Os defensores da legalização do aborto costumam dizer que a medida seria uma forma de enfrentar a mortalidade de mulheres como problema de saúde pública. A petição inicial da ADPF 442, que busca a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação perante o Supremo Tribunal Federal (STF), apela para esse argumento, mas de forma seletiva. Há diversos casos no mundo em que os números mostram que a legalização do aborto não tem uma correlação segura com baixos índices de mortalidade materna ou com a redução destes.
As autoras da ADPF 422 destacam a questão da saúde quando dizem que “estudos recentes estimam que entre 8 e 18% de mortes maternas no mundo decorram de abortos inseguros, e estão concentradas em países pobres” e que “cerca de metade das mulheres que fez um aborto ilegal no país [Brasil] precisou ser internada”. A primeira constatação desconsidera os dados que mostram que é a falta de investimento na saúde básica, e não a legalização do aborto, o fator preponderante na redução dos índices de mortalidade materna. A segunda afirmação, quando analisada com cuidado, revela inconsistências com o suposto número de abortos ilegais que se alardeia no país.
Nesta reportagem, o Justiça & Direito questiona a constatação de que a legalização do aborto faz diminuir o número de procedimentos e de que é a melhor estratégia para ampliar políticas de planejamento familiar e, assim, proteger a vida dos próprios seres humanos não nascidos e a saúde das mulheres. Ao pintar esse quadro, sem maiores qualificações, as autoras da ADPF 442 pretendem reforçar o segundo passo do seu argumento jurídico, isto é, a aplicação da etapa da necessidade da regra da proporcionalidade. O primeiro do passo do argumento (adequação) foi analisado no texto anterior da série Análise da ADPF 442.
Segundo as autoras “tão importante quanto a superação do teste da necessidade é a evidência de que os países de legislação protetiva aos direitos das mulheres apresentam taxas decrescentes de aborto em série histórica, ou mesmo mais baixas quando comparados aos países com legislação mais restritiva. Isso significa que é com a descriminalização do aborto e com as ampliações nas políticas de planejamento familiar que mais eficazmente pode se proteger o valor intrínseco do humano”.
Essa afirmação é fundamental para as autoras, porque a partir dela poderão argumentar que a criminalização do aborto não é, dentre medidas que supostamente restringem os direitos fundamentais das mulheres, a alternativa que melhor protege o direito à vida de seres humanos não nascidos (veja abaixo ).
Números
A petição inicial da ADPF 442 afirma que “a Pesquisa Nacional do Aborto [PNA] 2016 mostra que, somente em 2015, 417 mil [sic] mulheres realizaram aborto no Brasil urbano e 503 mil mulheres em extrapolação para todo o país”. A PNA 2016 afirma também que cerca de metade das mulheres que realizaram abortos precisaram ser internadas por alguma complicação, o que repete a constatação da PNA 2010. Já os dados reunidos pelo DataSUS revelam que, no mesmo ano, cerca de 200 mil mulheres passaram por internação hospitalar em decorrência de aborto, incluindo abortos espontâneos.
“Se 416 mil mulheres teriam feito aborto em 2014 e cerca de metade dessas mulheres foi internada para finalizar o procedimento, há uma incoerência com os dados do SUS, que mostram que houve cerca de 200 mil internações por aborto em 2014. Mas os abortos espontâneos, que parecem não estar sendo considerados na pesquisa, geram muitas internações”, diz Lenise Garcia, professora da Universidade de Brasília (UnB) e presidente do Movimento Brasil sem Aborto.
“A Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 levanta ainda outras dúvidas. As próprias autoras colocam que os resultados para toda a população feminina total devem ser tomados com extrema cautela para extrapolar os dados a partir do universo de 2.002 mulheres urbanas e alfabetizadas que foram entrevistadas, mas não é isso que dão a entender quando trazem este assunto à mídia”, diz Lenise. “Também não fica claro se o modo como é feita a pergunta não acaba incluindo o número de abortos espontâneos. Provocar um aborto, ter um aborto, fazer um aborto, são coisas diferentes de se perguntar”, completa.
