.717/1965, a chamada Lei da Ação Popular, que diz que é nulo o ato administrativo praticado com desvio de finalidade e prevê essa hipótese “quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”. A nomeação para um cargo, a fim de conceder foro privilegiado, seria um desses casos.
Leia a análise do caso de Cristiane Brasil.
A tese havia sido defendida cinco dias antes, em um artigo de autoria do desembargador aposentado Vladimir Passos de Freitas, que circulou amplamente nos meios jurídicos e foi inclusive citado por Mendes em seu voto. Embora Freitas tenha defendido que seria necessário sempre analisar as circunstâncias para saber se o administrador de fato pratica o ato com uma finalidade diversa da que se espera do interesse público, Mendes chegou a ir além, ensaiando que, em casos como o de Lula, bastaria o fato objetivo da mudança de foro ocasionada pela indicação para caracterizar o desvio de finalidade.
“É muito claro o tumulto causado ao progresso das investigações, pela mudança de foro. E ‘autoevidente’ que o deslocamento da competência é forma de obstrução ao progresso das medidas judiciais”.
“É muito claro o tumulto causado ao progresso das investigações, pela mudança de foro. E ‘autoevidente’ que o deslocamento da competência é forma de obstrução ao progresso das medidas judiciais. Não se nega que as investigações e as medidas judiciais poderiam ser retomadas perante o STF. Mas a retomada, no entanto, não seria sem atraso e desassossego. O tempo de trâmite para o STF, análise pela PGR, seguida da análise pelo relator e, eventualmente, pela respectiva Turma, poderia ser fatal para a colheita de provas, além de adiar medidas cautelares”, escreveu o ministro do STF.
“A rigor, assim como nos precedentes acerca da manutenção da competência do Tribunal em caso de renúncia em fase de julgamento, não seria necessário verificar os motivos íntimos que levaram à prática do ato. A simples nomeação, assim como a renúncia, demonstram suficientemente a fraude à Constituição”, completou. Mendes fez menção à renúncia pelo precedente que o STF estabeleceu em 2010, no julgamento da Ação Penal 396, o caso Natan Donadon, que renunciou ao cargo de deputado federal na véspera de seu julgamento para tentar mandar seu processo de volta para a primeira instância.
Moreira Franco
Onze meses depois, o ministro Celso de Mello discordou frontalmente dessa interpretação. Depois de uma guerra de liminares em instâncias inferiores – muitas das quais citando o precedente de Gilmar Mendes – para impedir a posse de Moreira Franco como Secretário-Geral da Presidência, com status de ministro e, portanto, com foro privilegiado, Mello acolheu as ações do PSOL e da Rede Sustentabilidade para então lhes negar o pedido e manter Moreira Franco no cargo. Uma decisão criativa do TRF-2 chegou a manter a nomeação de Franco, mas retirando-lhe o foro. Para Mello, no entanto, a prerrogativa de foro não representaria, por si só, obstrução ou paralisação da Justiça.
“Não tem sentido algum sustentar-se que o deslocamento da competência penal (...) para o Supremo Tribunal Federal represente inconcebível causa de impunidade, ou motivo de absurda frustração da investigação criminal, ou, ainda, fator de sua indevida procrastinação”
“A nomeação de alguém para o cargo de Ministro de Estado, desde que preenchidos os requisitos previstos no art. 87 da Constituição da República, não configura, por si só, hipótese de desvio de finalidade (que jamais se presume), eis que a prerrogativa de foro – que traduz consequência natural e necessária decorrente da investidura no cargo de Ministro de Estado (CF, art. 102, I, ‘c’) – não importa em obstrução e, muito menos, em paralisação dos atos de investigação criminal ou de persecução penal”, anotou Mello. “[A] mera outorga da condição político-jurídica de Ministro de Estado não estabelece qualquer círculo de imunidade em torno desse qualificado agente auxiliar do Presidente da República”, completou.
“Não tem sentido algum sustentar-se que o deslocamento da competência penal de qualquer feito (inquérito policial ou processo judicial) para o Supremo Tribunal Federal represente inconcebível causa de impunidade, ou motivo de absurda frustração da investigação criminal, ou, ainda, fator de sua indevida procrastinação”, escreveu ainda, em nítida interlocução com a decisão anterior de Mendes, embora a liminar de 2016 não seja citada por Mello.
O artigo 37 da Constituição, que prevê os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, também pairava sobre o debate. Mello nem sequer levantou essa questão, mas Gilmar Mendes, na decisão do caso Lula, analisou as exigências dessa norma da Constituição. Segundo o ministro, “[o] princípio da moralidade pauta qualquer ato administrativo, inclusive a nomeação de Ministro de Estado, de maneira a impedir que sejam conspurcados os predicados da honestidade, da probidade e da boa-fé no trato da ‘res publica’”.
