Nos últimos meses a imprensa nacional tem reverberado com insistência a informação de julgamentos nos tribunais eleitorais de candidatos que cometeram supostos abusos de poder religioso. Mas afinal de contas: Existe abuso de poder religioso? O abuso de poder religioso é tipificado como crime? Há previsão legal para esse abuso? Igrejas correm o risco de fechamento? Candidatos devem ser banidos das organizações religiosas? Pastores podem declarar apoio para determinado candidato? É possível pedir votos nos púlpitos das igrejas? Líderes religiosos que são candidatos devem se afastar das atividades religiosas para o pleito? É possível realizar campanhas para determinados candidatos nas dependências das organizações religiosas? É permitido falar sobre política dentro da igreja?
Inicialmente, cumpre destacar que atualmente, na legislação aplicável ao caso, há previsão para abuso de poder econômico, abuso de poder político, abuso de autoridade, e abuso dos meios de comunicação, com base legal no artigo 22 da Lei Complementar nº 64/90, (Lei das Inelegibilidades). Essas hipóteses visam combater os abusos praticados por candidatos, cabos eleitorais, partidos políticos e demais atores eleitorais, ensejando investigação judicial eleitoral para apuração dos fatos, vez que estas condutas desequilibrariam a disputa equânime entre os candidatos, além de prejudicar a lisura do processo.
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Ademais, a Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições), em seu art. 37, caput e § 4º, esclarece que nos bens cujo uso dependa de cessão ou permissão do poder público, ou que a ele pertençam, e nos bens de uso comum, inclusive postes de iluminação pública, sinalização de tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas de ônibus e outros equipamentos urbanos, é vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta e exposição de placas, estandartes, faixas, cavaletes, bonecos e assemelhados, sendo que bens de uso comum, para fins eleitorais, são os assim definidos pelo Código Civil - e também aqueles a que a população em geral tem acesso, tais como cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios, estádios, ainda que de propriedade privada, outrossim, nos artigos 73 a 78 da supramencionada lei, versa sobre condutas vedadas aos agentes públicos eleitorais, bem como a Resolução nº 22.718/2008 do TSE. Destacamos que estas condutas devem ser observadas pelos agentes públicos, sob pena de configurar abuso de poder, com eventual causa de inelegibilidade por período de 8 anos, conforme Lei Complementar nº 135/2010.
Como bem se percebe, há um grande interesse da mídia, dos juízes eleitorais, procuradores, advogados, políticos e demais atores, acerca da construção jurídica de um novo tipo de abuso no processo eleitoral, qual seja o abuso do poder religioso. Conforme esclarecido no início do texto, nós temos tipos de abusos, conceituados na Lei de Inelegibilidades, quais sejam o abuso econômico, o abuso político, o abuso de autoridade, e abuso dos meios de comunicação.
Neste momento, não há previsão legal para o suposto “abuso do poder religioso”, sendo que os juízes eleitorais em julgamentos do tema, tendem a enquadrar como um dos abusos já previstos em lei, ou político, econômico, etc., todavia, nota-se um ativismo presente nos judiciário, em clara tentativa de construção jurisprudencial (decisões e interpretações reiteradas das leis feitas pelos tribunais superiores, adaptando as normas às situações de fato), de modo a possibilitar em futuro próximo, a proposta e consequente discussão de projeto de lei para abordar o assunto. No entanto, reforçamos que até o momento não há previsão legal para o “abuso de poder religioso”. Isto posto, eis consequentes conclusões para as indagações iniciais. Passamos as respostas das perguntas que abriram o presente artigo.
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Abuso do Poder Religioso. Não há na legislação brasileira tipificação do abuso de poder religioso. No entanto, a tese que está sendo levantada no meio jurídico é que haveria abuso de poder religioso quando líderes religiosos aproveitam-se indevidamente da fé de seguidores para neles incutir a ideia - de modo direto ou subliminar - de que certo candidato é o que possui melhores atributos para lhes representar no desempenho de cargo eletivo, ou, ainda, quando a estrutura física de congregação - imóveis, meios de comunicação (rádio, televisão, internet), símbolos - é utilizada para promover candidatura, porquanto a legitimidade das eleições e a isonomia de chances constituem pilares do regime democrático.