Consultada pelo Justiça & Direito sobre os pontos levantados, Débora Diniz, professora da UnB e uma das autoras da PNA 2016, afirmou que “as mulheres não necessariamente se internaram no SUS, por isso não é possível fazer a comparação dos dados. Além disso, é preciso verificar se os dados que obteve se referem apenas a curetagens – o que frequentemente é o caso –, e nem todas as mulheres que se internam por complicações por aborto necessitam de curetagem”. Sobre a questão da pesquisa, Débora elucidou que “o instrumento foi pré-testado para evitar incompreensões, e a pergunta era “você já fez aborto alguma vez’”.
Lenise destaca ainda que, de qualquer maneira, o número de abortos supostamente encontrados pela PNA 2016 é bem menor que o alardeado por alguns ativistas, que falam em até 1,5 milhão de abortos por ano no Brasil.
Exterior
Essa guerra de números não é exclusividade do debate público brasileiro. A mesma coisa ocorreu no Uruguai, onde o aborto foi legalizado no final de 2012. Chegou-se a falar em 55 mil abortos anuais no país vizinho. Desde 2003, a partir de uma pesquisa de Rafael Sansevieiro, falava-se em 33 mil abortos por ano no Uruguai. Porém, em 2013, no primeiro ano da vigência da nova lei do aborto, apenas 6.676 procedimentos foram realizados. Desde então, o número vem subindo e, em 2015, passou de 9000. Ativistas pró-aborto do país insistem que a diferença se deve à subnotificação.
A experiência da França e dos Estados Unidos, que legalizaram o aborto na década de 1970, confirma a tendência no Uruguai. “O número total de abortos nos EUA e França aumentou muito. Depois de muitos anos, existe uma estabilização e até uma pequena queda, muito provavelmente relacionada à diminuição da gravidez indesejada. Mas em alguns lugares, depois da legalização o número de abortos aumentou em mais de 10 vezes”, afirma Lenise. “O que não dá para aceitar é usar números inflados de estimativas anteriores à legalização e dizer que, depois da mudança da lei, o número de abortos diminuiu”, completa.
Saúde pública
Quando se comparam os dados ao redor do mundo sobre mortalidade materna, legalização do aborto, e o número de abortos efetivamente realizados, é difícil encontrar uma correlação significativa. Inúmeros fatores estão em jogo, mas a complexidade é ignorada pela retórica pró-aborto. Há países, por exemplo, que reduziram drasticamente a mortalidade materna nas últimas décadas, embora tenham leis extremamente restritivas, como é o caso do Chile. O Brasil mesmo derrubou os índices de mortalidade materna sem mexer na legislação penal sobre o aborto.
De acordo com dados do Banco Mundial, em 1990, a mortalidade materna no Chile era de 57 mulheres a cada 100 mil nascimentos com vida. A legislação chilena sobre o aborto é uma das mais restritivas do mundo: o procedimento não é permitido nem em caso de incesto ou risco de vida à mãe. Apesar disso, o índice de mortalidade materna caiu nas últimas décadas e, em 2015, estava em 22 mulheres a cada 100 mil nascimentos com vida. No mesmo período, as taxas brasileiras caíram de 104 para 44 óbitos de mulheres a cada 100 mil nascimentos com vida.
Quem olhasse levianamente para os dados do Uruguai em 2015, quando morreram apenas 15 mulheres a cada 100 mil nascimentos com vida, poderia supor que a taxa mais baixa tem algo a ver com a legalização do aborto. Mas não parece ser o caso. O Uruguai sempre teve taxas mais baixas, quando comparadas às do Brasil ou do Chile e, desde 1990, o índice vinha caindo paulatinamente, acompanhando a experiência latino-americana.