“Apesar de ser atribuição privativa do Presidente da República a nomeação de Ministro de Estado (art. 84, inciso I, da CF), o ato que visa o preenchimento de tal cargo deve passar pelo crivo dos princípios constitucionais, mais notadamente os da moralidade e da impessoalidade”, escreveu ainda Mendes, aderindo à tese que seria usada, quase dois anos depois, para impedir a posse de Cristiane Brasil.
Interregno
Gilmar Mendes não é o único a flertar com essa posição. Em 2008, o Supremo aprovou, por unanimidade, uma de suas Súmulas Vinculantes mais famosas, a de número 13, que proíbe o nepotismo. “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”, diz o texto aprovado.
A Súmula foi aprovada a partir do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 12, que procurava resolver a controvérsia que se estabelecera sobre a Resolução 07/2005, editada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e que proibia o nepotismo no Poder Judiciário. Nessa ocasião, o ministro Ayres Britto, relator da ADC 12, escreveu que “a interpretação [dos incisos do artigo 37] não pode se desapegar dos princípios que se veiculam pelo caput [cabeça] do mesmo art. 37. Donde o juízo de que as restrições constantes do ato normativo do CNJ são, no rigor dos termos, as mesmas restrições já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade”.
“O STF, mesmo não tratando do assunto específico de nomeação de ministros, também sinalizou, na sua agenda pós-mensalão de moralização da política, a possibilidade de o Judiciário intervir na nomeação para cargos políticos, o que era, até então, algo inviolável na doutrina jurídica”.
Dois anos depois, em 2008, a partir do julgamento de um Recurso Extraordinário relatado pelo ministro Ricardo Lewandowski, o tribunal resolveu estender a proibição para os demais poderes do Estado, a partir do reconhecimento de que “[a] vedação do nepotismo não exige a edição de lei formal para coibir a prática” e que essa vedação “decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal”.
Ainda que nada sobre isto conste na ementa do acórdão, o tribunal sedimentou a seguir a compreensão de que a vedação do nepotismo – uma decorrência, na visão do STF, da interpretação do artigo 37 – não se aplicava, em regra, aos cargos de nomeação política. Já no julgamento de 2008, o ministro Ayres Britto afirmava que “quando o art. 37 refere-se a cargo em comissão e função de confiança, está tratando de cargos e funções singelamente administrativos, não de cargos políticos”, o que pareceria excluir a incidência do artigo 37 à indicação de Cristiane Brasil para o Ministério do Trabalho.
Entre idas e vindas, porém, vários ministros aderiram à tese de que a proibição pode ser aplicada mesmo a indicações políticas, em hipóteses de “fraude à lei” ou “nepotismo cruzado”, analisadas sempre concretamente.
Em 2014, o ministro Luís Roberto Barroso – no julgamento liminar da Reclamação 17.627, que discutia a nomeação do irmão de um prefeito para uma secretaria de um município fluminense – alargou essas hipóteses ao ressalvar, além das anteriores, “as situações de inequívoca falta de razoabilidade, por ausência manifesta de qualificação técnica ou de inidoneidade moral”.
Barroso indeferiu o pedido, manteve a nomeação, mas disse que poderia ter feito o contrário. Embora a discussão tenha se dado na esfera da proibição do nepotismo, trata-se de mais um caso em que a aplicação do princípio da moralidade, inscrito no artigo 37 da Constituição, está progressivamente avançando sobre a esfera de discricionariedade do Poder Executivo.
“O STF, mesmo não tratando do assunto específico de nomeação de ministros, também sinalizou, na sua agenda pós-mensalão de moralização da política, a possibilidade de o Judiciário intervir na nomeação para cargos políticos, o que era, até então algo inviolável na doutrina jurídica", avalia Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional da FGV-SP e um dos coordenadores do Supremo em Pauta.
Cristiane Brasil
Foi exatamente o que fez o juiz federal Leonardo da Costa Couceiro, da 4ª Vara Federal de Niterói, que viu “flagrante desrespeito à Constituição Federal no que se refere à moralidade administrativa, em seu artigo 37, caput, quando se pretende nomear para um cargo de tamanha magnitude, Ministro do Trabalho, pessoa que já teria sido condenada em reclamações trabalhistas, condenações estas com trânsito em julgado”. Couceiro até reconheceu que “não compete ao Poder Judiciário o exame do mérito administrativo em respeito ao Princípio da separação dos Poderes”, mas ressalvou que ele não é absoluto e que o juiz deverá agir “sempre que a conduta praticada for ilegal, mais grave ainda, inconstitucional, em se tratando de lesão a preceito constitucional autoaplicável”.
