Todos os oratórios construídos em praças públicas da cidade do Rio de Janeiro (RJ), instalados após o advento da Constituição de 1988, devem ser retirados. Novos altares do gênero também não pode ser erguidos. É o que pede o Ministério Público do estado (MP-RJ) em ação civil pública ajuizada contra o município. A justificativa do órgão é que as instalações ferem a laicidade do Estado, prevista constitucionalmente.
O que motivou a ação, de acordo com o MP-RJ, foi a construção, em 2017, de um oratório dedicado à Nossa Senhora Aparecida na Praça Milton Campos, no Leblon, em comemoração aos 300 anos do aparição da imagem da santa no Rio Paraíba. O altar, segundo o Ministério Público, deveria permanecer no local em caráter temporário, mas ainda está lá.
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A Paróquia Santos Anjos do Leblon afirma, em nota publicada no Facebook, que na ocasião da construção foram coletadas mais de mil assinaturas em abaixo-assinado, sendo que a autorização para a instalação do oratório foi publicada no Diário Oficial do Município. Fiéis se reúnem todas as terças-feiras, pela manhã, para rezar o terço na praça.
“A defesa da laicidade do estado do Rio de Janeiro é, acima de tudo, uma defesa do ethos democrático do próprio Estado Brasileiro”, escreveu o promotor de Justiça Pedro Rubim Fortes na Ação Civil Pública. Caso o município não cumpra a determinação, o MP-RJ pede a aplicação de multa diária de, no mínimo, R$ 20 mil.
A paróquia diz que vai “lutar até o fim na Justiça” contra o pedido do MP-RJ.
Estado laico ou ateu?
O embasamento do pedido do Ministério Público está no inciso I do artigo 19 da Constituição Federal, que traz que:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Professora da Faculdade de Direito da USP e sócia do Nelson Wilians & Advogados Associados, Maristela Basso explica o Estado laico é aquele que não tem uma religião oficial e, enquanto entidade abstrata, congrega todas as manifestações religiosas.
“O povo é livre para se manifestar religiosamente, desde que de modo pacífico, que mantenha a moralidade e a ordem pública”, afirma. Seria diferente, portanto, de um Estado ateu, que não admite a figura de um deus, não permitindo a presença de imagens ou manifestações religiosas do povo. Para Maristela, seria um “retorno brutal ao estado primitivo”.
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No mesmo sentido, o advogado constitucionalista Adib Abdouni afirma que o que a Administração não pode fazer é priorizar uma religião. Para ele, a simples presença de oratórios católicos em locais públicos não ofenderia a laicidade do Estado, pois a construção do altar na Praça Milton Campos, por exemplo, não foi autorizada em detrimento de outros símbolos religiosos.
Para Maristela Basso, o direito à livre manifestação religiosa caminha ao lado de outro princípio fundamental preconizado na Constituição de 1988, que é a liberdade de expressão.
“É uma afronta do Ministério Público que, diante de tantos problemas que temos que resolver e que estão sob o guarda-chuva do órgão, proponha-se a uma ação que vai contra os anseios da população e ainda toma tempo. O Ministério Público poderia se dedicar a questões constitucionais que estão abandonadas, como a proteção dos idosos, crianças, e a situação dos encarcerados. [A ação civil pública] demonstra uma falta de cultura e conhecimento do órgão, que não consegue visualizar a diferença entre Estado ateu e laico”, aponta.
Convicções da Gazeta do Povo: Liberdade de expressão
Por outro lado, a professora titular de Direito Administrativo da PUCPR Vivian Lopez Valle, especializada em Direito Público, concorda com o posicionamento do MP-RJ. No seu entendimento, o Estado não está proibido de promover espaços de espiritualidade, desde que não haja a promoção de uma religião específica, com símbolos que a identifiquem.
“O Estado é laico, então deve respeitar quem acredita e quem não acredita em Deus. Não vejo problema em haver espaços públicos de oração, meditação, desde que não vinculados a nenhuma crença. Nesse caso [do Rio de Janeiro], é um estímulo à religião católica, ainda que grande parcela da população brasileira seja católica”, avalia. “Se fosse um espaço sem imagens, não haveria problema. O problema é promover uma religião específica, pois aí deveria promover todas”, reforça.
Vivian lembrou do apertado julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a oferta de ensino religioso confessional em escolas públicas, que também tinha como questão central o Estado laico. Por 6 a 5, os ministros entenderam que essa modalidade de ensino não fere a laicidade, desde que ofertada, como já ocorria, em caráter facultativo.
Praça da Bíblia
O caso dos oratórios no Rio de Janeiro é similar envolvendo a polêmica da Praça da Bíblia, em Praia Grande (SP). Em agosto de 2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) condenou a prefeitura do município paulista a remover inscrições bíblicas de um monumento da cidade. A ação foi ajuizada pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea).
“Não se questione que o Estado laico não seja um Estado que deva reprimir as manifestações religiosas; apenas não deve subsidiá-las, posto que, se assim o fizesse, deveria fazer a todas as religiões, uma vez que é constitucionalmente proibida a escolha de uma só. O pluralismo e a liberdade de crença, portanto, nada tem de inconciliáveis”, escreveu o desembargador Marcelo Semer na decisão.
Especialistas consultados pela reportagem da Gazeta do Povo à época criticaram a decisão do TJ-SP. Marcelo Azevedo, estudioso na temática da liberdade religiosa e professor da Faculdade de Direito de Sorocaba (Fadi), disse que quando um princípio como o do Estado laico vai ser aplicado na prática, é preciso analisar todo o contexto da situação, sendo que o contexto brasileiro, de cultura, história e simbologia, é marcadamente cristão. Na ocasião, apontou que a cidade de Praia Grande também tem uma gigantesca estátua de Iemanjá, celebrada pelas religiões de matriz africana, que nunca foi considerada ofensiva.
Já o advogado Odacyr Prigol, da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-PR, lembrou que a laicidade pressupõe que o Estado não tenha uma religião oficial, não podendo favorecer qualquer tipo de denominação religiosa. Essa neutralidade, contudo, não significa que o Estado deva ser ateu.
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