A norma que acaba de ser aprovada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) sobre a forma como deve ser o atendimento psicológico de transexuais é alvo de uma investigação do Ministério Público Federal (MPF) de Goiás. O procurador Ailton Benedito de Souza determinou a abertura de um procedimento preparatório para apurar possíveis ilegalidades da Resolução 1/2018 do CFP (leia a íntegra do documento), datada do último dia 29 de janeiro.
O ofício ao CFP foi enviado nesta quinta-feira (1º.) e a entidade terá um prazo de dez dias, a partir da data de recebimento do documento, para responder qual seria “a base fática, científica e jurídica” que sustenta a resolução. Para o procurador, alguns trechos da norma podem impedir o direito fundamental ao livre exercício da profissão e, portanto, seriam inconstitucionais por ferir a o inciso XIII ao artigo 5º da Constituição Federal.
O despacho do procurador traz em destaque o artigo 8º da Resolução 1/2018 que proíbe aos psicólogos qualquer tipo de terapia, “sob uma perspectiva patologizante”, que visem a “conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero das pessoas transexuais e travestis”. Para o procurador, porém, não só esse dispositivo, mas todo o texto é preocupante por ser ambíguo em várias partes e ter um caráter abrangente, que dá margem para diversas interpretações sobre o que seria considerado ou não preconceito, entre outros termos adotados.
“São vários os questionamentos sobre a resolução. Além do aspecto da própria terapia que eventualmente alguma pessoa insatisfeita com sua condição, seja ela qual for, receba de um psicólogo, há vedações, por exemplo, que os psicólogos participem de atividade de divulgação, de programa de televisão, de rádio, de uma determinada forma de ver a questão”, avalia. “Estamos dando oportunidade ao CFP para se pronunciar qualificadamente e convencer de que não há cerceamento da livre atividade profissional e produção científica”.
Além disso, o texto da resolução coloca obstáculos ao estudo e à discussão dos desafios de gênero, aponta o procurador. “O texto impõe uma definição do que seja identidade de gênero por meio de um ato normativo, e o psicólogo não pode desenvolver nenhuma ciência ou conhecimento diferente do jeito que está posto, ele tem de aceitar e pronto”, diz. “Não é admissível que um ente público, como o Conselho de Psicologia, se preste a referendar uma pauta a partir apenas de uma forma de ver a questão”.
Militância e “cura gay”
O procurador concorda que há psicólogos que prometem fazer tratamentos que não são possíveis, como a “cura gay”. Mas, segundo ele, esses casos já estão sendo combatidos um a um pelo CFP. Para ele, a resolução utiliza o combate à “cura gay” como justificativa para impedir qualquer opinião dissonante sobre o tema de identidade de gênero.
“O Conselho, dentro da sua ordem jurídica, tem plenas condições de atuar em caso de infringência da ética profissional de algum psicólogo. O problema surge quando a pretexto de combater práticas isoladas deste ou daquele profissional se edita uma resolução com extensão absurda, no sentido de praticamente entender qualquer coisa dentro do clichê de ‘cura gay’, para motivar a militância”, afirma.
“Qualquer iniciativa, qualquer pessoa, qualquer opinião que seja discrepante dessa militância, recebe o rótulo de ‘cura gay’. Significa que essas pessoas, a partir desse rótulo, têm de ser banidas do espaço público, do espaço de discussão e inclusive da profissão”, lamenta.
Procurado, o Conselho Federal de Psicologia informou que, como ainda não foi notificado, não faria nenhum pronunciamento.
Tema controverso
No dia 15 de dezembro de 2017, a Justiça determinou que o CFP não interpretasse a Resolução 1/1999 de modo a impedir psicólogos de atenderem pacientes que, por vontade própria, buscarem orientações para tratar transtornos psicológicos ligados à homossexualidade egodistônica. A decisão atendeu parcialmente ao pedido de uma Ação Popular formulada por um grupo de psicólogos, que pedia a suspensão dos efeitos da norma.
À época, o CFP informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que iria recorrer da decisão, afirmando que “em nenhum momento da sua história, impediu ou restringiu o atendimento psicológico a pessoas de qualquer orientação sexual. O limite ético desses atendimentos se dá na proibição de práticas relacionadas à reorientação sexual e a violação da dignidade das pessoas”. A entidade refutou também a alegação de que a norma impediria o “avanço de pesquisas científicas na área da sexualidade”.