Fernando Dias Menezes, professor de Direito Administrativo da USP, esclarece os termos da discussão. “Não existe um ato que é político ou um ato que é administrativo. O ato é o ato jurídico tal como ele é: tem aspectos políticos e tem aspectos passíveis de um controle administrativo. Não faz parte da nossa tradição jurídica essa distinção, qualificando atos puramente políticos, como se fossem atos insuscetíveis de controle judicial, já que, pelo inciso XXXV do artigo 5º da Constituição, nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída de apreciação do Poder Judiciário – ou seja, não existe aquele ato que sequer passa da porta do Judiciário”, diz. “Outra coisa é, uma vez levando o ato a juízo, o que o juiz deve controlar daquilo que está sendo questionado”, completa.
“Os ministros do STF não têm interesse em prezar pela coerência e pela consistência, porque eles não querem se autolimitar: eles querem ter a liberdade de, em cada crise, poder responder pontualmente e de acordo com a avaliação de conjuntura deles, o que, na verdade, é uma irresponsabilidade”
Menezes, no entanto, acha que o juiz foi longe demais no controle que exerceu. “O princípio da moralidade é tão flexível que, se os juízes quiserem usá-lo para controlar tudo aquilo que eles consideram imoral, não haverá mais Estado de Direito, no sentido de haver uma regra de direito conhecida de antemão”, diz. “A moralidade deve ser entendida nos limites jurídicos: se houvesse uma lei aplicando o princípio da moralidade, proibindo, por exemplo, pessoas que tenham condenação judicial de ser ministros, aí haveria um parâmetro jurídico de controle”, opina.
Para Egon Bockmann, professor de Direito Público da UFPR, a decisão foi correta. “Aqui não se trata de um desvio de finalidade, mas de um ato presidencial carregado de imoralidade”, afirma. “Se a moralidade precisar de uma previsão legal específica, você está inibindo a aplicação do artigo 37, suprimindo sua eficácia máxima. Então teria palavra sobrando na Constituição. Se você precisar de lei para aplicar, então a moralidade se transforaria apenas num mero agravante da ilegalidade”, diz.
“Há hipóteses em que é perfeitamente possível controlar a moralidade pura e simples de atos administrativos e essas hipóteses são aquelas em que não haja margem para dúvidas de que a conduta foi contrária ao que se pode entender por moralidade pública. É moralmente defensável a nomeação de alguém como ministro do Trabalho se já há decisões judiciais que confirmam que esse alguém descumpre as normas trabalhistas? Ela pode ser a melhor negociadora do mundo, mas outra coisa é ela ter envergadura moral para ocupar um Ministério que trata de direitos os quais ela cotidianamente desrespeita”, opina.
Os magistrados também se dividem sobre o caso. No mesmo dia em que Couceiro suspendeu a posse, a Ana Carolina de Carvalho, da 1.ª Vara Federal de Magé, havia negado o pedido, afirmando que “não se trata de caso apto a ensejar a ingerência desse magistrado em temas afetos a própria forma de funcionamento da República”. Ponderou ainda que, embora Cristiane Brasil seja inconveniente para o cargo, não era “possível que a disfunção no funcionamento de um dos poderes possa ser substituída por decisões judiciais. Caso contrário, seria possível a impugnação de quaisquer nomeações por desafetos políticos ou por questões ideológicas, o que criaria grande insegurança na administração da coisa pública”, ponderou.
A rigor, nem os ministros do STF têm essa clareza sobre a questão, embora Lula tenha sido impedido de assumir e Moreira Franco, não, mesmo os casos sendo parecidos. Em nenhum dos casos o plenário se manifestou, mesmo sendo ambos graves. A discussão sobre os limites da incidência dos princípios do artigo 37 vem se arrastando, sem nenhuma solução sobre qual, afinal, é o limite das intervenções do Judiciário nas prerrogativas do Executivo.
“Não me incomoda e não me espantaria que houvesse uma mudança de referência teórica e que o Judiciário pudesse estabelecer mesmo controle sobre nomeações políticas”, diz Glezer. “O que me incomoda é que isso seja mal feito: sem uma regra clara e sem coerência e consistência: do jeito que está, as regras não estão claras e tudo é feito sem consistência. Os casos do Lula e do Moreira Franco ilustram isso e o caso da Cristiane Brasil, ao chegar ao STF, pode reforçar essa tendência e dar uma oportunidade de virada ao Supremo”, analisa.
Mas Glezer, que vive de estudar o tribunal, está cético. “Os ministros do STF não têm interesse em prezar pela coerência e pela consistência, porque eles não querem se autolimitar: eles querem ter a liberdade de, em cada crise, poder responder pontualmente e de acordo com a avaliação de conjuntura deles, o que, na verdade, é uma irresponsabilidade”, afirma.
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