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Mesmo com a incerteza quanto ao número exato de presos no Brasil, especialistas conseguem apontar os principais problemas do sistema prisional | Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo
Mesmo com a incerteza quanto ao número exato de presos no Brasil, especialistas conseguem apontar os principais problemas do sistema prisional| Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo

A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) determina, entre outras coisas, que os estabelecimentos penais do Brasil devem cumprir uma série de obrigações e condições para garantir o bem-estar dos presos. No entanto, esta não é a realidade das penitenciárias do país. 

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), baseado em dados de junho de 2016, a população prisional chegou a 726.712 presos para 368.049 vagas disponíveis – um déficit de 358.663 vagas. Mas esse não é o único problema.

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Segundo especialistas, faltam recursos humanos, infraestrutura adequada e assistência médica e educacional, entre outras obrigações estabelecidas pela legislação visando ao cumprimento adequado da pena e à garantia do retorno do detento à sociedade. 

Apesar de haver indícios de que os números do Infopen podem estar superestimados, ainda assim a falta de vagas é uma realidade na grande maioria dos presídios do país. 

“Presídio cheio é falta de investimento no sistema. O Poder Executivo não está acompanhando a demanda da Justiça. No curto prazo, não há alternativa: é preciso investir num plano consistente, aumentar o número de vagas em novas unidades”, afirma Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP. 

“Outra questão é fazer com que essas novas unidades tenham condições dignas para tratar os presos, o que é algo que a sociedade infelizmente não valoriza”, diz Carneiro. Para ele, o Brasil vive um momento de aumento da violência, com a expansão de drogas como o crack. E essas condições pressionam o crescimento da população carcerária. 

Para o promotor público Alexey Choi Caruncho, do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça (Caop) Criminais, do Júri e de Execuções Penais do Ministério Público do Paraná, o sistema prisional brasileiro precisa de políticas de longo prazo. “É necessária a construção de novos presídios, porque temos uma população prisional que está por anos aguardando a entrada no sistema e ele não consegue absorver, está contingenciado”, exemplifica. 

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A falta de vagas e de gestão adequada do sistema acarreta uma situação que também contradiz a lei, pois os presos acabam sendo misturados, inclusive os condenados e os que aguardam julgamento. Segundo o Infopen, 40% das pessoas presas no Brasil não foram julgadas e condenadas. A situação acontece especialmente onde há presos em carceragens de delegacias, aguardando a análise do processo pela Justiça.

Mais problemas

Para a advogada criminal Patrícia Piasecki, professora de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professora da Escola da Magistratura do Paraná, o problema dos presos provisórios tem a ver com a falta de celeridade da Justiça

“Este é um grande problema que nós temos. A tramitação dos processos é muito lenta. E por causa disso o indivíduo fica na condição de preso provisório, porque não se finaliza o processo em tempo hábil e não se consegue iniciar a execução da pena”, afirma. Segundo ela, o problema da mistura de presos acaba acontecendo pela falta de infraestrutura das unidades prisionais e carceragens e pela má gestão do sistema. 

A falta de pessoal para dar assistência médica e educacional necessária aos presos também tem sido constantemente detectada nos presídios brasileiros. “O estado do Paraná, por exemplo, há 20 anos não faz concurso para pessoal técnico. O sistema penitenciário não tem mais médico, dentista, pedagogo, assistente social e outros. E também não tem recursos para contratar”, explica a advogada Isabel Kugler Mendes, presidente do Conselho da Comunidade de Curitiba. 

“Um projeto de remição da pena através da leitura acabou por falta de pedagogos para coordenar. E para piorar os que estão na ativa estão se aposentando”, diz Isabel. Segundo ela, o número de violações à dignidade humana nas penitenciárias e delegacias é constante, com presos que não veem um médico há mais de um ano. 

De acordo com o relatório do Infopen, na maioria dos presídios estaduais faltam também agentes de custódia. No geral, há 8,2 presos para cada agente no sistema prisional brasileiro, quando o ideal seria 1 agente para cada 5 presos, conforme determina uma resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). Esse número é considerado como padrão razoável para garantir a segurança física e patrimonial nas unidades prisionais. 

Outra deficiência é a falta de oportunidades de estudo e de trabalho. Apenas 15% da população prisional brasileira está envolvida em atividades laborais, internas ou externas aos estabelecimentos penais. Minas Gerais tem o maior índice do país – 30% dos presos trabalhando. No Rio Grande do Norte, só 1% trabalha. 

Para a Patrícia Piasecki, existem entraves burocráticos, tributários e trabalhistas que atrapalham o aumento da oferta de trabalho aos presos. “Além disso, faltam espaços físicos adequados. A falta da possibilidade de escolta dos presos até o local do emprego também acabam gerando empecilhos”, diz. 