*** Leia a íntegra da resolução do CFP:
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA
RESOLUÇÃO Nº 1, DE 29 DE JANEIRO DE 2018
Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis.
O CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, no uso de suas atribuições legais e regimentais, que lhe são conferidas pela Lei n.º 5.766, de 20 de dezembro de 1971, e pelo Decreto nº 79.822, de 17 de junho de 1977;
CONSIDERANDO os princípios fundamentais previstos no Art. 1º da Constituição Federal de 1988, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, e o Art. 5º, que dispõe que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”;
CONSIDERANDO o Art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, o qual enuncia: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”;
CONSIDERANDO os Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero presentes na Convenção de Yogyakarta, de novembro de 2006;
CONSIDERANDO a Declaração de Durban – Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata –, que reafirma o princípio de igualdade e de não discriminação, adotada em 8 de setembro de 2001;
CONSIDERANDO a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, publicada em 2013 pelo Ministério da Saúde;
CONSIDERANDO o Código de Ética Profissional das Psicólogas e dos Psicólogos, editado por meio da Resolução CFP nº 10/2005, de 21 de julho de 2005;
CONSIDERANDO as expressões e identidades de gênero como possibilidades da existência humana, as quais não devem ser compreendidas como psicopatologias, transtornos mentais, desvios e/ou inadequações;
CONSIDERANDO que expressão de gênero refere-se à forma como cada sujeito apresenta-se a partir do que a cultura estabelece como sendo da ordem do feminino, do masculino ou de outros gêneros;
CONSIDERANDO que identidade de gênero refere-se à experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo e outras expressões de gênero;
CONSIDERANDO que cisnormatividade refere-se ao regramento social que reduz a divisão das pessoas apenas a homens e mulheres, com papéis sociais estabelecidos como naturais, postula a heterossexualidade como única orientação sexual e considera a conjugalidade apenas entre homens e mulheres cisgêneros;
CONSIDERANDO a cisnormatividade como discursos e práticas que excluem, patologizam e violentam pessoas cujas experiências não expressam e/ou não possuem identidade de gênero concordante com aquela designada no nascimento;
CONSIDERANDO que a autodeterminação constitui-se em um processo que garante a autonomia de cada sujeito para determinar sua identidade de gênero;
CONSIDERANDO que a estrutura das sociedades ocidentais estabelece padrões de sexualidade e gênero que permitem preconceitos, discriminações e vulnerabilidades às pessoas transexuais, travestis e pessoas com outras expressões e identidades de gênero não cisnormativas;
RESOLVE:
Art. 1º - As psicólogas e os psicólogos, em sua prática profissional, atuarão segundo os princípios éticos da profissão, contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão voltada à eliminação da transfobia e do preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis. Art.
Art. 2º - As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis.
Art. 3º - As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omirão perante a discriminação de pessoas transexuais e travestis.
Art. 4º - As psicólogas e os psicólogos, em sua prática profissional, não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminações em relação às pessoas transexuais e travestis.
Art. 5º - As psicólogas e os psicólogos, no exercício de sua prática profissional, não colaborarão com eventos ou serviços que contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias em relação às transexualidades e travestilidades.
Art. 6º - As psicólogas e os psicólogos, no âmbito de sua atuação profissional, não participarão de pronunciamentos, inclusive nos meios de comunicação e internet, que legitimem ou reforcem o preconceito em relação às pessoas transexuais e travestis.
Art. 7º - As psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização das pessoas transexuais e travestis.
Parágrafo único: As psicólogas e os psicólogos, na sua prática profissional, reconhecerão e legitimarão a autodeterminação das pessoas transexuais e travestis em relação às suas identidades de gênero.
Art. 8º - É vedado às psicólogas e aos psicólogos, na sua prática profissional, propor, realizar ou colaborar, sob uma perspectiva patologizante, com eventos ou serviços privados, públicos, institucionais, comunitários ou promocionais que visem a terapias de conversão, reversão, readequação ou reorientação de identidade de gênero das pessoas transexuais e travestis.
Art. 9º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
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