No último mês de abril, o estado norte-americano de Maryland tentou, pela nona vez, aprovar o Ato de Proteção à Família do Sobrevivente de Estupro (Rape Survivor Family Protection Act, no original em inglês). E não conseguiu. Dentre os pontos previstos na medida está a perda de qualquer poder familiar, como direito à convivência com a criança, a estupradores.
A legislação recebeu apoio dos partidos Democrata e Republicano, das organizações antagônicas Planned Parenthood – que fornece serviços de saúde reprodutiva nos EUA, incluindo abortos – e Maryland Right to Life – contrária ao aborto –, e foi aprovada tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado estadual. O que ocorreu foi que um grupo de seis legisladores – todos homens – ficaram responsáveis por redigir um documento final devido a algumas diferenças apontadas pelas Casas dos representantes do estado, e perderam o prazo. Agora, a não ser que seja convocada uma sessão legislativa de emergência, o ato não voltará a ser discutido antes de janeiro de 2018.
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Além de Maryland, em outras seis localidades dos Estados Unidos – Alabama, Dakota do Norte, Minnesota, Mississippi, Novo México e Wyoming – as vítimas de estupro que engravidam e decidem ter o bebê podem ter que enfrentar uma batalha judicial contra o próprio abusador a respeito da guarda da criança. Ao contrário do restante do país, esses estados não têm leis que proíbam os estupradores de reivindicar direitos parentais.
E mesmo nas localidades que têm legislações sobre o assunto, há brechas que beneficiam os criminosos. No Nebraska, por exemplo, para que o estuprador perca os direitos parentais, ele deve ser condenado por “violência sexual de primeiro grau” (sexual assault in the first degree, no original em inglês), quando há penetração. À CNN, uma jovem do estado contou que teve de autorizar ao homem que a estuprou visitas regulares à filha gerada da violência.
“Tenho medo que ela se machuque ou que algo ruim aconteça com ela. Eu não sei o que ele pode fazer com minha filha”, disse a mulher, que precisa combinar previamente as visitas com o estuprador, por e-mail ou mensagens de texto, além de conversar sobre assuntos como a rotina escolar e a saúde da menina. Nesse caso em questão, o abusador chegou a ser condenado, mas somente por violência sexual de terceiro grau, quando não fica comprovada a penetração, apenas o contato.
Assim como no Brasil, é difícil afirmar com exatidão quais são os dados sobre estupro nos EUA. A National Conference of State Legislatures (NCSL), contudo, ONG que busca promover a comunicação entre os governos estaduais norte-americanos, estima que, anualmente, de 17 mil a 30 mil vítimas de violência sexual engravidem. Outros estudos apontam que de 32% a 50% dessas mulheres decidem levar a gravidez adiante. Por aqui, estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2014 mostra que apenas 19,3% das vítimas de estupro que engravidam abortam, ainda que o aborto o caso de gravidez resultante de estupro seja autorizado por lei. Mesmo assim, é impossível afirmar com certeza quais são os dados, pois se estima que somente 35% dos crimes sexuais sejam notificados no país.
E como funciona no Brasil?
Dois projetos em tramitação na Câmara dos Deputados tratam, diretamente, de crianças fruto de estupro. O Projeto de Lei (PL) 5789/16, de autoria do deputado Flavinho (PSB-SP), inclui no artigo 1.638 do Código Civil que pai ou mãe que "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso e, decorrente desse ato ocorra o nascimento de filho" perde o poder familiar.
O projeto tramita em caráter conclusivo, o que significa dizer que está dispensada a deliberação em Plenário, desde que não haja decisão divergente entre as comissões ou recurso assinado por 52 deputados. A matéria já foi aprovada na Comissão de Seguridade Social e Família e tem como próximo passo a apreciação pela Constituição e Justiça e de Cidadania.
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Já o PL 478/2007, conhecido como Estatuto do Nascituro, fala do feto gerado de um estupro. O texto traz que “o nascituro concebido em um ato de violência sexual não sofrerá qualquer discriminação ou restrição de direitos”, estando a ele assegurados “I - direito prioritário à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da gestante; II – direito a pensão alimentícia equivalente a 1 (um) salário mínimo, até que complete dezoito anos; III – direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança após o nascimento”. Se o genitor não for identificado, a obrigação de pensão recairá sobre o Estado. Mas não há menção no projeto ao poder familiar do estuprador.
Vale lembrar, contudo, que tais textos precisam ser sancionados. Por enquanto, não existe legislação específica sobre o assunto em vigor no país. O que não significa que a Justiça não possa – ou não tenha de – discutir a questão.
Mayta Lobo, professora e coordenadora da Pós-Graduação em Psicologia Jurídica do Unibrasil, conta que o poder familiar se trata de um conjunto de direitos e deveres, como criação, convivência e obediência, que os pais têm em relação aos filhos. Esse poder é inerente à parentalidade, que, juridicamente falando, trata como pai e mãe aqueles que constam do registro da criança.
A professora explica que para um homem registrar a paternidade, há dois caminhos. O primeiro é a presunção da paternidade. Caso uma mulher casada engravide, por exemplo, presume-se que o pai do bebê é o marido. Munido da guia de nascimento, fornecida pelo hospital, onde consta o nome da mãe da criança, e da certidão de casamento, basta o homem ir ao cartório para registrar o filho. A segunda hipótese ocorre com o reconhecimento espontâneo da paternidade, quando os genitores não são casados. Esse seria o caminho para o estuprador pleitear o registro. Do registro, decorreria o poder familiar.
Proteção integral à criança
Ainda que, hipoteticamente, um estuprador pudesse pleitear o registro de um filho gerado da violência, o ordenamento jurídico contempla a chamada Doutrina da Proteção Integral, dentro da qual está o Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente, previsto no artigo 227 da Constituição Federal (CF) e no qual se embasa a Lei n. 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente.
“Por esse princípio, toda lei deve ser interpretada e aplicada com base no que corresponde o melhor interesse da criança. Uma lei pode até não ser aplicada se ferir esse princípio. Nesse sentido, o poder familiar não é absoluto”, esclarece Mayta. Por essa linha, o reconhecimento da paternidade poderia ser negado a um estuprador, que se torna pai por uma origem violenta, com fundamento no melhor interesse da criança. Agora, se a mãe fosse favorável ao reconhecimento, o juiz poderia interpretar de outra forma.
Em relação à pensão alimentícia, deve-se levar em consideração o entendimento doutrinário e jurisprudencial que se tem sobre o assunto, dada a atual falta de legislação.
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“Existem correntes que dizem que um pai que, por exemplo, espanca um filho, perde o poder familiar como forma de punição contra o crime que ele praticou contra a criança. Nesse caso, ele perderia os direitos mas continuaria com o dever de sustento, de prestar pensão”, diz a professora do Unibrasil. Tal lógica poderia ser transportada para o estuprador caso ele fosse conhecido, que não teria direitos, mas continuaria com a responsabilidade patrimonial.
Mayta reforça, entretanto, que, tratando-se de infância e adolescência, tudo é muito sui generis, sendo cada caso um caso. Se o direito não é uma ciência exata, ao tratar de infância ele é menos ainda, pois a análise envolve o melhor interesse daquela criança específica.
Conheça a lei
Constituição Federal
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
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Colaborou: Mariana Balan.