O mesmo não pode ser dito da Rússia ou de Cuba. A ilha caribenha foi o primeiro país latino-americano a legalizar o aborto, em 1965, mas registrou, em 2015, 39 óbitos a cada 100 mil nascimentos com vida. Na Rússia, onde o aborto foi legalizado em 1955 –Stálin havia revertido, em 1936, a descriminalização levada a cabo ainda em 1920 pelos comunistas vitoriosos –, a mortalidade materna foi de 25 mulheres a cada 100 mil nascimentos com vida em 2015, maior que a taxa chilena. Durante a crise dos anos 1990, a mortalidade materna na Rússia chegou a 88 óbitos a cada 100 mil nascimentos com vida, o mesmo número que o Brasil tinha no mesmo ano de 1994.
Rússia e Cuba também são exemplos de como a descriminalização não leva, necessariamente, à diminuição do número de abortos. Os dois países estão há décadas entre os que apresentam os maiores números relativos de procedimentos abortivos, com índices girando em torno de 40 abortos para cada 1 mil mulheres entre 15 e 44 anos. Para se ter uma ideia, mesmo aceitando os números da última PNA, essa taxa no Brasil seria por volta de 13 abortos para cada 1 mil mulheres entre 18 e 39 anos, um pouco abaixo dos números de França e Estados Unidos.
O caso da Polônia também chama a atenção, porque parece confirmar que a criminalização do aborto não tem relação necessária com a saúde pública. Em 1990, quando o aborto ainda era legalizado no país, graças à herança soviética, a taxa de mortalidade materna era de 17 óbitos para cada 100 mil nascimentos com vida. Em 1993, o aborto voltou a ser criminalizado naquele país, com exceções semelhantes às do Brasil. De lá até 2015, esse número já tinha caído para 3 a cada 100 mil nascimentos com vida. São índices melhores que os de todos os grandes países da Europa Ocidental que legalizaram o aborto nas últimas décadas.
Para a presidente do Movimento Brasil sem Aborto, esses dados mostram que o fator decisivo na redução da mortalidade materna são os investimentos em saúde básica e no cuidado pré-natal. “Nossa maior causa de mortalidade materna no Brasil é, de longe, a pressão alta das gestantes e isso é pura falta de cuidado pré-natal e investimento em saúde básica. Por que esses grupos que se dizem tão preocupados com a saúde das mulheres não estão atuando nessa área?”, questiona Lenise. “Não é o aborto que pesa nos índices de mortalidade materna”, enfatiza a professora.
Necessidade
A segunda etapa do método da proporcionalidade é a análise da necessidade da medida que se pretende impugnar. Virgílio Afonso da Silva, professor da USP e um dos mais destacados estudiosos da regra da proporcionalidade no Brasil, escreve em artigo publicado em 2002: “um ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”. Trocando em miúdos, uma medida que tenha como objetivo proteger direitos fundamentais, mas que restringe outros direitos fundamentais, só pode ser necessária se não houver outra medida menos restritiva disponível para o legislador.
Para as autoras da APDF 442, a criminalização do aborto não é, dentre as medidas que restringem direitos fundamentais das mulheres, o ato mais eficaz para a proteção dos direitos do nascituro, porque, de acordo com a experiência internacional, descriminalizar o aborto se revelaria um meio mais eficaz para alcançar esse objetivo. Na petição inicial, porém, só o caso da França é citado. Nenhum outro país é objeto de análise do documento neste passo do argumento.
Segundo as autoras, a explicação para o que ocorreu na França – e que se supõe que ocorreria no Brasil –, é contra-intuitiva. “A primeira razão é pela possibilidade de os serviços de saúde acolherem as mulheres na rota crítica do acesso ao aborto (...) sem o risco de perseguição penal ou receio do estigma”, escrevem na petição. “A segunda razão é que países que garantem maior acesso a contraceptivos tendem a diminuir a taxa de aborto, enquanto a taxa de fertilidade é mantida constante”, completam.