Por fim, como o abuso do poder religioso não existe na legislação, evidentemente ele não é tipificado como crime eleitoral, havendo, contudo, em julgados recentes, condenação de candidatos pela conduta de abuso político ou econômico por utilizarem-se da estrutura e/ou influência da igreja.
Igrejas correm o risco de fechamento por questões eleitorais? Malgrado isto já tenha ocorrido em alguns casos, e, portanto, há essa hipótese, a possibilidade de ocorrer é baixa, desde que as organizações religiosas atentem para o bom senso e a observância das leis eleitorais. As igrejas podem e devem falar sobre partidos ou candidatos políticos alinhados com seus princípios ou práticas, contudo, deve fazê-lo dentro dos limites legais.
Importante destacar que os candidatos não devem ser banidos das organizações religiosas pelo simples fato de serem candidatos. Se as igrejas entendem que devem apoiar determinados candidatos ou partidos políticos, estas podem fazê-lo dentro da legalidade, sem que haja um avanço de campanha política ostensivo para dentro das Igrejas, com utilização da estrutura do templo para guarda de materiais do candidato, ou entrega de panfletos (santinhos), por exemplo. Inclusive líderes religiosos podem declarar apoio para candidatos, observando o regramento próprio (da Igreja) e das Leis Eleitorais, se assim o quiserem.
Nunca é demais agir com precaução em temas que trazem consigo muita paixão, como é a política. Assim, pedir votos nos púlpitos das igrejas é muito complicado. Conforme esclarecido no texto, essa conduta seria passível de denúncia ao Ministério Público e Justiça Eleitoral, sob pena de multa ao candidato e até cassação do registro dos beneficiados, caso o evento religioso se transforme em um acontecimento eleitoral, para promoção de candidaturas, com pedido explícito de votos por parte do líder da Igreja e distribuição de panfletos contendo propaganda eleitoral dos candidatos, ressalvada a liberdade do art. 5º, VI, da CF/88 ao prescrever a inviolabilidade e liberdade de crença, assegurando livre exercício de cultos religiosos e protegendo os respectivos locais e liturgias, de forma que, em princípio, inexiste vedação a que líderes religiosos abordem em seus sermões, pregações, preleções ou reflexões temas de natureza política em voga que afligem a sociedade.
Ainda existe aquela situação de que o próprio líder religioso se candidata, neste caso não há previsão legal exigindo o afastamento de suas atividades, ressaltando-se que o eventual candidato deve observar as leis eleitorais, aplicáveis a todos os agentes públicos. Também devem ser analisadas as normas canônicas da própria organização religiosa. Muitas igrejas determinam, em seus estatutos, a licença compulsória de líderes que pretendem se candidatar. Evidentemente que tanto na hipótese do candidato ser alguém de fora da igreja quanto de ser membro ou o próprio líder, não é permitido a realização de campanha eleitoral nas dependências da igreja, bob pena de multa e cassação do registro dos beneficiados. Existem precedentes no Tribunal Superior Eleitoral. (RO - Recurso Ordinário nº 224193; AC - Ação Cautelar nº 060002074 e RO - Recurso Ordinário nº 804483). Obviamente que não há qualquer óbice para que o tema da política e das eleições seja abordado pelos líderes e demais membros das organizações religiosas, o que não pode e com aspecto de propaganda para determinado candidato ou partido político.
Em suma, as igrejas devem observar a legislação eleitoral, em estrito cumprimento da lei, para que não ocorram em ilícito, ou sejam denunciadas nos termos do novo instituto do abuso de poder religioso, fruto de construção jurídica recente.
* Thiago Rafael Vieira é advogado, especialista em Direito do Estado (UFRGS 2006) e Estado Constitucional e Liberdade Religiosa (Mackenzie/Coimbra/Oxford 2017). Diretor para Assuntos denominacionais da ANAJURE.
* Jean Marques Regina é advogado, especialista em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa (Mackenzie/Coimbra/Oxford 2017). Diretor de Relações Institucionais da ANAJURE.
* Warton Hertz é advogado, Teólogo e Mestre em Teologia pela EST.
* Paulo Júnior é advogado, pós-graduando Direitos Humanos (ULBRA/Coimbra/Oxford).
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