O artista confeiteiro Jack Phillips| Foto: Jack Phillips/Reprodução YouTube

No estado do Colorado, EUA, um confeiteiro evangélico alegou que confeccionar um bolo é uma forma de liberdade de expressão, e que confeccionar um bolo de casamento para um casal gay o obrigaria a se expressar em contrário às suas crenças morais e religiosas. Recusou-se a confeccionar o bolo e o caso foi parar na Suprema Corte, com uma das partes alegando discriminação e a outra o direito à liberdade de expressão. A Corte decidiu a favor do confeiteiro.

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A decisão não é erga omnes, ou seja, não vale para todos os casos. Não obstante, reflete a crescente intolerância a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais (LGBTI+), bem como o aprofundamento da intransigência religiosa em diversos países do mundo.

CONTRAPONTO: Um padeiro gay pode ser obrigado a fazer um bolo homofóbico?

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Vale lembrar que parte da colonização dos Estados Unidos se deu por “puritanos”, ou protestantes radicais, e que isso se refletiu na primeira emenda à constituição daquele país, que dispõe sobre a liberdade de expressão, inclusive a religiosa. Assim, em determinadas regiões, há uma forte e antiga tradição de objeção religiosa à orientação sexual e identidade/expressão de gênero fora da heteronorma.

Por outro lado, a mesma Constituição prima pela igualdade diante da lei. Estes dois preceitos, liberdade de expressão e igualdade – que devem se complementar e não ser vistos como antagônicos – foram incorporados inclusive na Declaração Universal de Direitos Humanos e, por conseguinte, na Constituição Federal brasileira de 1988.

Apesar de existir no Brasil o mesmo debate sobre a liberdade de crença e expressão, já houve decisão do Supremo Tribunal Federal, em julgamento de caso de racismo, de que a liberdade de expressão só é válida até o ponto em que não fira a dignidade humana alheia, não sendo, portanto irrestrita. Citando o ministro Gilmar Mendes, “(...) ganha relevância a discussão a respeito da medida de liberdade de expressão permitida constitucionalmente, sem que isso possa levar à intolerância e ao racismo, em prejuízo da dignidade humana, do regime democrático, enfim, dos valores inerentes a uma sociedade pluralista. Não se pode atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade pluralista, em face de valores outros como os da igualdade e da dignidade humana (...)”.

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Já a decisão da Suprema Corte americana sobre a confecção do bolo de casamento do casal gay está na contramão dos avanços com a igualdade de direitos de todos os cidadãos e todas as cidadãs, indiscriminadamente. É um retrocesso rumo ao apartheid.

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Se for seguir este raciocínio, teria que ter lojas só para LGBTI+, só para negros, só para judeus e assim por diante. A decisão abre um precedente muito grave para a volta do gueto, e para a criação de divisões nocivas na sociedade, muitas das quais, a exemplo da segregação racial, vinham sendo superadas há décadas.

Apesar do retrocesso nos Estados Unidos, na Europa na mesma semana houve uma decisão surpreendente do Tribunal de Justiça da União Europeia, estabelecendo que o cônjuge americano de um gay romeno tem o direito de morar junto com ele na Europa, mesmo com a Romênia não reconhecendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A partir de uma resolução aprovada em 2012, as Nações Unidas vêm realizando a campanha “Nascidos Livres e Iguais: orientação sexual e identidade de gênero no regime internacional de direitos humanos”. Um dos desdobramentos da campanha são os “Padrões Globais da ONU para a Conduta Comercial com LGBTI”. Muitas grandes empresas nacionais e multinacionais já aderiram aos Padrões, que orientam para o respeito e não discriminação às pessoas LGBTI+ no local de trabalho e aos clientes LGBTI+. Neste sentido, no Brasil já há o Fórum de Empresas e Direitos LGBT: Diversidade e Valorização.

A pessoa que abre um comércio deve atender todos os públicos, de forma igual, caso contrário é discriminação. Não tem outra palavra. O comércio é público. Trabalho é trabalho. Religião é algo muito particular e individual.

O dinheiro das pessoas LGBTI+ não tem orientação de gênero e nem identidade/expressão de gênero. Tem o mesmo valor que o dinheiro de qualquer outra pessoa. Na festa de celebração dos 25 anos do nosso casamento, a pessoa que fez as lembranças era evangélica, entre os rapazes do som tinha um católico, um ateu e um de matriz africana. Ou seja, os prestadores de serviços não deixarem a religião, ou falta dela, interferir só porque se tratava das bodas de prata de um casal gay.

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A meta da humanidade não deveria ser a segregação das pessoas conforme suas características, e sim a integração e inclusão de todas as pessoas, quaisquer que sejam, na sociedade, tendo igual acesso e atendimento nos serviços, sejam eles públicos ou privados.

O que o confeiteiro vai perder é clientela. Estima-se que a população LGBTI+ represente em torno de 10% da população, e pesquisa recente nos Estados Unidos mostrou que o percentual de pessoas LGBTI+ assumidas está aumentando entre respondentes na faixa dos 18 aos 38 anos de idade. Ainda, pesquisas no Brasil mostram que em torno de 60% da população apoia as pessoas LGBTI+. Ou seja, a discriminação contra fregueses LGBTI+ poderá afastar um percentual alto da população.

As pessoas LGBTI+ não vão voltar para o armário, as pessoas negras não voltar para a senzala e as mulheres não vão voltar para a cozinha. Estamos firmes na luta pelo alcance efetivo da igualdade de direitos.

E assim caminha a humanidade: três passos para frente, um passo para trás.

* Toni Reis é doutor em educação, diretor executivo do Grupo Dignidade e diretor presidente da Aliança Nacional LGBTI

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