“Em termos puramente lógicos, essa ideia até poderia fazer sentido, mas na prática, não é isso que acontece”, afirma a professora Lenise. “O atendimento que se dá à mulher é, em geral, muito precário. Então, dizer que a mulher vai ser acolhida, eventualmente dissuadida de fazer o aborto, não é verdade. Além disso, é possível acolher e melhorar a saúde materna sem legalizar o aborto, como no caso da Polônia e do Chile”, completa.
“É evidente que legalizar o aborto transforma a sua prática em um método contraceptivo, mesmo que se diga o contrário. A mentalidade que se cria é muito clara: quando o contraceptivo falha, recorre-se ao aborto”, elucida a professora pró-vida. Há vários dados que parecem confirmar isso: na França, mulheres mais jovens estão recorrendo cada mais vez a repetição de procedimentos abortivos; na Espanha, 21% das gravidezes de mulheres com menos de 20 anos terminavam em aborto em 1990, enquanto esse número subiu para 55% em 2015; há também pesquisas mostrando que, em Cuba e em países que faziam parte do bloco soviético, a prática do aborto é naturalizada e se transforma não só em mais uma opção de contracepção, mas até em verdadeiro substituto de métodos contraceptivos.
Lenise destaca que, pela experiência de grupos informais que acolhem mulheres na “rota crítica” do aborto, o aconselhamento pode ser muito frutífero. Mas isso depende do tipo de aconselhamento e acompanhamento que se dá. “Inclusive, fala-se muito na liberdade da mulher, na escolha da mulher, mas a experiência que se tem é que a maior parte das mulheres está sendo pressionada a abortar: pressionada pelo pai da criança, pela família, pelo chefe”, diz a professora. “De fato, o aborto quase nunca é uma escolha da mulher; é resultado de uma falta de escolha, de uma falta de alternativa”, ressalta.
Mesmo que se aceitasse a tese de que a legalização do aborto diminui o número de procedimentos, seria difícil aceitar esse passo do argumento das autoras da ADPF 442 sem diminuir, ao mesmo tempo, o valor jurídico e moral da vida dos seres humanos não nascidos. Os grandes países que legalizaram a prática ainda realizam centenas de milhares de abortos por ano. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, ocorreram 881.377 abortos na Rússia e 664.335 nos Estados Unidos em 2013; 212.983 na França e 196.062 no Reino Unido em 2014. Entre 1978 e 1997, os Estados Unidos registraram mais de 1 milhão de abortos a cada ano.
Uma analogia moral ajuda a perceber o incômodo nesse raciocínio e os limites da aplicação da regra da proporcionalidade em casos envolvendo o direito à vida. Se porventura se descobrisse que descriminalizar o homicídio reduziria o número total de assassinatos no Brasil, uma vez que isso “acolheria” os potenciais homicidas “na rota crítica” do crime, “sem perseguição penal ou receio de estigma”, aceitaríamos legalizar o assassinato? Para que esse argumento faça sentido no caso do aborto, está operando, mesmo contra a suposição das autoras, a premissa de que a vida de embriões e fetos tem menos valor que a vida dos seres humanos já nascidos e das mulheres, em particular. A inconsistência dessa visão já foi analisada no primeiro e no segundo texto desta série de análises.
Diálogo
Não só a convicção de que vida deve ser protegida desde a concepção motiva essa série de análises sobre a ADPF 442, mas também nossa crença no poder da razão e do diálogo. O filósofo Christopher Kaczor, que se posiciona a favor da proteção da vida desde a concepção, faz um agradecimento especial, no primeiro parágrafo de seu livro, ao também filósofo David Boonin, que defende a posição contrária: “David Boonin, autor de Uma Defesa do Aborto, merece especial reconhecimento e gratidão. David leu meu manuscrito inteiro duas vezes e, na segunda vez, me mandou 23 páginas, em espaçamento simples, de comentários, questões, objeções e desafios. Estou especialmente em débito para com ele por este trabalho” [tradução livre do inglês].
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