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Quando o tema é acesso ao estudo, os números são ainda piores. Só 12% da população prisional no Brasil está envolvida em algum tipo de atividade educacional, entre aquelas de ensino escolar e atividades complementares. “Não é possível: se os presos já estão lá, se existem espaços de estudo, por que não estão sendo utilizados?, questiona Caruncho. 

“É porque faltam professores ou é porque não foi implantado ainda o estudo à distância, e as justificativas do Estado vão pipocando. Uma política consistente para o sistema prisional passa por um plano que envolva tudo isso”, afirma. 

Com falta de vagas e de infraestrutura adequada, de servidores e na ausência de gestão mais consistente, o poder das facções cresce dentro dos presídios, substituindo a presença do Estado. 

“O estado não dá material de limpeza, de higiene e alguns itens de alimentação. Então ele permite que a família leve isso para o preso. É a chamada sacolinha, que acaba virando um comércio dentro da prisão. As famílias de alguns presos não têm condições de levar a tal sacolinha. Aí as facções financiam. E entram com material escolar, com medicamentos, com advogados. Na ausência do Estado, as facções tomam conta. Hoje elas estão em todas as unidades prisionais”, diz Isabel Mendes. Com essa “dívida”, o preso acaba não tendo alternativa de escapar do crime. 

Prende pouco ou prende muito? 

No contexto de um sistema prisional sucateado surge a polêmica: no Brasil se encarcera muito ou se encarcera pouco? Para muitos operadores do Direito, a Justiça brasileira, e a legislação penal, são severas com delitos que, na prática, poderiam ser punidos com penas alternativas ao regime fechado – que é punição máxima no país. 

Para o defensor público do Paraná Guilherme Moniz Barreto de Aragão Dáquer Filho, que atua na área de execução penal, o Poder Judiciário está se afastando da sua função, que é garantir os direitos dos presos. Ao ver que a violência toma grandes proporções, os juízes tentam compensar com sentenças mais duras. 

“Pegamos um caso aqui esses dias de um cara condenado por dois gramas de crack”, exemplifica. Segundo ele, a esmagadora maioria das pessoas presas é pelo crime de tráfico e por crimes contra o patrimônio. 

“Geralmente são pequenos traficantes, mas o tráfico é considerado crime hediondo. Às vezes o cara é pego vendendo gramas de maconha e tem de pagar multas de R$ 15 mil. Isso mostra que o legislador pensou no grande traficante, mas esta não é a realidade da maioria”, argumenta. De acordo com Dáquer, hoje existem alternativas para fazer com o condenado se vincule ao processo e possa ser acompanhado pela Justiça: o monitoramento eletrônico e o comparecimento mensal ao fórum são dois exemplos. 

No entanto, a tese de que no Brasil se prende demais não é defendida por todos. Na opinião de Bruno Carpes, promotor de Justiça do Rio Grande do Sul e membro do Núcleo de Pesquisa e Análise da Criminalidade da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais, o número de presidiários no país aumenta gradativamente porque a criminalidade tem crescido geometricamente, exigindo que o mesmo indivíduo seja solto e preso inúmeras vezes. Por isso, segundo ele, temos a falsa aparência de falta de resultados da prisão. 

“Estudos nos Estados Unidos apontam que o aumento de prisões obviamente reduz o crime, desde que o criminoso seja incapacitado por período médio a longo prazo, o que não ocorre aqui. Não temos, infelizmente, base de dados suficientes que possam permitir a realização de estudos econométricos, como largamente realizado nos EUA e demais países que aprenderam a controlar melhor a criminalidade”, argumenta Carpes. 

Segundo ele, na verdade, o Brasil vive um surto de leniência e, consequentemente, encarcera pouco. E quando encarcera, mantém o criminoso preso por pouco tempo. “Isso faz com que os presos não vejam a prisão como um grande mal, pois sabem, em sua grande maioria, que permanecerão por alguns meses na prisão”, diz. 

“Por exemplo, nos Estados Unidos, um estudo econométrico de Steven Levitt apontou que a superlotação de presídios era um fator de dissuasão, isto é, muitos criminosos evitaram cometer crimes em razão da superlotação. Por que no Brasil também não se verifica tal fenômeno? Porque os presos sabem que o tempo de permanência é curto, além de possuírem regalias como visita íntima, acesso aos meios de comunicação e às drogas, além da falta de exigências de ordem e disciplina”, conclui.

Ouça o Podcast Ideias sobre a legalização das drogas:

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