O senhor B. adora Johnny Cash - exceto quando não gosta. O senhor X. viu seus médicos se transformarem em chefs italianos na sua frente.
A ligação entre os dois? Tanto o senhor B. quanto o senhor X. receberam uma estimulação cerebral profunda (ECP), procedimento que envolve um implante que envia impulsos elétricos para alvos específicos no cérebro a fim de alterar a atividade neural. Enquanto implantes cerebrais buscam tratar disfunções neurais, casos como esses demonstram que eles podem influenciar a percepção de mundo e comportamento da pessoa de formas indesejadas.
O senhor B. recebeu tratamento por meio de ECP devido ao seu transtorno obsessivo compulsivo (TOC). Ele nunca foi um amante da música até que, sob o efeito da ECP, desenvolveu um gosto distinto e completamente novo por Johnny Cash. Quando o implante foi desativado, o gosto desapareceu.
O senhor X, um paciente com epilepsia, recebeu a ECP como parte de uma investigação para localizar a origem de suas convulsões. Durante a estimulação, ele alucinou que médicos se tornavam chefs com aventais antes da ECP acabar e a cena sumir.
Em ambos os casos reais, a ECP claramente ocasionou uma mudança na percepção. E isso traz um conjunto de questões complicadas. Conforme neurotecnologias como essa se tornam mais comuns, os comportamentos das pessoas que recebem ECP ou possuem outros tipos de implantes cerebrais podem desafiar as atuais visões da sociedade sobre responsabilidade.
Advogados, filósofos e especialistas em ética têm trabalhado para definir as condições sob as quais indivíduos podem ser julgados responsáveis por suas ações, legal e moralmente. O cérebro é geralmente considerado o centro do controle, do pensamento racional e da emoção – ele orquestra as ações e comportamento da pessoa. Dessa forma, o órgão é a chave para a ação, autonomia e responsabilidade.
Assim, como fica a responsabilidade se a pessoa age sob a influência de um implante cerebral? Sendo especialistas em Direito e Neuroética, nós sugerimos que a sociedade deveria começar a debater essas questões agora, antes que elas tenham de ser decididas no tribunal.
Quem é o culpado se algo der errado?
Imagine que, um dia, a senhora Q. estava dirigindo e teve um repentino impulso de desviar o veículo em direção a uma parada de ônibus cheia de pessoas. Como resultado, ela acabou machucando diversos sujeitos e destruindo o ponto.
Durante a investigação, a polícia descobriu que a senhora Q. possuía um implante cerebral para tratar sua doença de Parkinson. Esse implante teve um mau funcionamento no momento em que o impulso surgiu. Além disso, a senhora Q. afirma que a parada de ônibus não estava lá quando ela seguiu o impulso de desviar.
Conforme as tecnologias de estimulação cerebral avançam, um caso hipotético como o da senhora Q. levanta questões sobre responsabilidade moral e legal. A senhora Q. é a única responsável por suas ações? Nós podemos atribuir alguma culpa ao dispositivo? Aos engenheiros que o projetaram ou ao fabricante? Ou ao neurocirurgião que o implantou ou ao neurologista que programou as características do dispositivo?
Historicamente, as responsabilidades moral e legal têm focado amplamente no indivíduo autônomo – ou seja, alguém com a capacidade de deliberar ou agir baseado em seus desejos e planos, livre de forças externas deturpadoras. No entanto, com os avanços tecnológicos modernos, muitas mãos podem se envolver na operação desses implantes cerebrais, sem contar os programas de inteligência artificial que influenciam o cérebro diretamente.
Essa influência externa levanta questões sobre o grau em que alguém com um implante pode controlar suas ações e comportamentos. Se implantes cerebrais influenciam as decisões e comportamentos de alguém, eles comprometem a autonomia da pessoa? Se a autonomia é comprometida, podemos atribuir responsabilidade ao indivíduo?
A sociedade precisa discutir o que acontece quando a ciência e a tecnologia começam a desafiar esses antigos pressupostos.
Muitos tons de cinza
Há diferentes distinções legais relacionadas à responsabilidade, como a responsabilidade causal (quando um evento causa outro) e a responsabilidade de risco.
Usando essa diferenciação, pode-se dizer que o implante é causalmente responsável, mas que a senhora Q. ainda possui responsabilidade por suas ações. Podemos ficar tentados a dividir a responsabilidade dessa forma porque a senhora Q. ainda agiu sob impulso – principalmente se ela sabia do risco dos efeitos colaterais do implante cerebral. Talvez a senhora Q. ainda carregue toda a responsabilidade primária, mas a influência do implante deveria atenuar parte de sua punição.
São importantes graduações a serem consideradas, porque a forma como dividimos a responsabilidade enquanto sociedade pode forçar pacientes a escolher entre serem potencialmente criminalizados por um ato ou tratar uma condição cerebral debilitante.
Questões também são levantadas sobre a responsabilidade das empresas por seus produtos, além de problemas de responsabilidade profissional dos pesquisadores e desenvolvedores de tecnologia e imperícia médica por parte de quem inseriu e programou o implante. Ainda que múltiplos atores partilhem a responsabilidade, a questão sobre como distribui-la permanece.
Uma camada adicional na discussão é o potencial de interferência maliciosa nesses implantes por criminosos. Implantes mais novos devem contar com conectividade sem fio. Hackers poderiam atacar esses dispositivos para utilizar a senhora Q. para seus próprios (possivelmente nefastos) objetivos, apresentando mais um desafio à questão da responsabilidade.
Bombas de insulina e desfibriladores cardíacos implantáveis já foram hackeados na vida real. Ainda que não haja informações de interferências maliciosas em implantes cerebrais, a crescente adoção desses dispositivos apresenta mais oportunidades para que indivíduos experientes em tecnologia os utilizem, potencialmente, para o mal.
Considerando o impacto que implantes cerebrais podem ter nas noções morais e legais de responsabilidade, está na hora de discutir se, e quando, intervenções cerebrais devem livrar alguém da culpa. Novas tecnologias frequentemente requerem algumas modificações ou ampliações de entendimentos legais existentes. Por exemplo, tecnologias de reprodução assistida exigiram que a sociedade redefinisse o que significa ser “pai” e “mãe”.
É possível que, em breve, comecemos a ouvir nos tribunais que “não foi culpa minha, meu implante cerebral me obrigou a fazê-lo”.
* Laura Y. Cabrera é professora assistente de Neuroética na Universidade Estadual de Michigan e Jennifer Carter-Johnson é professora associada de Direito na mesma universidade.
Traduzido por Maíra Santos.
©2018 The Conversation. Publicado com permissão. Original em inglês.
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