A nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/ 2017), sancionada com 20 vetos pelo Presidente Michel Temer, provém de ampla discussão entre os poderes Executivo, Legislativo e a sociedade civil. Após muitas tentativas nas décadas de 1990 e 2000 para a construção de nova lei que viesse a substituir o Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815/1980), foi em 2013 que se dá a origem da lei aprovada no Congresso Nacional em abril passado. A nova norma foi criada a partir da redação de comissão de especialistas, com contribuições de órgãos federais como o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, a Polícia Federal e o Departamento de Imigração do Ministério da Justiça. Entretanto, discussões polêmicas entre os próprios órgãos, principalmente sobre a criação de novo órgão federal que viesse a substituir o CNIg e parte do efetivo da Polícia Federal, que hoje operam a política migratória no país, somadas ao debate sobre a abertura ou fechamento do mercado nacional para imigrantes considerados não-qualificados, como a SAE propunha, impediram que a redação final do anteprojeto formado fosse enviado à Câmara dos Deputados.
Em 2014, o Governo Dilma resolveu estabelecer solução de compromisso ao apoiar o projeto de lei do então Senador Aloysio Nunes (PSDB). O PL 288/2013 veiculava grande parte dos princípios propostos pela Comissão de 2013. Com o apoio do governo, o projeto foi aprovado no Senado Federal e enviado à Câmara dos Deputados (PL 2.516/2015). Ao voltar para nova análise do Senado (SCD 07/2016), a maioria dos Senadores aceitou a redação substitutiva do projeto. O texto final foi enviado à presidência da República e agora foi sancionado com 20 vetos em 25 de maio. Com a publicação e o período de 180 dias para entrar em vigor, a lei encerrará longo percurso de tentativas e erros para se formular novo regulamento geral das migrações no Brasil. Mas o que muda?
A nova Lei de Migração principiologicamente traz boas perspectivas para o futuro, pois aponta para a isonomia e integração dos migrantes, ideias que se alinham com a Constituição Federal e com o regime democrático, grandes propagadoras da solidariedade e não-discriminação, prezando pelos direitos e desenvolvimento humanos. O revogado Estatuto do Estrangeiro fora editado para evitar a migração ao Brasil, porque determinava de antemão o estereótipo do migrante como inimigo à segurança nacional. Já o projeto enviado para aprovação era contemporâneo, na medida em que se atentava à questão em constante movimento, estabelecendo mecanismos democráticos para que as políticas públicas pudessem se adaptar às necessidades do setor, inclusive promovendo a participação cidadã do imigrante. A versão com os vetos, no entanto, reduz o texto, retirando alguns dispositivos que estabeleciam previsões objetivas de importantes direitos.
Ainda é importante observar: neste campo são estrondosas as manifestações de senso comum desinformado, no sentido de que o Brasil estaria agora sujeito à invasão de “milícias”, como o “Estado Islâmico” e os “esquerdopatas da América Latina”, no dizer do Senador Magno Malta (PR-ES). Os argumentos contra a lei remontam à ideologia do antigo Estatuto, com ideias xenófobas de que a lei limitaria os poderes do Estado de extraditar imigrantes e de “proteger” os cidadãos brasileiros. Falam, ainda, que o país não teria recursos para “sustentar” os migrantes (vide petição no site CitizenGo), perguntando, “Quem pagará essa conta?” Sem se atentar ao fato de que a existência de direitos para os migrantes implica em concomitante imposição de deveres correlatos.
É de se lembrar outras situações recentes em que imigrantes sofreram sérias agressões xenófobas, além da atuação controversa de movimentos como o “Direita São Paulo”, que conduziu passeata contra a Lei de Migração no dia 03 de maio, que acabou com a prisão de brasileiros de origem síria sob acusação de que teriam lançado bomba contra os manifestantes presentes no local. Imagens mostram, ainda, que os acusados foram agredidos no chão pelos manifestantes.
Tais manifestações, possivelmente, teriam sido pressão suficiente para dar azo aos vetos da presidência. Um deles foi motivado porque a garantia de direitos sociais aos visitantes “representaria pressões fiscais adicionais à União e aos demais entes nacionais, prejudicando a adequação das despesas públicas ao limite de gastos constitucionalmente previsto”, conforme entendeu o Ministério da Fazenda. Os principais vetos são referentes à ocupação de cargos públicos por migrantes; utilização de serviços públicos de saúde, assistência social e previdência; direito de reunião familiar em casos de outros parentescos, dependência afetiva, ou fatores de sociabilidade; além da revogação de expulsões anteriores a 1988 e anistia para migrantes ingressados sem documentos até 06/06/2016. É possível que o Congresso Nacional derrube alguns vetos, especialmente no que concerne à anistia, mas isso dependerá da pressão da sociedade civil organizada.
Não menos importante, inclusive do ponto de vista ideológico, é a questão da manutenção da Polícia Federal no trato com os imigrantes. Com o mote “Migração não é caso de polícia”, organizações pediam mudança. À época das discussões do anteprojeto de lei, a Comissão de Especialistas do Ministério da Justiça propôs a criação da Autoridade Nacional Migratória (ANM), que seria uma estrutura multissetorial, a abarcar representantes dos migrantes, do governo federal, dos trabalhadores e dos empregadores, tal como se dá hoje com o CNIg.
Ademais, um quadro de funcionários especializados na questão migratória seria criado para tratar dos pedidos de entrada no país, não se retirando a competência da Polícia Federal por completo. O novo órgão teria ainda fins de levantamento estatístico, contribuindo para a ação governamental mais efetiva, hoje falha devido à quase ausência de dados. A criação do órgão, no entanto, caberia ao Executivo, restando à presidência a iniciativa por meio de decreto regulamentar.
Finalmente, chama-se aqui atenção para o compromisso da grande maioria do Congresso Nacional com a criação de lei veiculadora de política migratória acolhedora e de “inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas”. Igualmente importante saber que a política de tratamento digno deverá ser conduzida pelas instituições e sociedade, tratando-se da migração de forma democrática e permanente, independentemente dos vetos presidenciais de ontem. A circulação das pessoas no mundo somente deve aumentar com o desenvolvimento tecnológico e econômico que vivenciamos e que vêm acompanhados da disseminação de informações e do encurtamento das distâncias.
Érico Klein, especialista em Processo Civil, sócio de Klein Portugal Advogados Associados, membro da Comissão de Direitos dos Refugiados e Migrantes da OAB-PR e advogado voluntário na ONG Casa Latino Americana (2015/2016).
Pedro Henrique Gallotti Kenicke, Mestre em Direito pela UFPR, advogado de Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados, membro da Comissão de Direito Internacional da OAB-PR.
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